A Continuidade Delinquencial nos Crimes de Homicídio

Alfredo Coimbra -

1 - Introdução

O objetivo deste trabalho é questionar o tratamento penal dispensado à continuidade delinquencial, quando se referir a crimes dolosos contra a vida.

Fez-se uma abordagem inicial do seu aspecto histórico, justamente para que se pudesse confrontar as razões das suas raízes com o contexto social atual, onde os crimes cometidos com violência à pessoa atingiram picos insuportáveis.

Somente para se ter uma idéia do panorama de esfacelamento social, no ano de 2012, na área territorial da zona Sul da cidade de São Paulo, sob a jurisdição do 3º. Tribunal do Júri, foram distribuídos mais de 1.500(um mil e quinhentos) inquéritos policiais, onde seguramente, excetuando os casos de suicídio, mataram ou tentaram matar mais de 1.300(um mil e trezentos) seres humanos.

Contesta-se, assim, a sua vigência, até porque estaria em princípio em antinomia com a carta constitucional de 1988 que elegeu a dignidade humana como sua base principiológica.

Não se concilia, pois, com o referido princípio constitucional, naquelas hipóteses de mais de 03(três) mortes. Está em antinomia, também com a norma jurídica prevista no artigo 5º,inc.XXXV, daquela carta que não exclui da apreciação do Poder Judiciária lesão ou ameaça à direito.

Defendeu-se, para a configuração do sobredito instituto, a necessidade de se ter os pressupostos objetivo e subjetivo, por força de interpretação lógico-sistemática.

Colacionou-se, na defesa da tese, dogmática clássica e julgados do Superior Tribunal de Justiça e Supremo Tribunal Federal, onde iterativamente têm decidido que o critério hodiernamente aceito, para o reconhecimento da continuidade delinquencial, é o objetivo-subjetivo.

Optou-se, à falta de uniformidade doutrinária no tocante à natureza jurídica do crime continuado, por concluir que entre a teoria da ficção e da unidade jurídica inexiste diferença substancial, porque ambas se identificam em aceitar que ele decorre de uma criação legal, tão-somente para os efeitos penais.

Por fim, concluiu-se que é inadmissível no mundo atual em crimes de homicídio consumados e ou tentados aceitar-se, como muito facilmente tem ocorrido, a aplicação indiscriminada daquela benesse, até porque no contexto empírico em que aplicada, geralmente se mostra ausente o requisito subjetivo. Além do mais, ainda sob o enfoque da culpabilidade penal, criminosos que militam nesta senda não reúnem condições subjetivas para serem contemplados com referido benefício.

2 - Origem histórica do crime continuado

Como forma de mitigar uma lei excessiva severa à época, séculos XV, XVI, segundo a maioria da doutrina, os práticos italianos, entre eles Julio Claro, Próspero Farinaccio criaram a tese do crime continuado, para contornar a aplicação da pena capital para aquele que cometia o terceiro crime de furto. Assim, foi possível sustentar e admitir a imputação de um único crime de furto, quando se praticara 02(dois) ou mais em determinadas condições, especialmente de lugar, tempo, finalidade.

Há autores, entretanto, Francesco Carrara, Giuseppe Bettiol, Francesco Antolisei, César Camargo Hernandes, E.CuelloCalón, Sebastián Soler que assinalam que os práticos elaboraram o instituto, mas a sua concepção proveio dos glosadores Bartolo de Sassoferrato, Baldo de Ubaldi que viveram no período compreendido entre 1347 a 1400.

