1 O Princípio da Insignificância como Critério Utilitarista de Afastamento da Tipicidade
Dada a relação entre os modelos de crime e os modelos estatais e tomada a Constituição na acepção de "ordem jurídica fundamental de uma comunidade ou o plano estrutural para a conformação jurídica de uma comunidade, segundo certos princípios", é inegável que a Lei Fundamental demarca limites para a intervenção do Estado na área penal. Essa restrição se impõe, eminentemente, pela necessária compatibilização da exigência da punição de determinadas condutas com o comprometimento com a tutela de direitos fundamentais do Estado Democrático e Social de Direito.
Nesse contexto, deve-se destacar que o Texto Constitucional não é um parâmetro de incriminação em si, pois, na condição de estatuto político, a Constituição é um produto cultural cuja elaboração é precedida do anterior reconhecimento social de determinados valores ou interesses. Isso quer dizer que "antes de serem bens ou valores recolhidos pelo direito (bens jurídicos), eles se fazem constituídos como tais na consciência social, extraídos que são dos costumes vigentes em uma sociedade e, por consequência, de suas necessidades".
A partir da recepção do modelo de crime como ofensa a bens jurídicos, conceituados estes como "dados ou finalidades necessários para o livre desenvolvimento do indivíduo, para a realização de seus direitos fundamentais ou para o funcionamento de um sistema estatal baseado nessas finalidades", é correto dizer que a função do direito penal é a tutela subsidiária de alguns desses bens, isto é, "o direito penal é um instrumento qualificado de proteção de bens jurídicos especialmente importantes". Sua tarefa se encerra, portanto, na tutela desses últimos.
Assim, pode-se considerar que "um bem jurídico criminalmente tutelável existe ali, e só ali, onde se encontre refletido num valor jurídico constitucionalmente reconhecido em nome do sistema social total e que, desse modo, pode-se afirmar que preexiste ao ordenamento jurídico-penal". A normatividade penal orienta-se pela normatividade constitucional, da qual se extraem tanto imposições como proibições de incriminação.
Desse modo, a legitimidade das restrições às liberdades decorrente da criminalização pode ser pensada a partir de sua relação de harmonia com a ordem axiológico-jurídica constitucional, que atua como "um quadro obrigatório de referência e, ao mesmo tempo, critério regulativo da atividade punitiva".
A estrutura e os fins do tipo penal acham, pois, seu embasamento no bem jurídico-penal, conceituado este como "todo o valor digno e necessitado de tutela penal". Para Schünemann, "a determinação do bem jurídico não é formulada apenas ao final do processo de interpretação, como etiqueta final, mas ela dirige a concretização da matéria de proibição [de modo que] se pode dizer que a ideia de bem jurídico é imanente e crítica". Está-se, pois, frente a um juízo valorativo que resulta na escolha de bens jurídicos que sejam merecedores de proteção penal.
A incriminação, por implicar restrição da liberdade, deve se dar em prol de valores dignos desse tipo de tutela. Para Fabio D'Avila,
"esse 'modelo de crime como ofensa a bens jurídico-penais' atribui ao ilícito uma 'posição privilegiada' na estrutura dogmática do crime, eis que portador, por excelência, do juízo de desvalor da infração enquanto elemento capaz de traduzir para além da intencionalidade normativa, também a própria função do direito penal, como propõe a noção de 'ofensa a bens jurídicos', a noção de 'resultado jurídico' como a pedra angular do ilícito-típico.".
Essa concepção, por não ignorar o caráter de historicidade dos bens jurídicos penalmente relevantes (protegidos pela norma), tem na ofensa (dano ou perigo de dano) a esse bem o seu substrato material legitimador da intervenção penal. A verificação da ofensa, em todas as suas modalidades, atua como diretriz - orienta e delimita a produção legislativa penal.
A ofensividade revela-se, pois, como uma "imposição constitucional de legitimidade" do ordenamento jurídico-penal. Tal postura importa na aceitação de que o conteúdo do ilícito penal estabelece-se, como realidade, a partir do reconhecimento da ofensa (dano ou perigo de dano) a esses bens (valores ou interesses). E, assim, por ser a ofensividade "o resultado jurídico da relação entre a conduta típica e o objeto de tutela da norma", quando ausente ofensa a bem jurídico detentor de dignidade penal, não há crime por ausência de tipicidade material.
