Salah H. Khaled Jr. -
O problema da verdade no processo penal ainda não prescreveu, embora muitos possam subestimar o que representa um conceito de verdade para o processo penal e consequentemente minimizar o reforço retórico que a categoria representa para práticas punitivas autoritárias. Não é por acaso que Ferrajoli afirma que sem uma adequada teoria da verdade, da verificabilidade e da verificação processual, toda a construção do direito penal do iluminismo termina apoiada na areia.
A verdade no processo penal é uma questão de lugar, como acertadamente disse Rui Cunha Martins: se por um lado uma verdade elevada à condição canônica – transformada em objeto de adoração – conforma um processo penal do inimigo, movido por insaciável ambição de verdade, uma verdade expulsa, ou seja, exilada também se mostraria apta a produzir grandes danos. Portanto, interessa (re)definir o lugar apropriado para a verdade em um processo penal de corte acusatório e democrático, respeitoso da dignidade da pessoa humana e da presunção de inocência.
Surpreendentemente ainda prosperam no senso comum teórico discursos rasteiros que sustentam a possibilidade de obtenção de uma verdade real no processo penal, apesar da irrenunciável distinção entre os conceitos de verdade e realidade: a expressão não resiste a cinco segundos de filosofia, como apontou Lenio Streck. Felizmente são interpretações que cada vez mais perdem espaço e credibilidade: a verdade real não é apenas um excesso epistêmico, é uma leviandade.
Mas o problema da verdade não se restringe aos que defendem a busca de uma verdade real. Grande parte dos processualistas permanece refém do limite discursivo da verdade correspondente, ou seja, reiteram que o horizonte de sentido do processo penal deve ser dado pela busca da verdade: não uma verdade material, substancial ou real, mas uma versão relativizada da epistemologia inquisitória, que ainda sustenta que a verdade deve ser buscada, mesmo que dentro de certos limites. São autores que perceberam que a verdade real conduziu a absurdos insustentáveis – como a ideia de ônus da prova para o juiz, por exemplo – mas que ainda não conseguiram dar um passo decisivo para além da ambição inquisitorial. Para os que defendem essa leitura do problema da verdade, basta um deslocamento da verdade absoluta para a verdade relativa para que a questão da verdade deixe de conformar uma violação dos postulados do sistema acusatório.
Não me parece que é o caminho a seguir, ainda que tenha sido a saída encontrada por Ferrajoli e Taruffo para a aporia da verdade. Ao discutir a questão, Ferrajoli efetivamente deu um passo além do que tradicionalmente é tido como uma verdade real apreensível pelos meios que o processo disponibiliza, mas infelizmente foi incapaz de romper com o limite discursivo da verdade correspondente. O mesmo pode ser dito de Taruffo, que preso aos parâmetros do racionalismo moderno, também permaneceu vinculado à mesma estrutura de pensamento: um critério de verdade correspondente, ainda que de forma madura e não ingênua, como proposto pelo autor, não basta para promover o urgente e necessário rompimento discursivo. Ambos utilizam a velha e desgastada fórmula de Tarski, que consiste em um singelo enunciado: “a frase a neve é branca é verdadeira quando a neve é branca“. No entanto, o conceito expressa uma relação de adequação entre juízo e objeto que simplesmente não é possível no processo.
Procurei romper com essa definição de verdade em meu livro “A busca da verdade no processo penal: para além da ambição inquisitorial”, que é fruto da minha tese de doutorado (orientada por Aury Lopes Jr) e foi publicada pela editora Atlas. Sustentei que “a verdade é produzida analogicamente no processo penal, a partir de uma narrativa sustentada em rastros do passado“.