Direito Penal do Autor Palhaço: O Punitivismo Excessivo dos Prepostos Estatais!

Fernando Gentil Gizzi de Almeida Pedroso -  

1 - Propedêutica: O Ressurgir do Direito Penal do Inumano. 

Um caso que jamais será esquecido, e nos traz consequências até os dias atuais, se perfez na data de 11 de setembro de 2001, quando, na manhã de uma terça-feira, dois aviões Boeing 767 se chocaram com as torres gêmeas do World Trade Center. 

Tal ato, que infelizmente veio a ceifar a vida de 2.996 pessoas, resultou na recente guerra ao terrorismo, bem como nas guerras contra o Afeganistão e ao Iraque, haja vista a desenfreada busca pelo autor intelectual de tal atrocidade, o saudita Osama Bin Laden e sua organização, a Al Qaeda. 

Desta sorte, rememorou-se uma das lições do ilimunista (Aufklärung, Siècle des Lumières) Isaac Newton: a de que toda ação leva a uma reação. 

Nesse passo, debates permearam os centros acadêmicos. Começou-se a se discutir sobre as funções do direito penal e, precipuamente, da pena. Fora num desses acalorados debates, por sinal, que ressurgiu a tese acerca do direito penal do inimigo, na Universidade de Bonn, na Alemanha. 

Com estofo nesse luminar, se faz necessário observar que a criminalidade recrudesce, cresce e se organiza. Em determinadas situações, chega a ter recursos próprios e estruturação similar ao de um governo instituído, exsurgindo verdadeiros Estados paralelos.

Tamanha a verdade dessa nova onda organizada de ilícitos, que se pode vislumbrar a ocorrência de tal macrocriminalidade no mundo todo, como, exempli gratia, o caso das máfias italianas, combatidas por intermédio do sistema de delação premiada (colaboração processual) aliadas as ostensivas políticas de combate àquela modalidade deletéria. 

Pari passu a essa realidade, o Brasil também tem sofrido com tal inteligência criminosa, verbi gratia a existência de cada vez emergirem maiores e bem engendradas associações ilícitas, como o denominado Comando Vermelho (CV), no Rio de Janeiro, ou o Primeiro Comando da Capital (PCC), em São Paulo. 

Desta feita, o pensar de GÜNTHER JAKOBS, onde "se já não existe a expectativa séria (...) de um comportamento pessoal - determinado por direitos e deveres -, a pessoa degenera até converter-se em um (...) individuo perigoso, o inimigo". 

Daí, porque estes indivíduos, para ele, deveriam ser segregados dos cidadãos comuns, tratados com austeridade e, inclusive, com a supressão de garantias. Noutra palavra, esboroar-se-iam os cediços direitos humanos, com o emergir deste direito penal do inumano (inimigo). 

2 - O Direito Penal do Inimigo e Suas Peculiaridades. 

Como grande parcela das coisas da vida, o direito penal do inimigo também é pautado por regras, haja vista que "é uma exigência do Direito (Hegel) e da própria sociedade (Luhmann) que a norma há de preponderar frente ao ilícito."

Entrementes, nota-se que, enquanto o direito se estabelece entre titulares de direitos e deveres, a relação com aquele agente que infringe os fundamentos do Estado (inimigo) se dá por intermédio de coação. 

É que, de acordo com ROSSEAU, "qualquer malfeitor que ataque o direito social deixa de ser membro do Estado, posto que se encontra em guerra com este", razão pela qual "ao culpado se lhe faz morrer mais como inimigo que como cidadão", já que, como menciona FICHTE, haveria a perda de todos os seus direitos como cidadão e como ser humano. 

Desta sorte, com o fim de confirmar a estrutura normativa da sociedade, exsurge a primeira regra deste direito penal, que é a interceptação, em estado prévio, do inimigo - a quem se combate por sua periculosidade. 