Dito isso, deve a atividade legislativa observar que a incriminação é pautada pela função subsidiária da tutela penal (condição de ultima ratio ostentada pelo direito penal). Há que se perquirir acerca da existência de alternativa extrapenal idônea. A intervenção penal deve ser mínima, garantindo que "o direito penal continue a ser um arquipélago de pequenas ilhas no grande mar do penalmente indiferente". Apenas diante do fracasso de outras formas de controle social previstas nos demais ramos do direito é que se recorre ao direito penal.
Nesse contexto, coloca-se presente a necessidade de, além dos critérios legitimadores da incriminação, serem estabelecidos, para o intérprete da lei, parâmetros interpretativos, eis que não se mostra suficiente que o fato encontre correspondência narrativa na descrição na norma penal incriminadora (tipicidade formal). Nas hipóteses em que a conduta não seja materialmente típica (aptidão a ofender um bem jurídico), afasta-se a aplicação da norma penal.
Uma dessas possibilidades de reconhecimento da atipicidade, que tem como premissa a concepção material do tipo penal, é a aplicação do princípio da insignificância, expressão cunhada por Claus Roxin, em 1964, como "princípio de validade geral para a determinação do injusto". Esse princípio, na qualidade de "instrumento de interpretação restritiva", tornou-se um balizador utilizado, tanto pela doutrina como pela jurisprudência, para a aferição de condutas que, penalmente, não possuem significação.
No entender de Mauricio Antonio Ribeiro Lopes,
"a imperfeição do trabalho legislativo não evita que sejam subsumíveis também casos que, em realidade, deveriam permanecer fora do âmbito de proibição estabelecido pelo tipo penal. Para corrigir essa discrepância entre o abstrato e o concreto e para dirimir a divergência entre o conceito formal e o conceito material de delito, utiliza-se o princípio da insignificância".
O princípio da insignificância é precedido, historicamente, pelo princípio da adequação social, introduzido por Welzel, para "restringir o teor literal do tipo", excluindo do âmbito do direito penal os comportamentos socialmente aceitos. Para Assis Toledo, "o princípio da adequação social se desdobra para alcançar inúmeras situações nem sempre ajustadas a regras éticas", mas tidas como socialmente aceitáveis. De modo diverso ao princípio da insignificância, o da adequação social está alicerçado sobre o desvalor da ação e não do resultado.
Assim, entende-se que o princípio da insignificância é a face inversa do princípio da ofensividade: se o resultado advindo de uma conduta que se amolda à descrição contida na norma incriminadora é ínfimo, isto é, não provoca, efetivamente, dano, tampouco expõe a perigo o bem jurídico tutelado pelo tipo, tal comportamento não interessa ao direito penal. O reconhecimento do princípio da insignificância decorre, portanto,
"da concepção utilitarista que se vislumbra modernamente nas estruturas típicas do direito penal, [pois] no exato momento em que a doutrina evoluiu de um conceito formal a outro material de crime, adjetivando de significado lesivo a conduta humana necessária a fazer incidir a pena criminal pela ofensa concreta a um determinado bem jurídico, fez nascer a ideia de indispensabilidade do resultado concreto obtido ou que se pretenda alcançar."
Ao adotar-se uma teoria que faça uso do critério da utilidade para definir, racionalmente, as condutas que devem ser tidas como típicas ou atípicas implica a compreensão da referência adotada, ou seja, do conceito de utilitarismo.
A filosofia social distingue duas formas de utilitarismo: o individualista, que recomenda maximizar a própria utilidade do agente, e o social, que busca a maximização da utilidade social ou total. Diferencia um ato utilitarista, hipótese em que se avalia cada ação por seu próprio mérito, de uma regra utilitarista, a qual exige que certas regras sejam seguidas, regramentos estes tão imprecisos quanto o conceito de utilidade.
Segundo a ética utilitarista, o princípio da maior felicidade estabelece que as ações praticadas devem ser capazes de trazer a máxima felicidade para o maior número possível de indivíduos (humanidade) - o objetivo principal da filosofia utilitarista. Se a maximização do prazer e a busca da felicidade são os fins últimos da ação humana, estes se constituem no padrão de moralidade (regras e preceitos da conduta humana) a ser observada por toda a humanidade.
Para essa doutrina, o sacrifício é justificado pela quantidade de felicidade global produzida - a ação moralmente correta é aquela que produz um resultado favorável ao maior número de pessoas. De modo inverso, o agir será moralmente incorreto se os resultados não forem favoráveis para a maioria. Para Comte-Sponville, trata-se de uma visão que "peca, talvez, por otimismo".
