Gilberto Valente Martins -
Protagonizado pelas inúmeras ações do Ministério Público, conjuntamente com o Poder Judiciário, os brasileiros e até mesmo a comunidade internacional vêm acompanhando um momento histórico — que se espera de transformação — em nosso país, no combate a um câncer social.
Inúmeros estudiosos afirmam existir uma corrupção endêmica nos vários setores do Estado e da própria sociedade brasileira. Efetivamente, segundo o Índice de Percepção de Corrupção (IPC-2015), da Transparência Internacional, o Brasil ocupa apenas a inglória 76º posição. Com uma queda significativa de pontuação em comparação ao ano anterior do IPC, o abismo que separa o Brasil da Dinamarca — líder do ranking — é consideravelmente maior que a diferença de pontuação entre Brasil e Somália — o país que pior resultado apresenta nessa matéria.
A Ação Penal 470 — o processo do "mensalão” — e a operação “lava jato”, em curso na Justiça Federal de Curitiba — com desdobramentos em outros estados — e no Supremo Tribunal Federal, expôs para a sociedade o grau de putrefação da política nacional, comprometendo parlamentares, governantes e grandes “empresários do crime”.
Temos como certo que as instituições que protagonizam neste cenário, contrariando grandes interesses econômicos e pessoas com poder politico, passam a ser alvo de medidas de retaliações com o propósito de desestabilizar o sistema de justiça, visando arrefecer e frear as referidas ações, inviabilizando a repressão da corrupção.
Nesse contexto, para ficar no passado recente, destacam-se medidas legislativas como, por exemplo, a “Lei da Mordaça” e a PEC 37 — a famigerada “PEC da Impunidade”. Atualmente, a sanha desestruturante do sistema republicano tem crescido naqueles que estão sendo diretamente alcançados pelas mãos da Justiça, que utilizando (ou abusando) do seu poder legiferante, tentam subjugar o Judiciário e o Ministério Público.
Com certa habilidade, usando frases de efeito e a visibilidade dos meios de comunicação, algumas personalidades tentam passar para a sociedade a ideia do cometimento de abusos e desrespeitos aos direitos fundamentais. Atualmente, a estratégia é aprovar uma nova legislação intitulada de “Lei de Abuso de Autoridade”, contra juízes e membros do Ministério Público, e retomar o curso da Proposta de Emenda Constitucional que trata das punições destas autoridades.
Especificamente quanto à PEC que pretende acabar com a pena de aposentadoria compulsória, o discurso tem levado alguns desavisados a acreditar que isso traria avanços para o sistema de repressão e combate aos atos de improbidade e corrupção. Ledo e gravíssimo engano.
O que se pretende com esta PEC nada mais é do que suprimir do texto constitucional uma garantia do Poder Judiciário e do Ministério Público. Conforme asseguram vários juristas, trata-se de uma garantia da sociedade e da independência dos Poderes: a vitaliciedade.
Os magistrados, enquanto integrantes de Órgãos de Soberania, devem estar protegidos de ataques e retaliações de outros segmentos da sociedade, inclusive de outros poderes. Um Estado de Direito não se sustenta sem uma clara independência e separação horizontal de poderes. Os tratados internacionais convergem neste sentido, como os que tratam das estruturas dos Estados para o enfrentamento da corrupção e aqueles que asseguram direitos fundamentais. A título de exemplo, a Declaração Universal dos Direitos do Homem, no seu artigo X, dispõe que “Todo ser humano tem direito, em plena igualdade, a uma justa e pública audiência por parte de um tribunal independente e imparcial, para decidir sobre seus direitos e deveres ou do fundamento de qualquer acusação criminal contra ele”.
A evolução dos sistemas constitucionais e das democracias trouxe como garantia irreversível um modelo de separação e independência dos três poderes. A autonomia do poder judicial assume-se como corolário de um longo processo histórico, no âmbito do qual foram sendo instituídas prerrogativas a fim de limitar o exercício de poderes e assegurar aos cidadãos um julgamento justo. Com caráter precursores, assim fizeram a Magna Carta de 1215, na Inglaterra, e posteriormente, em 1689, a Bill of Rights, naquela que é a maior democracia do mundo ocidental.
Contemporaneamente, diversos tratados internacionais são responsáveis por nortear as Nações no sentido de introduzir e garantir regras de independência e autonomia do Judiciário na estrutura do Estado. Indo além dos níveis nacionais, também o sistema de justiça organizado no âmbito da integração europeia refere a exigência de independência dos juízes e advogados-gerais do Tribunal de Justiça da União Europeia.
As indagações que devemos fazer e tentar responder satisfatoriamente para a sociedade são as seguintes: no que consiste a vitaliciedade?; será que os juízes, promotores e procuradores do Ministério Público somente estão sujeitos a pena máxima de aposentadoria compulsória?; a vitaliciedade é uma garantia que está inserida somente no nosso ordenamento jurídico?; e, finalmente, devemos mudar esta regra constitucional?
