Inconstitucionalidade do assento do MP ao lado do juiz

Uma das principais evoluções do processo penal moderno foi a separação entre a figura do acusador e do juiz. Não à toa, costumava-se denominar inquisitorial o sistema que mantinha atuação de acusação por parte do magistrado.

A partir do momento em que assumimos o sistema acusatório, com a Constituição de 1988, afastamos figuras que remontavam resquícios dessa atividade inquisitorial, como o procedimento judicialiforme –em que até a denúncia pelo Ministério Público era dispensada.

É certo que ainda existem vestígios desta confusão, como a iniciativa probatória do juiz, a rejeição ao arquivamento ou a possibilidade de condenação quando o MP desiste da acusação. Paulatinamente, o prestígio à interpretação constitucional deve se ater a superar este entulho autoritário.

Mas obstáculo que parece ser ainda mais difícil de transpor tem sido a desigualdade das partes no arranjo cênico das salas de audiência –simbolismo que continua a propiciar justamente a confusão que o processo penal vem tentando depurar há tempos.

Várias justiças ainda mantêm a regra de que, mesmo nas audiências criminais, o assento do representante do Ministério Público está à direita e no mesmo plano do juiz.

A disposição se dá diante de normas institucionais, sem qualquer vinculação à atividade processual propriamente dita (Art. 18, I, a – LC 75/93; art. 41, XI, Lei 8625/93). De outro lado, há dispositivo similar na Lei Complementar 80/94, de que defensores públicos tem garantia de sentar no mesmo plano do Ministério Público (art. 4°, §7°).

O tema está longe de ser uma pauta corporativista. E é menos banal e inútil do que aparenta.

Em questão, primeiro, o papel do Ministério Público no âmbito criminal.

Diante dos princípios que norteiam o sistema acusatório, não se pode escudar na figura do fiscal da lei, ou de uma espécie de parte imparcial.

O Ministério Público não é parecerista; nas ações penais públicas, é o órgão acusatório. Por mais que exista similaridade de carreiras, de impedimentos ou de vantagens, no processo criminal, promotor jamais pode estar em situação de equiparação com o juiz. Desempenham funções distintas e todo o instrumental legislativo vem sendo construído para evitar essa contaminação.

O processo também se demarca pela paridade de armas. Não há como supor que acusação e defesa estejam no mesmo patamar diante deste desequilíbrio simbólico.

Para os operadores do direito, a disposição cênica pode até parecer um assunto desnecessário e desimportante. Mas como se sentiria o leitor se fosse réu e encontrasse seu defensor escanteado, enquanto acusador e juiz se ombreassem durante a audiência?

O fato de que o Ministério Público pode fazer requerimentos em prol da defesa ou até mesmo pleitear absolvição não lhe retira o caráter de parte.

Tanto no processo quanto no direito penal, as noções de igualdade e paridade caminham de mãos dadas com o favor rei, que compensa o desequilíbrio da relação Estado-indivíduo. Não por outra razão, o ônus da prova é sempre da acusação, a dúvida favorece o réu, a punição exige a legalidade estrita etc.

A igualdade intrínseca ao poder punitivo também compreende a possibilidade de que a acusação postule em nome da defesa e até que em nome desta sejam reconhecidos direitos não pleiteados –o que, em sentido reverso é sempre proibido, como na reformatio in pejus.

Sendo parte no processo penal, não há sentido de que o MP seja alçado a um patamar de igualdade com o julgador. Não há nenhum demérito por aqui: apenas o respeito de que a acusação não pode ser jamais privilegiada, reverenciada ou considerada de forma diversa da defesa.

Para Rubens Casara, a “estrutura cênica é essencial para simbolizar a paridade de armas, a integridade do sistema acusatório e evitar a contaminação do julgador: a manutenção do MP no espaço privilegiado”.

O privilégio, prossegue o professor, perpetua uma percepção da realidade entranhada de vários preconceitos e revela, sem máscaras, uma ideologia de casta incompatível com a República.

Não se pode ignorar, por exemplo, a questão do Júri, em que a decisão está nas mãos de jurados leigos. A impressão que faz do MP uma parte privilegiada, pode causar consequências profundas.

Como afirma o professor Eduardo Maia Costa, a sala de audiência dos tribunais portugueses “está concebida como um espaço de intimidação pessoal do acusado e onde existe um desequilíbrio notório em desfavor da defesa relativamente à parte contrária, o ministério público”.

Maia Costa constata com resignação que a sala de audiência, concebida pela ditadura do Estado Novo “não sofreu alteração com a instauração da democracia, nem mesmo com a reforma processual que pretendeu introduzir um processo de tipo acusatório”. Mas relembra: “o legislador italiano teve o cuidado de, no “código de execução” do Código de Processo Penal de 1988, que estabeleceu uma reforma de tipo idêntico à portuguesa, inscrever a seguinte norma: “Nas salas de audiências de julgamento os bancos reservados para o ministério público e para os defensores estão colocados ao mesmo nível e virados para os juízes (...) art. 146º).”

É mais ou menos isso o que se espera do espaço cênico de uma audiência criminal: que as partes se sentem no mesmo plano e o juiz não esteja ao lado de nenhuma delas.

Todo o resto não deixa de ser, de uma forma ou de outra, uma incômoda lembrança da Inquisição.

Marcelo Semer

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