Cumpre obtemperar, passa-se a punir o planejamento, os atos preparatórios. Tem-se, decerto, uma antecipação do iter criminis, com a imposição de reprimenda prévia aos atos executórios do ílicito colimado. 

Id est, inicia-se a punir não a concreção de um real vilipêndio a norma (como assevera o princípio da lesividade ou ofensividade - nullun crime sine injuria -, por nós adotado), mas, em verdade, um fato vindouro (futuro), ainda idealizado. 

Destarte, criam-se verdadeiros tipos de perigo abstrato (presumido ou de simples desobediência), bem como de mera conduta, sob o estofo de Leis de combate e com penas desproporcionais àquilo faticamente perpetrado.

De igual modo, outro grande problema desta antecipação é o retrocesso ao direito penal do autor, e não mais do fato, o que ocasiona punições por aquilo que se é, e não pelo que se faz. Tal marca, historicamente, remonta aos tatertypus de CESARE LOMBROSO ou, ainda, das perseguições nazistas aos judeus. 

Em nossos tempos, tem trazido grandes problemas com a caça àqueles que representam tradições islâmicas, precipuamente, nos Estados Unidos da América - que, não raras vezes, são julgados sem nem sequer ter a garantia ao devido processo legal (due process of law), como a possibilidade de um preso entrar em contato com seu defensor. 

Vislumbra-se, de mais a mais, o esboroar do princípio da presunção da não culpabilidade (presunção de inocência - artigo 5º, LVII, da CRFB; artigo 8º, nº 2 e 9, do Pacto de San José da Costa Rica, promulgado pelo Decreto nº678, de 6 de novembro de 1992), com a concreção de prisões como as de Abu-Ghraib (Iraque) ou de Guantánamo (Cuba), onde, por intermédio de técnicas agressivas de interrogatórios, se averiguam eventuais suspeitos de terrorismo. 

Tudo isso pautado no pensar de que "quem não presta uma segurança cognitiva suficiente de um comportamento pessoal, não só não pode esperar ser tratado ainda como pessoa, mas o Estado não deve tratá-lo, como pessoa, já que vulneraria o direito à segurança das demais pessoas". 

Sob essa premissa, até então estudada, como o direito penal do inimigo tende a combater o perigo, no quadrante de uma imaginária periculosidade social, emergem, nesse esteio, verdadeiras supressões de garantias materiais e processuais, com a similar pretensão de combater a criminalidade organizada com "tolerância zero".

Verbi gratia, a invasão norte-americana ao Paquistão, onde, na data de 2 de maio de 2011, veio a executar a vida de Osama bin Mohammed bin Awad bin Laden (Osama bin Laden), sem a existência de qualquer processo ou garantias mínimas, oriundas do procedural due process (dimensão formal, processual, procedimental do devido processo legal) e do substantive due process (dimensão material, substancial, do devido processo legal). 

Nasce, nesse jaez, o que SILVA SÁNCHEZ denominou de terceira velocidade punitiva - em contraposição à tradicional imposição de penas privativas de liberdade, nos quais se mantêm os princípios político-criminais e as regras de imputação (primeira velocidade) e as medidas despenalizadoras, pautadas no princípio da intervenção mínima, ultima ratio (segunda velocidade) -, onde sopesa a Maquiavélica cognição de que os funestos meios seriam capazes de justificar o aclamado fito de combate a criminalidade hodierna. 

3 - O Choro do Palhaço e o Emprego do Ignóbil Direito Penal do Autor. 

Decerto, uma vez explanado os alicerces nos quais se fundam as premissas desta (infeliz) percepção penal deveras punitiva, se faz necessário narrar um recente evento concretizado no dia 14 de agosto de 2015. 

Calha imergir! 