Num contexto em que o princípio da insignificância está intrinsecamente relacionado ao exame da gradação (quantitativa e qualitativa) da relevância do injusto, excluída a tipicidade penal quando demonstrada a inutilidade e a injustiça da imposição de uma sanção, mostra-se relevante e adequado o estudo do pensamento de Stuart Mill (1806-1873).
Para esse filósofo inglês, a ideia de utilitarismo perpassa pela avaliação de uma regra, não a partir de sua essência, mas de suas consequências para a coletividade (felicidade geral). Isso significa dizer que a observância de uma norma justifica-se pela quantidade e qualidade de felicidade que a mesma produz.
A utilidade é fundamento da moral, de modo que a correção das medidas demonstra-se pela sua aptidão em promover a maior felicidade. O prazer, para Stuart Mill, é "o único valor intrínseco e as outras coisas são valiosas, seja pelo prazer que envolvem, seja pelo seu valor instrumental que leva ao prazer - evitação da dor. Logo, o valor da ação estará sempre nas vantagens que for capaz de trazer ou nas consequências da sua concretização.
O utilitarismo, interpretado como um sistema, mostra-se também incompatível com qualquer forma de egoísmo ético, porque a ética utilitarista não é mesquinha, não permite a preferência à felicidade ou ao bem-estar individual. De acordo com Comte-Sponville, "o utilitarismo é menos uma moral particular do que uma filosofia particular de moral: os comportamentos, na prática, muitas vezes são os mesmos, mas pensados e justificados de maneira diferente".
Retomando-se a relação entre o utilitarismo e o princípio da insignificância, tem-se que o agir voltado ao impedimento da deflagração da persecução penal, com o consequente julgamento de crimes que, na maioria dos casos, poderiam ser arquivados, em razão de não se reconhecer ofensa ao bem jurídico ou de a mesma ser considerada ínfima, mostra-se válido por atender à felicidade coletiva. Em verdade, como vetor interpretativo (restritivo), "a adoção do princípio da insignificância auxilia na tarefa de reduzir ao máximo o campo de atuação do direito penal, reafirmando seu caráter fragmentário e subsidiário".
Sob o viés constitucional, argumenta-se que essa limitação ao poder punitivo estatal está vinculada à observância do postulado da proporcionalidade (e de seus subprincípios: adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido) como modulador da atuação estatal, vinculado à limitação desse agir. A extensão da ofensa dá os contornos da intervenção, de modo que, "para as lesões desprovidas de conteúdo lesivo, haja a possibilidade de se afastar a incidência da pena". Busca-se, assim, o equilíbrio entre os meios empregados e os fins a serem alcançados.
E é nessa perspectiva de aferição de possibilidade/impossibilidade da intervenção do Estado na esfera penal é que se insere o princípio da insignificância, cuja aplicação não prescinde de sua conjugação com os demais princípios que dão os contornos do sistema de proteção estatal.
2 O Princípio da Insignificância como Critério de Afastamento da Tipicidade dos Delitos contra a Ordem Tributária
O princípio da insignificância ou bagatela, por se tratar de um postulado, tem seu conteúdo construído pelo intérprete, ainda que este não seja o único capaz de fazê-lo. Mauricio Antonio Ribeiro Lopes salienta que:
"o princípio da insignificância, assim, vem à luz em decorrência de uma especial maneira de se exigir a composição do tipo penal, a ser preenchido, doravante, não apenas por aspectos formais, mas, também, e essencialmente, por elementos objetivos que levem à percepção da utilidade e da justiça de imposição de pena criminal ao agente."
Estabelecida a premissa de que "o direito penal não se deve ocupar de bagatelas" e de que a insignificância é verificada quando ausente ofensa, ainda que de forma limitada, passa-se a examinar o critério utilizado para a aferição da insignificância e o consequente afastamento da tipicidade nos crimes contra a ordem tributária, especificamente em relação aos delitos do art. 1º da Lei nº 8.137/90.
Com relação a esse tipo de delito, pertencentes ao denominado direito penal secundário, Figueiredo Dias assinala que "só a partir da consideração do comportamento proibido é possível identificar e recortar, em definitivo, o bem jurídico, [que] é normalmente um posterius em relação à conformação legal positiva da incriminação".
