René Ariel Dotti -
A teoria e a prática do Direito Penal, em nosso país, não conheceram expressão mais fulgurante de mestre e humanista. Nos mais diversos e longínquos mundos da realidade e da imaginação dos casos criminais, ele foi, e continua sendo, pela obra imortal, o personagem, o ator e o espectador da divina comédia da existência. Infernos, purgatórios e paraísos, todos os cenários dantescos da vida cotidiana foram exibidos e interpretados em suas lições. A imensa obra de Nélson Hungria é um dos modelos ambulantes da vida, da paixão, da morte e da ressurreição da palavra, como sagração e canto da condição humana. Se existem duas grandes classes de escritores geniais – os que pensam e os que fazem pensar –, Nélson Hungria foi o exemplo permanente e aliciante de ambas as categorias. Ele não somente pensava o universo do ser humano como protagonista da tragicomédia do delito, como também fazia e ainda faz pensar a multidão dos seus leitores: os profissionais e os estudiosos da ciência penal.
Os seus Comentários ao Código Penal são a reencarnação da aventura da existência humana, assim como fazem as sagradas escrituras. Com uma diferença, porém: os profetas que falam, pelas páginas de Nélson Hungria, não são os místicos que flutuam sobre a realidade, são as criaturas de carne e osso que escrevem, dirigem, interpretam e montam a representação. Os profetas do incomensurável espólio intelectual de Nélson Hungria são os réus, as vítimas, as testemunhas, os juízes, os advogados, os promotores, os peritos; todos, enfim, que reconstituem a história do delito e do delinquente.
Ao tomar posse no cargo de Desembargador no Tribunal de Apelação do Distrito Federal (Rio de Janeiro), em 16 de junho de 1944, Hungria proferiu discurso da extraordinária dimensão humana e notável acento crítico acerca da carreira que já vinha exercendo. São suas estas palavras:
“O juiz que, para demonstração de ser a linha reta o caminho mais curto entre dois pontos, cita desde Euclides até os geômetras da quarta dimensão, acaba perdendo a crença em si mesmo e a coragem de pensar por conta própria. Dele jamais se poderá esperar uma solução pretoriana, um milímetro de avanço na evolução do direito, o mais insignificante esforço de adaptação das leis. O juiz deve ter alguma coisa de pelicano. A vida é variedade infinita e nunca lhe assentam com irrepreensível justeza as roupas feitas da lei e os figurinos da doutrina. Se o juiz não dá de si, para dizer o direito em face da diversidade de cada caso, a sua justiça será a do leito de Procusto: ao invés de medir-se com os fatos, estes é que terão de medir-se com ela”.
O livro é dividido em duas partes. A primeira contém os Comentários de Nélson Hungria dos artigos 1º a 10 do Código Penal em sua redação original (Dec.-Lei nº 2.848/1940). A segunda, sob minha responsabilidade, tem a interpretação dos artigos 1º a 12 da Parte Geral do Código Penal, reformada pela Lei nº 7.209/1984. A presente publicação mantém o texto original de Hungria da 4ª edição (1958). Penso que inserir, de contrabando, qualquer palavra àqueles antológicos Comentários equivaleria a sobrepor uma nota marginal em partitura de Mozart.
Mas, o que se vê na realidade criminal brasileira tem muito haver com o foco de atenção da mídia, que vem violando o ordenamento jurídico brasileiro através dos veículos de comunicação. Um dos lastimáveis exemplos é a reprodução de imagens ao vivo de diligências de prisão e de busca e apreensão em procedimentos ainda sigilosos para os suspeitos e seus advogados, mas liberados, com euforia publicitária, para a imprensa.
Em razão disso cabe salientar de forma crítica que o Congresso Nacional está congestionado de projetos carentes de lúcidas e racionais medidas de efetiva prevenção da criminalidade em favor de propostas radicalizantes de neocriminalização e endurecimento das penas. Enfim, é uma expressão de poder totalitário e de um direito penal de conjuntura que ofende o princípio da dignidade da pessoa humana, além de múltiplas normas do direito justo.
Dentro desses pontos de vista, o projeto de republicação dos antológicos Comentários ao Código Penal com a sua indispensável e permanente contribuição para o aprimoramento legislativo, interessa a toda sociedade, a toda pessoa de bem, no resguardo do Estado Democrático de Direito.