Em uma bucólica cidade do interior do Paraná, Cascavél, se encontrava Leonides Taborda Quadra - um encantador de almas; pintor das páginas alheias da vida; refletor de alegria ou, simplesmente palhaço - que, no desenrolar de seu show (em uma de suas brincadeiras lúdicas), pontuou que a policia militar do Paraná se tratava de "seguranças particulares pagos pelo povo", pois só protegiam o governador daquele Estado: Beto Richa. 

Se olvidando, decerto, de uma das lições trazidas no corpo da obra de Antoine de Saint-Exupéry (Le Petit Prince) - a de que "todas as pessoas grandes foram um dia crianças, mas poucas se lembram disso" -, o palhaço Tico Bonito foi detido por três equipes da Polícia Militar mais o auxílio de cavalaria. 

Seu crime? Meramente expressar uma opinião, fruto de um direito conquistado (apesar de inato!) com o sacrifício de muitas vidas ao longo dos tempos - em especial, com a Revolução Francesa (1789-1799), que empós a obra Constituinte Burguesa ("O que é o Terceiro Estado? / Qu´est-ce que le tier état?), escrita pelo abade Emmanuel Joseph Sieyès, com estofo no supreme power de John Locke (Dois Tratrados sobre o Governo) e no Contrato Social de Jean-Jacques Rousseau, proclamou a insurreição da Burguesia-Povo (3º Estado) para as decisões políticas que diziam respeito a sua própria sina e deu lastro a Déclaration des Droits de l´Homme et du citoyen (Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão), onde se trouxe a premissa de que "os homens nascem e são livres e iguais em direitos". 

Ou seja, punido com o espeque naquilo que se elucubrou! Houve a concreção de uma sanção com pálio numa imaginária periculosidade social e com uma arbitrária prisão pautada pelo verberar da "tolerância zero", uma vez que nenhuma norma fora vilipendiada - até porque, digno de nota, para que se perfizesse o ilícito do desacato (tipificado no artigo 331 CP), seria necessário o dolo (elemento subjetivo) de desprestigiar a função exercida pelo sujeito passivo. 

Vale dizer! Para a concreção do ilícito de desacato, não basta a existência de mera crítica ou censura - como a realizada no caso em concreto, onde houve uma referência ao nefasto episódio em que diversos docentes foram agredidos (em 29 de abril deste ano) ao pleitearem: a) a não transferência de 8,5 bilhões de reais da previdência dos servidores para a caixa do governo; b) o fim de 2,2 mil turmas concentradas, mormente, nas áreas rurais; e c) a concreção de planos de cargos com melhores remunerações do Estado Paranaense . 

Assim, a polícia se esqueceu de que, para um palhaço (tal qual para um comediante), seu maior dessabor estaria na ausência do riso, se tornando dispensável (de maneira absoluta) o uso da força punitiva nesta situação. 

4 - O Constitucionalismo Contemporâneo e a Vedação do Retrocesso (Efeito Cliquet) . 

Antes de serem abordadas as conclusões acerca do direito penal do inumano (empregado de forma infeliz no caso de Tico Bonito), é digno de nota que o direito se encontra, desde os primórdios, em constante evolução. 

A cada passagem da história, principalmente naquelas partes onde o ser humano se encontra em algum estado deplorável, exsurge uma regra nova, tutelando-o, dando guarida. 

Exempli gratia, o princípio da isonomia perante a lei, no Estado Nazista, foi substituído pelo da igualdade de deveres e pelo de prevalência do bem comum sobre o individual. Ou seja, o Partido Nacional Socialista, sectário e intolerante como as demais ditaduras, absorveu inteiramente a personalidade humana e anulou todos os valores individuais.

Ocorre que, com o findar da segunda grande guerra mundial e com o impacto causado pelas atrocidades perpetradas naquele período, desponta uma nova dogmática, denominada de Neoconstitucionalismo, onde a dignidade da pessoa humana aflora como valor jurídico supremo. 

Insta asseverar. Consagrado o denotado dogma nas Constituições de diversos países, o ser humano permutou de mero reflexo da ordem jurídica para ser considerado o seu objeto supremo. Noutra palavra. Tornou-se o centro e o fim do direito. 

