André Nicolitt -
O senhor acredita que o garantismo penal está sofrendo mudanças abruptas? Há motivos para preocupação?
O garantismo penal pressupõe estrita obediência à Constituição, em primeiro lugar, e às leis, que devem estar integralmente compatíveis com as normas constitucionais. Caso contrário, não devem ser aplicadas por sofrerem de inconstitucionalidade. O julgador não deve encontrar respostas para casos concretos que o desvincule do arcabouço legal e constitucional, sob pena de ingressar no campo do arbítrio. Importante destacar, ainda, que não se deve ponderar normas, mas sim as circunstâncias fáticas. Acredito que há motivos para preocupação sim, já que, algumas vezes, alcançados pelo poder midiático e pela pressão popular (influenciada em grande parte pelos programas policiais sensacionalistas), os julgadores buscam respostas que não encontram amparo legal tampouco constitucional. Para o garantismo penal o princípio da legalidade e da separação de poderes são muito importantes, além da necessária efetividade dos direitos fundamentais.
Como o senhor enxerga o respeito à legalidade nos últimos acontecimentos? O senhor acha que há desvios na interpretação?
No Direito, ao contrário da Política, os fins não justificam os meios. É muito perigoso quando, pretendendo alcançar fins legítimos, usa-se de meios ilegais. Esse tipo de conduta é inadmissível e pode causar nulidades que acabam por prejudicar a efetivação da Justiça e a defesa do interesse da sociedade. Um exemplo claro desse tipo de conduta foi a Operação Castelo de Areia, anulada pelo STJ em 2011 e confirmada sua anulação pelo STF em 2015, pelo fato de ter se utilizado de interceptações telefônicas ilegais. O juiz não pode pautar suas condutas na vontade popular; é por isso que sua legitimidade está na Constituição, e não em votos.
Princípios como o do juiz e promotor natural nunca foram tão debatidos. Como o senhor vê estas questões saindo dos manuais e sendo questionadas pelos populares?
O princípio do juiz natural é uma garantia do indivíduo. Ninguém pode escolher seus julgadores e os juízes não podem escolher suas causas. Quando as práticas judiciárias quebram os princípios de um processo penal democrático e se opta por um processo penal do espetáculo, é muito comum os questionamentos pela opinião pública ou publicada, sobre estes e outros princípios.
O senhor acha que nosso caso Lava Jato há alguma ofensa ao princípio acusatório ou da separação do juiz e acusador?
A nossa Constituição, embora não tenha feito referência expressa à estrutura acusatória do processo penal, consagrou princípios e regras que não deixam que paire quaisquer dúvidas sobre a adoção deste sistema. Ao contrário do modelo inquisitório – que não foi adotado pela Constituição vigente – o sistema acusatório prima pela separação das funções de acusar, defender e julgar. Os processos são públicos e dotados de contraditório, há garantia de defesa e a liberdade é a regra, sendo a prisão verdadeiramente a exceção. O que é possível perceber da referida operação Lava Jato é um excesso de cobertura formando o que se chama publicidade opressiva. Ademais, é preocupante o acesso que os meios de comunicação tem a elementos sigilosos, o que gera um debate sobre vazamentos que muitos taxam até mesmo de seletivos. O que doutrinariamente tenho criticado é a precedência das prisões ao mecanismo de delação premiada que reiteradas vezes ocorreu nesta operação.
Como o senhor se posiciona acerca da condução coercitiva do investigado em Inquérito Policial?
Antes de mais nada, é importante frisar que o acusado tem o direito de permanecer em silêncio e de não produzir prova contra si mesmo (nemotenetur se detegere), garantias que além de consagradas no texto constitucional, fincam raízes nos tratados internacionais sobre direitos humanos. Além disso, em função do princípio da ampla defesa, o acusado tem o direito de estar presente nas audiências ou em qualquer outro ato, não sendo isto um dever. Feitas essas considerações, entendo que a condução coercitiva viola a Constituição vigente, uma vez que vai de encontro ao que pregam as normas e princípios constitucionais. Também não é viável prática e economicamente conduzir o acusado “debaixo de vara” para depor se o mesmo não é obrigado a falar. Pior do que isso é a condução sem a devida recusa do investigado em comparecer, pois aí o julgador estaria inovando no ordenamento jurídico e adentrando no campo que é papel do Poder Legislativo. Mesmo para quem vislumbre utilidade na condução coercitiva de investigados, esta, por força de lei, só tem lugar quando intimado, o indiciado deixa de comparecer ou se recusa.
Como o senhor encara a nova intepretação do STF acerca do Princípio da Presunção de Inocência?