Quanto à primeira, por força constitucional, todo servidor público que ingresse por concurso, após o estágio probatório, adquire estabilidade. Esta consiste na garantia de que seu desligamento da administração somente pode ocorrer após um procedimento administrativo disciplinar por cometimento de falta grave, assegurando-se a ampla defesa e o contraditório. Relativamente aos juízes e membros do Ministério Público, que têm assegurados pela Constituição a vitaliciedade, significa isto que somente podem perder o cargo por decisão judicial, também se garantindo a ampla defesa e o contraditório.
Do exposto, resulta, portanto, que a distinção entre as noções de vitaliciedade e estabilidade prende-se com o meio processual pelo qual cada uma das duas pode ser posta em causa. Enquanto a primeira é objeto de um processo judicial, a segunda é tratada pela via administrativa.
Para a segunda pergunta a resposta não tem sido repassada para a sociedade de forma completa. Na verdade, o que se tem dito não representa a correta interpretação do texto constitucional. A perfeita hermenêutica do sistema de garantias não tem sido divulgada na sua integralidade. Devido as recentes punições aplicadas pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) a alguns magistrados, a imprensa tem sido o canal para críticas que afirmam ser a aplicação dessas sanções um “prêmio” para os magistrados, uma vez que passam a ser remunerados sem exercer funções.
Todavia, deve ser dito que, naturalmente, não se trata de um “prêmio” e muito menos da única pena a que estão submetidos os juízes, promotores e procuradores. As sanções aplicadas tanto no CNJ como no CNMP são de natureza administrativa e não inviabilizam as outras penas que podem derivar da responsabilidade penal e da ação civil para perda do cargo ou da aposentadoria — estas de natureza judicial. Com efeito, estas últimas soluções produzirão a quebra de qualquer relação jurídica dessas autoridades com a instituição que integrarem, deixando de receber qualquer subsídio ou remuneração.
Portanto, devemos ressaltar que, pelo princípio da independência das instâncias de responsabilidade, os juízes, promotores e procuradores do MP, quando envolvidos em ilícitos graves, estão sujeitos às mesmas sanções a que é susceptível qualquer servidor público.
Passando para a terceira indagação, de forma objetiva, podemos afirmar, seguramente, que a vitaliciedade não é invenção dos brasileiros e tampouco está inserida somente em nosso ordenamento jurídico. A vitaliciedade, como afirmado acima, é uma garantia de um sistema de justiça independente, comum aos Estados democráticos. Trata-se de uma prerrogativa que assegura a imparcialidade dos membros do poder judiciário, teoricamente, tornando-os imunes às intervenções de outros poderes.
Qualquer Nação moderna, que se assuma como um Estado de Direito, observando regras internacionais e padrões de independência dos órgãos de soberania, mantêm em suas leis fundamentais a vitaliciedade dos integrantes do Poder Judiciário e do Ministério Público. Vejamos o que diz a Constituição Alemã, fonte de inspiração de outros sistemas:
“Artigo 97, II - Os juízes titulares e nomeados definitivamente com caráter permanente não poderão, contra a sua vontade, ser destituídos antes de terminado o prazo de exercício das suas funções, ser suspensos dos seus cargos definitiva ou temporariamente, transferidos para outro posto ou aposentados, salvo em virtude de uma decisão judicial e exclusivamente por motivos e formas prescritos nas leis. A legislação pode fixar limites etários, passados os quais serão aposentados os juízes nomeados com caráter vitalício. Ao modificar-se a organização dos tribunais ou suas jurisdições, os juízes poderão ser transferidos para outro tribunal ou afastados do cargo, desde que continuem recebendo seus vencimentos integrais.”
Na França não é diferente. Embora tratada terminologicamente como inamovibilidade, esta deve ser entendida, igualmente, como uma das garantias de imparcialidade que conferem segurança e estabilidade diferenciada dos demais servidores públicos aos magistrados judiciais e do parquet.
A Espanha, para garantir a independência do Poder Judiciário, preserva as prerrogativas de seus membros dispondo no Capitulo VI da Constituição que:
“Artículo 117 - 1. La justicia emana del pueblo y se administra en nombre del Rey por Jueces y Magistrados integrantes del poder judicial, independientes, inamovibles, responsables y sometidos únicamente al imperio de la ley.”
À semelhança da legislação francesa, inamovibles constante do artigo acima, confere segurança e estabilidade ao membro do judiciário.
Com sistema semelhante ao nosso, Portugal assegurou aos seus magistrados a vitaliciedade, regulamentando no artigo 216º da Constituição:
“1. Os juízes são inamovíveis, não podendo ser transferidos, suspensos, aposentados ou demitidos senão nos casos previstos na lei.”
O Estatuto dos Magistrados Judiciais de Portugal, Lei 21/85, em seu artigo 6º, assevera:
“Os magistrados judiciais são nomeados vitaliciamente, não podendo ser transferidos, aposentados ou demitidos ou por qualquer forma mudados de situação, senão nos casos previstos neste Estatuto.”
Concluindo, em resposta a quarta questão, temos como certo que retirar a garantia da vitaliciedade dos juízes, promotores e procuradores do texto constitucional, além de caracterizar uma grave violação de cláusula pétrea, ferindo de morte a independência dos poderes, tornaria o Judiciário e o Ministério Público excessivamente permeáveis ao poder político, impediria o combate eficiente da corrupção e levaria o Estado para absoluto descrédito social.