Anota, com propriedade a respeito do tema, Vincenzo Manzini, in verbis: "Esso appareabbastanzatardi, nella pratica italiana, per effetto dela progressiva moderazionedelconstume e delconseguentebisognoditrovarequalche expediente atto a mitigar laesorbitanzadi certe pene, e specialmentediquelladel furto, chedisolito era la morte dopo ter ditalidelitti, ancorchèsemplici. Farinaciotrattòladottrina dela reato continuatoappunto in relazione al furto, e dalle sue citazioni si compreende come lanozionedell'istitutodovesseessere relativamente recente: "Propositam regulam...quod pro tribos furtiusfur suspendi possit, ut procedatgeneraliter, quando singulapraedicta furta sunt distinctare et tempore...Eandem regulam non procedit quando plures res eodem tempore quis furatur, quiatuncunicumreputaturfurtur, et proptereafur non potestpoena mortis puniri...Ut furta non dicanturplura, sedcontinuato et sucessivo unam rem sivepluresfuratur....

3 - A sua gênese no direito penal pátrio

Sabe-se que as Ordenações do Reino de Portugal foram as primeiras leis aplicadas no território brasileiro. O livro V, denominado de o terrível, continha normas de natureza penal. Numa ordem cronológica, assim se sucederam as ordenações Afonsinas, Manuelinas, a Filipinas.

O disposto no Título 60, parág.3º., do Livro V das Ordenações Filipinas, repetindo disposição legal das ordenações Manuelinas, continha in verbis:  "E fazendo alguém três furtos por diversos tempos, se cada um dos furtos por si valer um cruzado ao menos, morra por isso, posto que já por o primeiro ou segundo, ou por ambos fosse punido."

Disposição está análoga ao Estatuto de Valvasisina, que motivou a interpretação dos práticos italianos, dando origem à figura do crime continuado.

Referida interpretação prática não era ignorada pelos jurisconsultos portugueses, uma vez que o direito lusitano sofreu a influência, segundo Silva Ferrão, in verbis:

"Não só das vantagens e contradições resultantes das sucessivas vicissitudes e reformas que houveram na Europa nos referidos catorze séculos, mas dos vícios e defeitos que acusam a barbaridade da sua origem."

Acredita-se, portanto, segundo escólio de Manoel Pedro Pimentel que, no Brasil, por força de herança cultural peninsular, tenha vigorado a doutrina dos práticos.

Para isso, ele aduz que, enquanto em Portugal o seu Código Penal de 1852 (art.87) adotou o princípio de acumulação jurídica, desaparecendo, pois, o interesse doutrinário no seu estudo, o mesmo inocorreu no Brasil.

É certo, segundo ele, que o nosso primeiro código penal não previa a figura do crime continuado.

Isso nada obstante, autores de nomeada, como Thomaz Alves Júnior-Annotações theóricas e práticas ao Código Criminal- faziam referência ao artigo 110 do Código Penal da Baviera que tratava, justamente, do crime continuado, concluindo, in verbis: "Quando um crime tiver sido cometido mais de uma vez contra a mesma coisa ou pessoa, as diferentes ações pelas quais o crime tiver continuado não serão contadas senão por um só fato; mas na determinação da pena serão consideradas como circunstâncias agravantes nos limites do art.95."

Foi o da República que introduziu o crime continuado, utilizando-se de uma fórmula que provocou divergentes interpretações.

Assim ficou a redação do Código de 1890, in verbis:

Art. 66, - parág. 2º., "Quando o criminoso tiver de ser punido por mais de um crime da mesma natureza, cometidos em tempos e lugar diferentes, contra a mesma ou diversa pessoa, impor-se-lhe-á no grau máximo a pena de um só dos crimes, com o aumento da sexta parte."

Tal crítica era endereçada ao instituto, porque, embora tenha sido copiado do direito penal italiano (art.79 do Código Penal de 1889), omitiu a expressão dela medesimarisoluzione, subtraindo, assim, o elemento subjetivo.

Bem por isto leciona Roberto Lira que o referido código tentou fazê-lo, acrescentando que o crime continuado foi, de fato, introduzido na legislação brasileira com o art.39 do decreto n.4.780, de 27 de dezembro de 1923, ao dispor, in verbis:

"Quando o criminoso tiver de ser punido por dois ou mais crimes da mesma natureza, resultantes de uma só resolução contra a mesma ou diversa pessoa, embora cometidos em tempos diferentes, se lhe imporá a pena de um só dos crimes, mas com aumento da sexta parte."