Encaro como um dos maiores retrocessos na história da Suprema Corte. A Constituição da República preceitua em seu art. 5º, LVII, que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. Trânsito em julgado pressupõe o esgotamento da via recursal. Logo, da leitura literal do texto constitucional, não vejo como alguém possa ser recolhido à prisão após sentença proferida em 2º grau em virtude da possibilidade de interposição de recursos. Dados apresentados pelo Min. Celso de Mello mostram que aproximadamente 25% dos recursos que chegam ao STF e STJ são revertidos, o que demonstra que há uma parcela significativa de condenações revertidas em sede extraordinária. Imagine cumprir uma pena de prisão por 3 anos e ter posteriormente a absolvição nas instâncias extraordinária, como restituir o tempo? Não há indenização financeira que devolva ao apenado seu tempo no cárcere. Me assustou também o fato de alguns Ministros utilizarem como um de seus argumentos o fato de que esse novo entendimento corresponderia à vontade popular. Há que se falar também que tal medida inchará ainda mais o já superlotado e desumano sistema carcerário, além de contrariar as posturas que vêm sendo adotadas pelo CNJ visando diminuir o número de presos provisórios e o déficit carcerário. Eu fiz um vídeo em meu canal no YouTube (Prof. André Nicolitt) discutindo os reflexos desse julgamento.
Qual seu entendimento sobre a divulgação de interceptações telefônicas?
A Lei 9.296/96 pautou a interceptação telefônica nos seguintes moldes: (i) deve ocorrer para fins de investigação criminal e instrução processual, (ii) depende de ordem judicial competente para a ação principal e (iii) observará o segredo de justiça. Além disso, o art. 8º da lei prevê que a interceptação ocorrerá em autos apartados, apensados aos autos do inquérito policial ou do processo criminal, preservando-se o sigilo das diligências, gravações e transcrições. Prevê a lei ainda que a gravação que não interessar ao processo será inutilizada e que a quebra de seu segredo de justiça é crime com pena de reclusão de 2 a 4 anos. O legislador se cercou de cuidados pois a interceptação é medida extrema que afeta a profunda intimidade do indivíduo. Não enxergo em hipótese alguma proporcionalidade e razoabilidade ou interesse público em divulgar uma interceptação de conversas pessoais, muito menos de conversas alheias ao objeto da investigação. Não se pode combater o crime cometendo outro.
Como o senhor vê o impacto na midiatização da justiça na formação da decisão do julgador?
Essa é uma questão bastante interessante que inclusive trato no meu Manual de Processo Penal. A publicidade do processo é uma garantia fundamental que caminha ao lado da liberdade de expressão. Talvez aqui resida um dos maiores entraves para a realização de julgamentos pautados no devido processo (processo justo). Muitas vezes, e agora ainda mais, devido à popularização da internet, a cobertura midiática dos julgamentos, não raro, se traduz numa publicidade opressiva. Não há dúvidas que a liberdade de expressão e a publicidade são garantias constitucionais que visam a proteção e a dignidade do indivíduo, não podendo ser convertidas em instrumento de opressão, prejudicando o direito ao julgamento justo. É por isso que, em casos concretos, é possível limitar a publicidade em prol da garantia da dignidade do indivíduo. É certo que há grande diferença entre a verdade produzida pela mídia e a produzida pelo processo, limitado por princípios éticos e legais que não encontram abrigo no jornalismo investigativo. Um exemplo de publicidade opressiva que feriu frontalmente a dignidade humana foi o ocorrido no caso da Escola Base, em São Paulo, em que os proprietários da escola foram acusados equivocadamente de abuso sexual. Um mês após o ocorrido, o inquérito foi arquivado por falta de provas, mas já era tarde demais.
O Estatuto da Primeira Infância prevê um novo regime prisional para condenadas mães. Poderia dar-nos sua opinião sobre o tema?
Acho que o princípio do maior interesse da criança deve condicionar a legislação e dar mais dignidade não só as crianças mais também às mulheres que ostentam a condição de ré e de condenadas.
Como o senhor acha que o Direito Garantista sairá desta forte crise institucional, ética e moral que assola o país?
Acredito que estamos vivenciado a maior crise da democracia brasileira, após o longo e triste período de ditadura militar. No fim do ano passado tivemos a decisão do STF que autorizou o ingresso no domicílio durante à noite, sem mandado, mediante justificação posterior. Foi um dos maiores ataques à Constituição. Em seguida vimos a inovação de um “decreto de prisão em flagrante” relativamente a um membro do congresso nacional que só poderia ser preso por crime inafiançável, o que não ocorria na hipótese. Em seguida tivemos o aviltamento da presunção de inocência com a possibilidade de execução provisória da pena. Nas instâncias inferiores, assistimos também decisões divorciadas do sistema constitucional. No parlamento, projetos de leis medonhas e nas ruas o clamor popular. A falta de racionalidade, de diálogo e de reflexão é um cenário perfeito para uma onda totalitária perigosa. Acho que o direito muito já perdeu e muito ainda perderá. Como explica Walter Beijamin, a história não é feita de progresso. Há retrocessos constantes. Estou muito pessimista com o contexto atual, mas temos a tarefa de continuar ensinando e lutando por um processo penal democrático.