Paulo Rangel -
A sociedade está apavorada com o aumento da violência urbana, mesmo que esse fenômeno não seja um fenômeno novo, mas as “notícias” dão conta de que “adolescentes” estão cada vez mais envolvidos em atrocidades e crimes bárbaros, causando no seio da sociedade um “medo descontrolável do outro” e uma (falsa) necessidade de se rever todo o sistema punitivo menorista.
O problema é que o medo não é um sentimento novo, nem é descoberta do século XXI. É algo que persegue a civilização humana desde a antiguidade passando pela idade média, pela era moderna e chegando ao mundo contemporâneo, cada qual com seus fantasmas e mitos inerentes à época.
Durante o século XIV a água já era contaminada, mas somente quando interessou culpar os judeus pela contaminação dos poços de água é que as pessoas começaram a se preocupar com a questão. Em outras palavras: queriam perseguir os judeus e os escolheram como os culpados e criaram o fantasma da morte por contaminação da água (o que sempre existiu) para incriminar aqueles que seriam os “perseguidos da vez”.
A fome, a guerra, a visão da peste como punição, trazendo como contrapartida a eleição de culpados (judeus, leprosos, estrangeiros, marginais), a caça aos feiticeiros e bruxas (a caça às Bruxas de Salem na década de 1690, hoje crianças assassinas), tudo sempre em nome de um medo coletivo que se teve dos inimigos escolhidos pelo sistema da época.
Os inimigos, dependendo dos interesses escusos que estejam em jogo, são escolhidos pelo sistema para proteção de um status quo, pois a sociedade não tolera a convivência pacífica e harmoniosa entre seus iguais, ainda que cada qual na sua diferença: é preciso se livrar dos indesejáveis e o indesejável do momento é o adolescente infrator, em especial do menor infrator negro. Primeiro, o negro foi escravizado. Depois, uma vez livre, passou a ser o suspeito número 1 do sistema penal.
Não é por outra razão que logo após a abolição da escravatura, com o advento do Código Penal de 1890, a sociedade da época precisava se livrar dos indesejáveis daquele momento e “criminalizou” as condutas de capoeiragem, a mendicância, a vadiagem e a prática de curandeirismo, sem descuidar, por óbvio, da imputabilidade penal do menor de 09 a 14 anos que respondia criminalmente, desde que submetido à análise de discernimento pelo juiz, ou seja, cabia ao magistrado dizer se diante daquele caso concreto se o menor possuía ou não entendimento para ser responsabilizado.
Tratava-se de um cheque em branco dado ao magistrado que exercia um poder quase que mediúnico para identificar no menor a propensão ao crime.
Liberto o negro, era necessário encarcerá-lo, isso quando não fosse possível eliminá-lo, situação que se dá até os dias de hoje. Primeiro tentamos alienar e destruir os índios (a histeria contra os índios em 1700), depois os escravos, quilombolas, os negros livres e mestiços, perseguimos os espíritas, os leprosos, matamos milhares de judeus e, atualmente, nossos inimigos são os que se abrigam em favelas, ocupações e invasões.
Todavia, essas arbitrariedades somente são possíveis porque existe o “medo” propagado aos “sete ventos” de que a eliminação deles é a proteção da sociedade, com o argumento cínico de que constituem uma ameaça à sociedade.
O que se quer com a diminuição da menoridade penal não é diminuir a violência como normalmente se diz num discurso cínico e punitivo, mas sim aumentar a violência contra jovens que, durante séculos, sempre foram desassistidos e colocados à margem da sociedade. E na impossibilidade (de vontade) política de resgatar a dignidade deles é mais fácil encarcerá-los.
Não é por outra razão que em trabalho sobre a letalidade da ação da polícia e vitimização da população negra Almir de Oliveira Júnior e Verônica Couto afirmam:
As mortes por homicídio na juventude negra tiveram um crescimento surpreendente (…). Ser brasileiro, jovem e negro representa uma tríplice exposição à violência letal. (…) Se o negro é privado do acesso à cidadania, a tendência de exposição à violência e à marginalização aumenta. (…) A taxa de homicídios de jovens negros no Brasil, com a qual as próprias polícias contribuem de forma significativa, é bem superior às taxas de mortes de jovens de países em guerra.
Em um governo democrático as políticas públicas de resgate da cidadania custam caro. É mais fácil, aos reacionários, a eliminação ou a prisão. Não é por outra razão que, hodiernamente, boa parte da população, inclusa no sistema, é contra as cotas raciais, contra o Bolsa Família, Bolsa Escola, contra o PROUNI, contra o programa “Minha Casa Minha Vida” e todas as políticas públicas de inclusão. E por qual razão? Simples: são políticas que visam resgatar a cidadania perdida de milhões de pessoas que nunca tiveram atenção por parte do Estado e isso incomoda àqueles que vivem da exploração do outro, da alienação das “vítimas do sistema”.
Dizer que a diminuição da menoridade penal irá diminuir a violência é desconsiderar a realidade do sistema penal ou o que é pior e mais perigoso ainda: sabem que o sistema não recupera o indivíduo e, que, portanto, não funciona, mas assim mesmo querem encarcerá-lo para piorar o que já está ruim.
A diminuição da menoridade penal não é apenas uma questão de mudança do art. 228 da Constituição Federal ou do art. 27 do Código Penal, mas sim uma questão de cunho social, enquanto questão que funda a República Federativa do Brasil, para se construir uma sociedade livre, justa e solidária, garantindo o desenvolvimento nacional, a fim de erradicar a pobreza e a marginalização, reduzindo as desigualdades sociais e regionais com o nítido propósito de promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (art. 3º da Constituição Federal).
O presente ensaio é a introdução de um livro que está sendo escrito sobre o tema, no qual pretendo demonstrar que a diminuição da menoridade penal, em um Estado Democrático de Direito, constitui grave, inequívoco e grande retrocesso social.
Que Oxalá me Ilumine.