Esta redação passou a figurar na Consolidação das Leis Penais, elaborada por Vicente Piragibe.

No Código Penal de 1941, projeto de Alcântara Machado, no tocante ao crime continuado, dispunha a redação do artigo 51, parág.2, in verbis:

"Quando o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes da mesma espécie e, pelas condições de tempo, lugar, maneira de execução e outras semelhantes, devem os subsequentes ser havidos como continuação do primeiro, impõe-se-lhe a pena de um só dos crimes, se idênticas, ou a mais grave, se diversas, aumentada em qualquer caso, de um sexto a dois terços. "

Tal redação foi mantida com a Lei n.7209/84 e prevista atualmente no artigo 71, acrescentada de um parágrafo único - que prevê a continuidade delitiva para crimes dolosos e cometidos com violência à pessoa contra vítimas diferentes. Em tal caso, aplica-se uma só das penas, se idênticas, ou a mais grave, se diversas, podendo aumentá-las até o triplo, observando-se as regras do parágrafo único do art.70 e do artigo 75, ambos do mesmo estatuto repressivo.

Assim, ficou a redação do parágrafo único da prefalada norma explicativa, in verbis:

Art. 71 –

"Parág. único. Nos crimes dolosos, contra vítimas diferentes, cometidos com violência ou grave ameaça à pessoa, poderá o juiz, considerando a culpabilidade, os antecedentes, a conduta social e a personalidade do agente, bem como os motivos e as circunstâncias, aumentar a pena de um só dos crimes, se idênticas, ou a mais grave, se diversas, até o triplo, observadas as regras do art.70 e do art.75 deste Código."

 4 - Natureza jurídica do crime continuado

 Teoria da ficção jurídica considera os vários delitos como único, para o fim de uma imputação conjunta e consequente aplicação de uma única pena, sem que disso possa resultar a soma aritmética das penas cominadas a todas as infrações praticadas.

Teoria da unidade real defende que as várias ações não passam de um meio da mesma consumação, levando-se em consideração, no caso, a unidade de intenção e a unidade de lesão.

Não é o aspecto normativo que unifica as várias lesões, mas a concepção unitária do delinquente que liga das diversas ações. O crime continuado, portanto, é uma realidade reconhecida pela lei.

Teoria da unidade jurídica considera o crime continuado uma figura insculpida pelo legislador e tem existência própria e se destina a fins próprios. Existe em decorrência da norma legal, convertendo-se, assim, em uma unidade jurídica plenamente válida no ordenamento jurídico.

Poder-se-ia dizer, com o máximo respeito, que a única controvérsia válida situa-se entre as teoria da ficção, realidade, posto que no tocante à da unidade jurídica e da ficção estamos em face de uma mesma moeda com dupla face: cara e coroa.

É que se está em face de uma pluralidade de infrações penais que, por uma opção do órgão legiferante, considerando as circunstâncias fáticas em que praticadas, resolveu apená-las como se fosse um único crime.

Não se pode esquecer, com efeito, que o direito penal, embora com base ontológica é fruto da criação legal do homem. De sorte que sobre a aparente antinomia entre a teoria da ficção jurídica e a unidade real, invoca-se escólio de Tobias Barreto, in verbis:

 "O que dá a este ou àquele fato o valor jurídico de um ato criminoso, é a autoridade legislativa. O momento da legalidade é pois essencial ao conceito do delito. Foi o que fez Carrara dizer que o crime é uma entidade jurídica; o que aliás tem tanta graça, como se alguém dissesse que a doença é uma entidade médica."

Salienta Manoel Pedro Pimentel que não há uma diferença substancial entre elas, posto que ambas admitem que o crime continuado resulta de uma construção legal, unindo as várias ações delituosas pelo mesmo vínculo psicológico.

5 - Unidade de desígnios como pressuposto do crime continuado

Com acesa discussão doutrinária, tem-se três teorias acerca da continuidade delinquencial. Para alguns doutrinadores, o crime continuado caracteriza-se pela unidade de desígnios.