De início, cumpre referir que os delitos contra a ordem tributária, previstos na Lei nº 8.137/90, remontam ao crime de sonegação fiscal que encontrava sua definição na Lei nº 4.729, de 14.07.65. Com a promulgação da Lei nº 8.137, de 27.12.90, aqueles comportamentos considerados crimes de sonegação fiscal passaram a receber a denominação de crimes contra a ordem tributária. Observe-se a redação do tipo penal do art. 1º da Lei nº 8.137/90:
"Art. 1º - Constitui crime contra a ordem tributária suprimir ou reduzir tributo, ou contribuição social e qualquer acessório, mediante as seguintes condutas:
I - omitir informação, ou prestar declaração falsa às autoridades fazendárias;
II - fraudar a fiscalização tributária, inserindo elementos inexatos, ou omitindo operação de qualquer natureza, em documento ou livro exigido pela lei fiscal;
III - falsificar ou alterar nota fiscal, fatura, duplicata, nota de venda, ou qualquer outro documento relativo à operação tributável;
IV - elaborar, distribuir, fornecer, emitir ou utilizar documento que saiba ou deva saber falso ou inexato;
V - negar ou deixar de fornecer, quando obrigatório, nota fiscal ou documento equivalente, relativa a venda de mercadoria ou prestação de serviço, efetivamente realizada, ou fornecê-la em desacordo com a legislação.
Pena - reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa. (...)"
Esse modelo de incriminação segue a linha adotada, por exemplo, pela legislação alemã, que, em seu Código Fiscal de 1977 (§ 370 do Abgabenordung), previu, como fraude fiscal (Steuerhinterziehung), as condutas de prestar informações falsas ou de omitir informações às autoridades fazendárias visando à redução de impostos ou à obtenção de benefício fiscal indevido.
A falta de consenso acerca da definição do bem jurídico tutelado pelos delitos em questão reflete-se nas diversas concepções doutrinárias a esse respeito - algumas de cunho patrimonialista (tutela do patrimônio público) e outras que sustentam ter o bem jurídico um caráter mais funcional.
Há quem defenda que aos processos de arrecadação de ingressos e de distribuição/redistribuição dos recursos resultantes desses ingressos não cabe conferir uma acepção meramente ou predominantemente patrimonial, uma vez que o interesse público no regular recebimento envolve, além do erário, o próprio funcionamento da máquina estatal no seu mister de promover os direitos fundamentais (individuais e sociais).
Savio Guimarães Rodrigues defende que, nos crimes tributários, o bem jurídico protegido pela norma, cuja ofensa, potencial ou efetiva, deve ser aferida pelo intérprete, é a estabilidade do Sistema Tributário Nacional. Esclarece que:
"o bem jurídico em questão, a ordem tributária nacional (ou estabilidade do sistema), deve ser entendido em dupla vertente: por um lado, um bem mediato, imaterial e abstrato, entendido como as funções econômicas e sociais dos tributos (o sistema em si), e, por outro, um bem imediato, representativo daquele primeiro, concretizado no correto processo de arrecadação tributária (a estabilidade do sistema)."
E nesse contexto de tutela subsidiária de bens jurídicos, o autor acima referido adverte que, para o intérprete, "torna-se necessário esclarecer o bem jurídico efetivamente tutelado nos crimes contra a ordem tributária, não com base nas leis vigentes, mas com base na apreciação constitucional de uma realidade social anterior, externa ao ordenamento".
Nessa mesma linha, Anabela Miranda Rodrigues assinala que a satisfação de prestações mínimas ao indivíduo em sociedade deve ser garantida pelo "mesmo nível que a proteção dos seus direitos individuais, quando se estiver a tratar de dano ou perigo de dano aos interesses e valores ali contidos". Segundo esse posicionamento, o correto processo de arrecadação reverte em benefícios para toda a sociedade, uma vez que a correta distribuição dos ônus sociais não prescinde da estabilização do sistema arrecadatório. Não se trata, portanto, da proteção dos interesses arrecadatórios do Estado, tampouco do patrimônio público isoladamente considerado.
No entanto, como oportunamente salientado por Figueiredo Dias e Manuel da Costa Andrade, em relação a esse modelo de incriminação adotado pelo legislador na descrição do art. 1º da Lei nº 8.137/90 (crime de dano), "a representação do bem jurídico há de emprestar à incriminação fiscal uma estrutura substancialmente idêntica à dos crimes contra o patrimônio em geral". Essa concepção parece ter sido a adotada pela jurisprudência brasileira, na qual a insignificância da conduta, cuja mensuração dá-se pelo "grau de intensidade da ofensa ao bem jurídico protegido" em relação à norma do art. 1º da Lei nº 8.137/90, restringe-se ao montante do tributo sonegado - o critério de apuração da existência dessa ofensa.
