Direito penal. Crime ambiental. Art. 3º da lei nº 9.605/98. Responsabilidade penal da pessoa jurídica. Natureza subjetiva. Possibilidade e autonomia da persecução criminal. Conceito construtivista da culpabilidade. Sistemas autopoiéticos. Autorreferenciabilidade e auto-organização dos entes morais. Extinção da punibilidade do administrador pessoa física. Prosseguimento da ação penal unicamente em desfavor da empresa corré. Rejeição da tese da dupla imputação necessária. Desconstrução argumentativa da jurisprudência dominante. 1. A regra do art. art. 3º da Lei nº 9.605/98 está consentânea com mandato constitucional de criminalização das pessoas jurídicas por crime contra o meio ambiente (art. 225, § 3º, da CR). O interprete/aplicador deve buscar a compreensão que leve a sério a Constituição. No Estado Democrático de Direito, respondem penalmente por suas condutas ilícitas apenas aqueles que possuam capacidade e autonomia para agir de forma diversa, sendo-lhes, sob o ponto de vista normativo, exigível que assim se comportem. 2. Releitura da norma a partir do paradigma constitucional, e não ao contrário. Princípios constitucionais que autorizam a construção de um conceito de culpabilidade empresarial que autonomize a responsabilização penal da pessoa jurídica por práticas lesivas ao bem jurídico coletivo ambiente ecologicamente equilibrado, sem restaurar o indesejável instituto da responsabilidade objetiva. 3. Conceito construtivista da culpabilidade (CARLOS GÓMEZ-JARA DIÉZ. Fundamentos Modernos de la Culpabilidad Empresarial, Ediciones Jurídicas de Santiago, 2008). Ordenamento jurídico e sujeitos de direito como sistemas autopoiéticos (sistemas autônomos e autorreferenciados, capazes de engendrar a si mesmos no contexto social e interagir com base no todo comunicativo que integram). Teoria dos sistemas e construtivismo operativo de NIKLAS LUHMANN. 4. Superação do “preconceito antropocêntrico“ vinculado ao primado da consciência como cerne da imputação de uma responsabilidade efetivamente subjetiva, na medida em que a concepção dos sujeitos de direito, sob o ponto de vista dos sistemas autopoiéticos, permite concluir que a culpabilidade não exige uma psique apta a escolher entre a conduta devida e aquela vedada pela norma, mas, sim, a presença de uma “autorreferenciabilidade“ no agente delitivo - conceito esse claramente desvinculado, ou desvinculável, de noções naturalísticas a respeito de qualquer faculdade propriamente humana, na medida em que também as operações comunicativas internas, verificadas em subsistemas jurídicos complexos, podem produzir um ente “autorreferenciado“, cujos atos realizados no contexto social se submetem, se típicos e antijurídicos, a um juízo de reprovabilidade. 5. O estatuto constitucional conferido às pessoas jurídicas com base no seu poder auto-organizativo faz com que sejam titulares de direitos fundamentais, tais como o direito de resposta, de propriedade, o sigilo de correspondência, a inviolabilidade de domicílio, as garantias do direito adquirido, de observância do ato jurídico perfeito e da coisa julgada (MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. “Curso de Direito Constitucional“. 6. ed., rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 195), encontrando-se consagrado, no colendo STJ, que os entes coletivos também são dotados de “direitos de personalidade“, sendo relevante, a esse respeito, o teor da Súmula 227 daquela Corte (“a pessoa jurídica pode sofrer dano moral“). Aperfeiçoado, pois, o sinalagma básico do Direito Penal: liberdade de auto-organização e de determinação de seu destino no contexto social, de um lado, e responsabilidade criminal pelas consequências de seus atos, do outro. 6. No âmbito infraconstitucional, o art. 3º da Lei nº 9.605/98 não autoriza, de forma unívoca, a adoção, a tout court, da teoria da dupla imputação e da responsabilidade por ricochete, pois, conforme bem apontou EUGÊNIO RAÚL ZAFFARONI (in “Parecer a Nilo Batista sobre a responsabilidade penal das pessoas jurídicas“. In: PRADO, Luiz Regis; DOTTI, René Ariel (Coord.). Responsabilidade penal da pessoa jurídica: em defesa do princípio da imputação penal subjetiva. 3. ed., rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p. 52), a análise cuidadosa do dispositivo legal revela que a norma não exige, para a instauração de persecutio criminis in iudicio contra a pessoa jurídica, a simultânea propositura de ação penal em desfavor dos administradores pessoas físicas, mas, sim, que a prática delitiva seja decorrência de decisão desses gestores. Vagueza normativa que deve ser compreendida apenas no sentido de obstar a responsabilização do ente coletivo por atos de terceiros alheios a seu quadro diretivo, tais como empregados ou prepostos sem poder de comando. 7. Postulados do conceito jurídico-sociológico construtivista operativo de culpabilidade dando suporte à responsabilização autonoma da pessoa jurídica em relação aos seus representantes e ao executor material da prática criminosa, porquanto as organizações não estão compostas por indivíduos (a teoria dos sistemas visa a justamente romper com o paradigma individualista, superando a distinção ontológica ser/não ser), mas sim por comunicações, que lhes servem de equivalente funcional à consciência das pessoas naturais, conferindo-lhes a autorreferenciabilidade própria dos sistemas dotados de autopoiese. 8. A persecução penal do ente coletivo e de seus administradores possui natureza disjuntiva, pois “se tratam de duas autopoieses diferenciadas“, na medida em que “os fundamentos últimos da responsabilidade de ambos os sistemas têm gênese em esferas totalmente diferenciadas“ (DÍEZ, 2008:132). 9. No caso dos autos, resta demonstrada a procedência da irresignação recursal do Ministério Público, na medida em que a responsabilidade penal da empresa não está atrelada ao prosseguimento da persecução criminal em desfavor de seu administrador, tampouco havendo qualquer nota de objetividade na imputação de delito ao ente coletivo. 10. A extinção da punibilidade do corréu pessoa física que atingiu o marco de setenta anos de idade, em virtude da contagem do prazo prescricional pela metade (art. 115 do CP), não obsta o prosseguimento da persecução penal em relação à empresa codenunciada. Afastada a tese de “a punição da pessoa jurídica é mera decorrência da prática de um crime pela pessoa física que a representa“, pois o que a norma impõe é que o cometimento do ilícito pelo ente coletivo resulte de decisão de seus órgãos decisórios, situação essa absolutamente distinta daquela de exigir a instauração conjunta de ação penal contra seus gestores (dupla imputação).
Rel. Des. Paulo Afonso Brum Vaz
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