Portanto, não bastam as mesmas condições de tempo, lugar, maneira de execução, para que se delineie a aludida ficção jurídica. Para, além disso, é necessário que os crimes subsequentes sejam oriundos de um único impulso criminógeno.

Muito comum, em ações típicas de grupo de extermínio, que se mate, por exemplo, a testemunha ocular do crime, para que, assim, possam os executores garantir a impunidade do crime, e ou dos crimes precedentes.

Neste caso, portanto, estaria ausente o requisito unidade de desígnios para que se possa falar em crime continuado.

Teoria objetiva dispensa a unidade de propósito e deduz o conceito de continuidade nas ações ilícitas "dos elementos constitutivos exteriores da homogeneidade".

Teoria objetiva-subjetiva exige que aos elementos objetivos das ações seja acrescentado um componente de ordem subjetiva, no caso, o mesmo desígnio criminoso.

Leciona, neste passo, Giovanni Giandaca e Enzo Musco, in verbis:

"(...) os diversos episódios delitivos constituam a atuação de um programa preciso e concreto dirigido à realização de um único objetivo. Disso se deduz que os diversos delitos devem apresentar uma relação de interdependência funcional a respeito da consecução de um único fim e tal interdependência deve, por sua vez, objetivar-se numa trama se sinais reconhecíveis exteriormente."

Assim é porque, ontologicamente falando, a unidade de dolo, e ou de resolução, é o dado primário e elementar de qualquer unicidade de conduta. Há que se ter, pois, um dolo unitário, pois aquele que subtrai diariamente uma pequena quantidade de dinheiro se não agir com uma decisão única de subtrair tal volume para, v.g., pagar uma dívida, mas repete a decisão pela cupidez financeira, não há que se falar em continuidade da conduta inicial, mas tantas ações quantas forem as decisões tomadas.

Luiz Regis Prado sustenta que a teoria objetiva-subjetiva é a mais consentânea com a diretriz "que arranca de um conceito finalista de injusto."

Ensina Basileu Garcia que a unidade de resolução dá ao crime continuado uma fisionomia diferenciado dos demais. Distingui-o, por exemplo, do concurso material de infrações penais. De outra banda, na comparação com o concurso formal, ao contrário do delito continuado, existe uma unidade factual, nada obstante a pluralidade de efeitos lesivos.

Ele faz uma interpretação, a contrario senso, do antigo artigo 51, parag.1º., do Código Penal que excluía a aplicação do concurso formal de infrações penais, quando os crimes concorrentes resultavam de desígnios autônomos. Aplicando-se, em hipóteses que tais, a regra do cúmulo material de infrações penais.

Daí a conclusão do mesmo autor, in verbis:

"Tanto no concurso formal como no delito continuado se reúnem dois ou mais delitos.Só a unidade do elemento subjetivo justifica , no concurso formal, a unificação da penalidade. Se assim é, não se pode deixar de conferir importância à unidade do elemento subjetivo no delito continuado."

A propósito da dificuldade de se prefixar as condições objetivas indiciárias do crime continuado, sustenta Manoel Pedro Pimentel que este deve ser orientado no sentido de verdadeiro instrumento de individualização da pena, colimando a servir aos seus fins de benevolência, em consonância com as suas origens históricas, "sem se perder nos excessos da pieguice estéril e deformante, contrária aos interesses da defesa social...".

6 - Posição jurisprudencial

Sobre a necessidade ou não daquele elemento subjetivo, mesmo desígnio criminoso, para se caracterizar o crime continuado, a jurisprudência dos tribunais superiores pátrios é iterativa no sentido de exigir a sua presença, conforme julgados, a seguir colacionados, in verbis:

PENAL. HABEAS CORPUS. ROUBO CIRCUNSTANCIADO. PLURALIDADE DE CRIMES. CONTINUIDADE DELITIVA. REQUISITOS DE ORDEM OBJETIVA E SUBJETIVA. AUSÊNCIA DE HOMOGENEIDADE ENTRE OS DELITOS E DE UNIDADE DE DESÍGNIOS. IMPOSSIBILIDADE DE REEXAME APROFUNDADO DO ACERVO FÁTICO-PROBATÓRIO.ORDEM DENEGADA.