Essa orientação jurisprudencial possui uma perspectiva patrimonial, haja vista o vetor utilizado para a identificação de situações que, não obstante sejam formalmente típicas, devam ter sua tipicidade material afastada em decorrência da aplicação do princípio da insignificância penal. Estabeleceu-se, desse modo, uma espécie de "tarifação" baseada numa relação custo-benefício. Sopesa-se os custos da cobrança do débito (via execução fiscal) e a quantia devida ao erário e, a partir de então, estabelece-se as hipóteses em que há relevante ofensa ao bem jurídico penalmente tutelado. O valor consolidado do débito fiscal é o parâmetro adotado para a aferição do interesse na persecução penal, porquanto entende-se como "inadmissível que uma conduta seja irrelevante no âmbito administrativo e não o seja para o direito penal, em observância ao princípio da subsidiariedade".
Até o início do ano de 2012, o parâmetro financeiro era R$ 10.000,00, nos termos do art. 20 da Lei nº 10.522/02 (na redação dada pela Lei nº 11.033, de 2004), norma que dispõe sobre o cadastro informativo dos créditos não quitados de órgãos e entidades federais. Veja-se:
"Art. 20 - Serão arquivados, sem baixa na distribuição, mediante requerimento do Procurador da Fazenda Nacional, os autos das execuções fiscais de débitos inscritos como Dívida Ativa da União pela Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional ou por ela cobrados, de valor consolidado igual ou inferior a R$ 10.000,00 (dez mil reais). (...)"
Em 22.03.2012, com a edição da Portaria nº 75 do Ministério da Fazenda (DOU 26.03.2012), modificou-se o valor do tributo a ser considerado como critério de reconhecimento da insignificância. A referida norma infralegal, atualmente com a redação parcialmente modificada pela Portaria MF nº 130, de 19.04.2012, determinou, em seu art. 2º, "o não ajuizamento de execuções fiscais de débitos com a Fazenda Nacional, cujo valor consolidado seja igual ou inferior a R$ 20.000,00", limite mínimo que foi acolhido pela jurisprudência.
Apreciando-se essa postura jurisprudencial, sob a perspectiva utilitarista, conclui-se que a irrelevância da consequência efetiva da conduta - aferida com base no valor do tributo sonegado - não justifica que toda a "máquina estatal", sustentada pela coletividade, seja movimentada para a cobrança de pequenas quantias.
Transpondo-se essa análise para o pensamento do utilitarismo hedonista de Stuart Mill, conclui-se que a deflagração da persecução penal seria justificada na medida em que "produzisse o maior excedente possível de prazer sobre a dor, isto é, de maximizar a felicidade, entendida exatamente em termos de prazer e ausência de dor".
No caso dos delitos de sonegação fiscal, quando os custos da realização da cobrança de um crédito (despesas suportadas por toda a sociedade) são maiores do que os benefícios trazidos (retomada aos cofres públicos do valor sonegado, nas hipóteses em que esse valor é considerado de pouca monta ou até ínfimo conforme critério já referido acima), sem maiores aprofundamentos, entende-se que não há a "maximização" da utilidade, de modo que resta injustificada eventual atuação estatal.
Em verdade, do exame do teor dos julgados, percebe-se que a jurisprudência brasileira não se aprofunda no necessário debate acerca da ofensa ao bem jurídico protegido. A discussão está, portanto, reduzida à representação patrimonial do dano ocasionado pela conduta delituosa daquele que suprime ou reduz tributo.
3 A Resistência ao Reconhecimento da Insignificância em Relação aos Delitos de Estelionato em Detrimento de Entidade Pública
Não obstante esteja consolidado pela jurisprudência a adoção do critério financeiro e extrapenal (limite mínimo para a cobrança de débitos inscritos em dívida ativa) para o reconhecimento da insignificância nos delitos de sonegação fiscal, curiosamente, tal entendimento não se estende ao delito de estelionato (também crime de dano), cometido em detrimento de entidade pública (art. 171, caput e § 3º, do Código Penal), como, por exemplo, contra a Fazenda Nacional, mesmo diante da pouca relevância financeira do resultado provocado pelo agir delituoso.