De tal arte, o Estado se tornou um meio para atingir determinado objetivo, tutelando o cidadão - novo centro e fim do direito. 

Para tanto, no constitucionalismo contemporâneo, combinou-se a idéia de garantia jurisdicional (constitucionalismo norte-americano) e o forte conteúdo normativo, com exacerbada tutela de direitos fundamentais (constitucionalismo francês). 

Buscaram-se, na verdade, instrumentos capazes de permitir a limitação legal e que possibilitassem sua conformação com axiomas da justiça - que seriam colocados numa posição superior e infiltrados nas constituições, haja vista a supremacia da constituição. 

Houve, nessa vereda, uma rematerialização da Constituição, onde se começou a consagrar um extenso rol de direitos fundamentais, e uma observância da força normativa constitucional. 

Nessa senda, em pós visualizar todo o processo histórico, bem como o sofrimento de gerações, que foram enfrentadas para se chegar ao tal momento evolutivo, ilógico seria viabilizar-se um retrocesso, com eventual supressão de direitos e garantias. 

Daí, a real incompatibilidade do direito penal do inimigo com o efeito cliquet, que obsta qualquer retrocesso de garantias, sendo, considerado, por muitos, inclusive uma real limitação ao poder constituinte originário (limitação transcendente, de acordo com JORGE MIRANDA). 

5 - Conclusão. 

O direito penal do inimigo (ou do inumano), no afã de reprimir todo indivíduo que, aparentemente, externa certa periculosidade social (como o caso ocorrido no Paraná), regride às ideias de Estados totalitários, onde o jus se reduzia a Lex e as leis e atos governamentais objetivavam a população no seu todo, pouco importando o sacrifício ou a negação de interesses ou direitos individuais, haja vista que o Estado era o absoluto e os indivíduos e grupos o relativo. 

Denotada similaridade, en passant, vislumbra-se na afirmação trazida por BENITO MUSSOLINI e ROCCO: la dottrina fascista nega il dogma della sovranitá populare, che é ogni giorno smentido della realtá, e proclama in sua vece il dogma della sovranitá dello Stato. 

Vai-se além! Com a eventual aplicação deste direito, o Estado se tornaria criador exclusivo do direito e da moral, não encontrando limites morais ou materiais à sua autoridade. Daí aquela máxima: Tudo dentro do Estado, nada fora do Estado, nada contra o Estado. 

Finca-se, assim, a ponderação de que "os paradigmas preconizados pelo direito penal do inimigo mostram aos seus inimigos, toda a incompetência Estatal, ao reagir com irracionalidade, ao diferenciar o cidadão normal do outro". 

Como nos parece salutar, a contenda entre posições extremadas é o prelúdio de sempre ao advento ou retorno do meio termo, que é a expressão do equilíbrio ou da justa medida (NELSON HUNGRIA). 

Nesse cipoal, com lastro no princípio constitucional da razoabilidade ou da proporcionalidade, deve-se buscar um ponto de equilíbrio entre o direito de punir aquele indivíduo, não raras vezes, mais bem preparado que o próprio Estado (direito penal subjetivo). E, de outro turno, aquele interesse de assegurar os direitos fundamentais de todo e qualquer cidadão. 

Vale elucubrar. Deve-se ponderar, sopesar, a relação custo-benefício da medida. Ou seja, balancear os danos que possa causar e os resultados a serem obtidos. 

Por enquanto, pode-se asseverar que "a supressão e a relativização das garantias constitucionais despersonalizam o ser humano, fomentando a metodologia do terror, repressiva de idéias, de certo grupo de autores, e não de fatos". 

Fato que, nos leva a crer, que aquilo que se denomina direito penal do inimigo não pode ser Direito. Direito penal do cidadão é um pleonasmo; direito penal do inimigo uma contradição em seus termos.

 

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