1. A jurisprudência deste Tribunal orienta-se no sentido de que, para caracterizar a continuidade delitiva, é necessário o preenchimento de requisitos de ordem objetiva e subjetiva.

(...).

4. Ordem denegada.

PENAL E PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. ART. 157 DO CÓDIGO PENAL. PROGRESSÃO DE REGIME. TESE NÃO APRECIADA PELA AUTORIDADE COATORA. SUPRESSÃO DE INSTÂNCIA. CONTINUIDADE DELITIVA. ART. 71 DO CP. REQUISITOS OBJETIVOS E SUBJETIVOS. TEORIA MISTA (OU OBJETIVO-SUBJETIVA). UNIFICAÇÃO DE PENAS. IMPOSSIBILIDADE. MANEIRA DE EXECUÇÃO DIVERSA. ELEMENTO TEMPORAL.

I - Tendo em vista que a tese de progressão de regime não foi analisada pela autoridade apontada como coatora, fica esta Corte impedida de examinar tal alegação, sob pena de supressão de instância (Precedentes).

II - Esta Corte vem entendendo, na dicção de sua douta maioria, que não basta para a caracterização da continuidade delitiva apenas o preenchimento dos requisitos de ordem objetiva. Faz-se mister, ainda, a presença do requisito da denominada unidade de desígnios ou do vínculo subjetivo entre os eventos (Precedentes).

III - Não estando presentes os requisitos exigidos pelo legislador, não se configura a continuidade delitiva, mas sim a habitualidade criminosa (HC 75.199/SP, 5ª Turma, Relª. Minª. Jane Silva - Desembargadora Convocada do TJ/MG, DJU de 15/10/2007).

Ordem parcialmente conhecida e, nesta parte, denegada.

Não discrepa desta orientação, o colendo Supremo Tribunal Federal, in verbis:

EMENTA Habeas corpus. Delitos de roubo. Unificação das penas sob a alegação de continuidade delitiva. Não ocorrência das condições objetivas e subjetivas. Impossibilidade de revolvimento do conjunto probatório. Ordem denegada.

1. Para configurar o crime continuado, na linha adotada pelo direito penal brasileiro, é imperioso que o agente: a) pratique mais de uma ação ou omissão; b) que as referidas ações ou omissões sejam previstas como crime; c) que os crimes sejam da mesma espécie; d) que as condições do crime (tempo, lugar, modo de execução e outras similares) indiquem que as ações ou omissões subsequentes efetivamente constituem o prosseguimento da primeira. 2. É assente na doutrina e na jurisprudência que não basta que haja similitude entre as condições objetivas (tempo, lugar, modo de execução e outras similares). É necessário que entre essas condições haja uma ligação, um liame, de tal modo a evidenciar, de plano, terem sido os crimes subsequentes continuação do primeiro. 3. O entendimento desta Corte é de que a reiteração criminosa indicadora de delinquência habitual ou profissional é suficiente para descaracterizar o crime continuado. 4. Incensurável o acórdão recorrido, pois não se constata, de plano, ocorrerem as circunstâncias configuradoras da continuidade delitiva, não sendo possível o revolvimento do conjunto probatório para esse fim. 5. Ordem denegada.

EMENTA Recurso ordinário em habeas corpus. Delitos de roubo. Unificação das penas sob a alegação de continuidade delitiva. Não-ocorrência das condições objetivas e subjetivas. Impossibilidade de revolvimento do conjunto probatório para esse fim. Recurso desprovido. Precedentes.