No estelionato, a ação incriminada assemelha-se, em parte, à que configura o crime contra a ordem tributária previsto no art. 1º da Lei nº 8.137/90, porquanto exige-se a utilização, por parte do agente de artifício, ardil ou qualquer outro meio fraudulento; o induzimento ou manutenção da vítima em erro; a obtenção de vantagem patrimonial ilícita pelo agente; e o prejuízo alheio. Eis o teor da norma incriminadora:
"Art. 171 - Obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil, ou qualquer outro meio fraudulento: (...)
Pena - reclusão, de um a cinco anos, e multa (...).
§ 3º - A pena aumenta-se de um terço, se o crime é cometido em detrimento de entidade de direito público ou de instituto de economia popular, assistência social ou beneficência."
A similitude do desvalor da ação e o do resultado, em ambos os delitos, pode ser verificada a partir do seguinte exemplo: o cometimento do estelionato praticado em prejuízo da Fazenda Nacional em que o agente faz uso de meio fraudulento para induzir em erro o erário, obtendo vantagem ilícita. Tem-se, como exemplo, a situação em que o sujeito mantém o Fisco em erro, mediante a inserção de elementos inidôneos (dados ideologicamente falsos) apostos na declaração de ajuste anual, com o fim de obter restituição indevida de imposto de renda, em prejuízo da Fazenda Nacional.
Em casos tais, a jurisprudência tem entendido que não se faz possível o acolhimento do princípio da insignificância para justificar a não intervenção penal, ainda que em virtude do reduzido valor obtido. Esse rechaço funda-se no seguinte argumento - dentro da realidade normativa, não é cabível, no que tange ao estelionato praticado em detrimento do Fisco, a aferição da intensidade da ofensa ao bem jurídico considerando-se, isoladamente, o quantum auferido pelo sujeito ativo do delito. Observe-se julgado do Supremo Tribunal Federal:
"Habeas corpus. Penal. Estelionato praticado contra a previdência social. Art. 171, § 3º, do Código Penal. Princípio da insignificância. Inaplicabilidade. Elevado grau de reprovabilidade da conduta praticada, o que não legitima a aplicabilidade do postulado. Ordem denegada.
1. A aplicação do princípio da insignificância, de modo a tornar a conduta atípica, carece, entre outros fatores, além da pequena expressão econômica do bem objeto de subtração, de um reduzido grau de reprovabilidade da conduta do agente.
2. Ainda que se admitisse como norte para aferição do relevo material da conduta praticada pelo paciente a tese de que a própria Fazenda Pública não promove a execução fiscal para débitos inferiores a R$ 10.000 (dez mil reais) - Lei nº 10.522/02 -, remanesceria, na espécie, o alto grau de reprovabilidade da conduta praticada. Esse fato, por si só, não legitimaria a aplicabilidade do postulado da insignificância. (...)
5. Segundo a jurisprudência da Corte, 'o princípio da insignificância, cujo escopo é flexibilizar a interpretação da lei em casos excepcionais, para que se alcance o verdadeiro senso de justiça, não pode ser aplicado para abrigar conduta cuja lesividade transcende o âmbito individual e abala a esfera coletiva' (HC 107.041/SC, Primeira Turma, de minha relatoria, DJe 07.10.2011). 6. Ordem denegada." (HC 111.918, Rel. Min. Dias Toffoli, Primeira Turma, DJe 22.06.2012) (53)
Refletindo-se acerca de tal justificativa, torna-se difícil não reconhecer, de plano, a incoerência desse fundamento, porquanto, mesmo diante de condutas típicas símeis - tanto no estelionato contra entidades públicas como nos crimes tributários, o erário deixa de dispor de valores que lhe são devidos por força de leis (obrigação tributária é ex lege) -, há uma verdadeira resistência, a nosso ver injustificada, à exclusão da tipicidade material do estelionato contra entidades públicas com base no mesmo parâmetro financeiro utilizado em relação aos delitos contra a ordem tributária.
Segundo o entendimento acima referido, o princípio da insignificância não pode ser aplicado, porquanto o bem jurídico, pela norma do art. 171, caput e § 3º, do Código Penal, é a "inviolabilidade do patrimônio, particularmente em relação aos atentados que podem ser praticados mediante fraude, interesse social [que é] representado pela confiança recíproca que deve presidir os relacionamentos patrimoniais". Ao que parece, não se pretende reduzir o exame do bem jurídico-penal protegido a um bem de natureza eminentemente patrimonial.