1. Para configurar o crime continuado, na linha adotada pelo Direito Penal brasileiro, é imperioso que o agente: a) pratique mais de uma ação ou omissão; b) que as referidas ações ou omissões sejam previstas como crime; c) que os crimes sejam da mesma espécie; d) que as condições do crime (tempo, lugar, modo de execução e outras similares) indiquem que as ações ou omissões subsequentes efetivamente constituem o prosseguimento da primeira. 2. É assente na doutrina e na jurisprudência que não basta que haja similitude entre as condições objetivas (tempo, lugar, modo de execução e outras similares). É necessário que entre essas condições haja uma ligação, um liame, de tal modo a evidenciar-se, de plano, terem sido os crimes subsequentes continuação do primeiro. 3. O entendimento desta Corte é no sentido de que a reiteração criminosa indicadora de delinquência habitual ou profissional é suficiente para descaracterizar o crime continuado. 4. Incensurável o acórdão proferido pelo Superior Tribunal de Justiça, ora questionado, pois não se constata, de plano, ocorrerem as circunstâncias configuradoras da continuidade delitiva, não sendo possível o revolvimento do conjunto probatório para esse fim.

Recurso desprovido.

7 - Dignidade Humana

Dispõe o artigo1º da magna carta, in verbis:  "A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados, Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democráticode Direito e tem como fundamentos:

I(....................);

II(.......................);

III - dignidade da pessoa humana;"

IV(............................);

V (.............................);

Leciona Régis Prado que o cristianismo teve grande significado histórico, porque, a partir dele, é que passa a ser conceituado pessoa como categoria espiritual, com valor em si própria, um ser, assim, de fins absolutos e, portanto, com dignidade.

O mesmo autor, mais à frente, salienta que isso implica o surgimento de um núcleo inatingível de prerrogativas que o Estado não pode deixar de reconhecer(...)." Independentemente, pois, de raça, cor, credo religioso, opção política, o homem deve ser reconhecido como pessoa. Deve-se ver em cada ser humano a imagem de si próprio.

Leciona, neste passo, Fábio Comparato que:

"O que se conta, nestas páginas, é a parte mais bela e importante de toda a história: a revelação de que todos os seres humanos, apesar das inúmeras diferenças biológicas e culturais que os distinguem entre si, merecem igual respeito, como únicos entes do mundo capazes de amar, descobrir a verdade e criar a beleza. É o reconhecimento universal de que, em razão dessa radical igualdade, ninguém-nenhum indivíduo, gênero, etnia, classe social, grupo religioso ou nação-pode afirmar-se superior aos demais."

Não se pode permitir, assim, que o direito à vida, projeção do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, e protegido ao nível constitucional(art.5º. da c.f), possa ser alçado à verdadeira condição de coisa, objeto, conforme permite expressamente o parágrafo único do artigo 71 do Código Penal.

Com efeito, na forma em que redigida a prefalada norma explicativa, num verdadeiro absurdo,leva-se à esdrúxula interpretação de que a morte do segundo, terceiro, ou quarto homem é continuação da morte do primeiro. É como se fosse processo lógico, a continuação da morte do primeiro, numa segunda pessoa. É como se eu, ainda, estivesse a matar a primeira pessoa!

Pior do que isso!

Naquelas hipóteses, muito comuns em centros urbanos de grande densidade demográfica, executa-se por atacado: morte de quatro, cinco ou mais pessoas.

O juízo de reprovação social consubstanciado em sentença penal condenatória,ex vi legis, permite que o magistrado de como resposta penal uma pena que não exceda o triplo da maior sanção penal cominada para uma das infrações penais, se houver alguma de maior gravidade!

A partir do terceiro crime, todos os demais estão absolutamente impunes em antinomia absoluta com o artigo 5º.,inc.XXXV, da magna carta.

É do magistério de Francisco Campos que é atributo dos direitos individuais o de não serem de caráter programático, meras diretrizes para o legislador infraconstitucional. Ao contrário, constituem direito positivo e como tal limitam a atividade do órgão legiferante.