No entanto, a inconsistência dessa tese desvela-se pelo fato de que, como já pontuado anteriormente, a aferição da ofensa ao o bem jurídico-penal protegido nos crimes contra a ordem tributária possui uma ótica patrimonial. Em que pese os conceitos de "ordem tributária", "patrimônio público" e "prejuízo aos cofres públicos" não sejam equivalentes, permite-se, nos crimes tributários, a aferição da insignificância por meio do uso de um critério financeiro (valor do tributo sonegado). De modo diverso, ao tratar do estelionato contra a Fazenda Nacional, delito de caráter patrimonial que pune o dano causado ao Estado, a perspectiva hermenêutica é modificada, não se examinam as mesmas categorias analisadas no delito de sonegação fiscal (valor do prejuízo, dano, custo aos cofres públicos para a obtenção da quantia devida...).
Dessa maneira, a não adoção do já referido standard "utilitarista" para aferição da insignificância, tal como adotado nos crimes da Lei nº 8.137/90, expõe, a nosso ver, uma incoerência sistêmica por parte do intérprete, pois não existe diferença entre as espécies de delito referidas quando se trata do exame do desvalor da ação e do resultado para fins de aferição de ofensa a bem jurídico-penal.
A justificação utilitarista perde força, pois a deflagração da persecução estatal, no caso do estelionato contra entidades públicas, quando considerados valores inferiores ao limite de R$ 20.000,00, não é útil, pela mesma razão que não é útil nos delitos tributários, isto, é, pelo elevado custo acarretado pela forma de recomposição do erário, qual seja a realização de procedimentos de cobrança administrativa. Até mesmo pragmaticamente, a ação do mesmo critério financeiro estaria justificada, pois em ambos os casos privilegiar-se-ia o êxito da ação, o efeito prático, "identificando-se a concepção de um objeto à de seus efeitos possíveis". Está-se diante do que popularmente se conhece como "a utilização de dois pesos e duas medidas".
Como se pode verificar, mesmo sob o viés do utilitarismo altruísta (e "otimista") de Stuart Mill, segundo o qual a justeza e a moralidade de uma ação "devem depender, exclusivamente, das consequências que ela conduz ou para o sujeito agente ou para o grupo" não se sustenta, racionalmente, a mantença desse tratamento desigual dispensado pelo intérprete em relação ao reconhecimento da insignificância entre os delitos contra a ordem tributária e o estelionato em detrimento do Estado.
Ademais, cumpre destacar que já se reconhece que a existência da figura do estelionato privilegiado, para valores correspondentes a um salário-mínimo, não tem o condão de satisfazer as exigências da proporcionalidade, de modo a justificar o não reconhecimento da insignificância penal; mas essa mudança de concepção jurisprudencial é tímida, pois limita a incidência do princípio da insignificância tão somente nos casos em que o estelionato é praticado contra particulares.
De posse dessas referências, constata-se que, a despeito do inadiável debate acerca da necessidade de intervenção penal em relação às condutas que impliquem supressão ou redução de tributos, enquanto há incriminação dessas condutas, deve-se discutir as hipóteses de reconhecimento da insignificância penal. Nos delitos contra a ordem tributária, previstos no art. 1º da Lei nº 8.137/90, remete-se o critério de afastamento da tipicidade material à doutrina utilitarista e ao pragmatismo, de modo que o acolhimento do princípio da insignificância visa corrigir certas "distorções" entre a conduta delituosa e a sanção legalmente prevista, depurando-se, por assim dizer, o rigor do sistema punitivo e, como isso, alça-se a máxima felicidade (o bem-estar coletivo).
Ainda que não se defenda a adoção dessa concepção utilitarista, nos termos em que posta pela jurisprudência brasileira, o que não se pode fazer é negar a possibilidade desse tipo de justificação para o reconhecimento da insignificância em relação a outros, além dos crimes de sonegação fiscal, cuja conduta ofensiva seja semelhante àquele, pois essa contradição interpretativa aqui demonstrada desvela a intolerável fragilidade teórica dos posicionamentos jurisprudenciais ou, até mesmo, a ausência de qualquer base teórica por parte do intérprete, o que leva à adoção de princípios metodológicos e hermenêuticos ad hoc.
Adriane Pinto Rodrigues da Fonseca Pires