"DieAlternative: Programm-positives Rechtist von schlagkraftigeinfachheit; ihrnormalesErgebnisistjuristischeBedeutungslosigkeit, soweit es sich um einblossProgrammhandelt; "Leerlauf", alsoBedeutungslosigkeit, soweit die  GrundrechtedemVorbehalteineseinfachergesetzesunterstelltunddurchden

Gesetzgebererstauszufullende, leereSatzesind.Heutlasstsich das einfachEntevederoder: Programm-positives Rechtnichtmehraufrechterhalten.Ebensowenigkan der "Vorrang" und der "Vorbehalt" des Gesetzes in seinerbisheringEinfachheitweitergefuhrtewerden."( Carl Schmitt-Grundrechte und Grundpflichten desdeustschenVolks, emHandbuch des Staatsrechts, vol.II, págs.585-586.

Assim, ao coisificar a pessoa humana, com o máximo respeito, colocou-se a referida norma ordinário em oposição à preceito constitucional, tangenciando aqui referida norma a inconstitucionalidade, abrindo-se espaço, portanto, para o seu reconhecimento, via de exceção, e consequente aplicação não da exasperação jurídica, mas do cúmulo material de infrações.

Infelizmente, não se tem visto tal posicionamento. Constantemente se ocorre, desprezando, inclusive, posição jurisprudencial pacífica, o reconhecimento unicamente de requisitos objetivos, fixando-se penas muito aquém daquelas que seriam cabíveis, caso se proclamasse o acúmulo material dos crimes praticados.

Não resta dúvida alguma de que foi uma opção política ingênua do órgão legiferantee muito distante daquelas que inspiraram os glosadores, e ou pós-glosadores a engendrar a construção da continuidade deliquencial.

Se se poderia imaginar que a aludida ficção jurídica, e ou unidade jurídica, viria a atender o princípio da nulla poenasine culpa, porque seria mais justo reconhecer a menor culpabilidade daquele que, aproveitando das mesmas circunstâncias de tempo, lugar, resolveu reiterar as condutas provindas de uma resolução unitária, hodiernamente tal tese não mais se sustenta, com o devido respeito, sob pena de beneficiar-se o criminoso habitual.

A rotina dos processos criminais tem revelado que, ao contrário do que se imagina, aqueles que delinquem por atacado, sobretudo em crimes dolosos contra a vida, são pessoas absolutamente insensíveis, criminosos audazes,que tem prazer na destruição de vidas humanas. Não se justifica mais, portanto, a persistência de tal benefício, no nosso entender, absolutamente inconstitucional.

8 - Conclusões

Entendemos, na esteira do pensamento de Manoel Pedro Pimentel, estéril a discussão se o crime continuado é uma ficção jurídica, ou unidade jurídica, porque só muda o sentido semântico de pressupostos fáticos aos quais atribuiu o órgão legiferante consequências jurídicas próprias, reconhecendo a pluralidade de condutas e consequentes infrações penais como se fosse um único crime.

Com relação aos seus pressupostos, há necessidade não somente das circunstâncias objetivas, mas também do elemento subjetivo, mesmo desígnio criminoso, até força de interpretação sistemática em face do que dispõe a última parte do artigo 70 do Código Penal.

Sugere-se a discussão acerca da inconstitucionalidade do parágrafo único do artigo 71 daquele diploma repressivo, porque colmata a possibilidade do órgão ministerial buscar em juízo a reparação da destruição de vidas humanas, naquelas hipóteses de chacina em que se executam mais de 03(três) pessoas.

Nestas hipóteses, conflita a continuidade específica com a norma jurídica prevista no artigo 5º, inc.XXXV, da magna carta.

Enfim, não se justifica mais, nos dias de hoje, a prevalência da continuidade específica em hipóteses de crimes de homicídio consumado e tentado, quer porque, na grande maioria das vezes, pela condição subjetiva dos seus agentes que não merecem aquela benesse legal,quer porque as regras da experiência têm demonstrado que, nas mortes por atacado está, via de regra, ausente o pressuposto subjetivo, quer porque tangencia referido dispositivo a inconstitucionalidade.

 

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