RELATOR: MIN. LUIZ FUX -
Penal. Denúncia e queixa-crime. Incitação ao Crime, injúria e calúnia. Transação penal. Não Oferecimento. Manifestação de desinteresse pelo acusado. Imunidade parlamentar. Incidência quanto às palavras Proferidas no recinto da câmara dos deputados. Entrevista. Ausente conexão com o desempenho da função Legislativa. Inaplicabilidade do art. 53 da constituição Federal. Preenchimento dos requisitos do art. 41 do código De processo penal quanto aos delitos de incitação ao Crime e de injúria. Recebimento da denúncia e rejeição Parcial da queixa-crime, quanto ao crime de calúnia. 1. Os Tratados de proteção à vida, à integridade física e à dignidade da mulher, com destaque para a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher - “Convenção de Belém do Pará” (1994); a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher – “Carta Internacional dos Direitos da Mulher” (1979); além das conferências internacionais sobre a mulher realizadas pela ONU – devem conduzir os pronunciamentos do Poder Judiciário na análise de atos potencialmente violadores de direitos previstos em nossa Constituição e que o Brasil se obrigou internacionalmente a proteger. 2. Os direitos humanos, na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, são analisados sob o enfoque de que “em matéria de direitos humanos, a interpretação jurídica há de considerar, necessariamente, as regras e cláusulas do direito interno e do direito internacional, cujas prescrições tutelares se revelam – na interconexão normativa que se estabelece entre tais ordens jurídicas – elementos de proteção vocacionados a reforçar a imperatividade do direito constitucionalmente garantido” (HC 82.424, Tribunal Pleno, Rel. Min. Moreira Alves, rel. para Acórdão Min. Maurício Corrêa, j. 17/09/2003, DJ 19/03/2004). 3. A Lei Maria da Penha inaugurou o novel paradigma que culminou, recentemente, no estabelecimento de pena mais grave o Feminicídio, não admite que se ignore o pano de fundo aterrador que levou à edição dessas normas, voltadas a coibir as cotidianas mortes, lesões e imposições de sofrimento físico e psicológico à mulher. Não é por outro motivo que o art. 6º da Lei 11.340/2006 estabelece que “A violência doméstica e familiar contra a mulher constitui uma das formas de violação dos direitos humanos” e que, em seu art. 7º, o mesmo diploma preveja a proteção da mulher contra “a violência psicológica, entendida como qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da auto-estima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação”. 4. Discursos que relativizam a gravidade e a abjeção do crime sexual contribuem para agravar a vitimização secundária produzida pelo estupro, porquanto a característica principal do sistema processual penal é um profundo desinteresse pela vítima. Deveras, conforme pesquisa de Claire Sherman Thomas, a defesa do criminoso sexual tende a justificar a conduta violenta por meio da atribuição de culpa à própria vítima. 5. A violência sexual deve ser lida como um processo consciente de intimidação pelo qual todos os homens mantêm todas as mulheres em estado de medo, sendo certo que o estupro é um crime não de luxúria, mas sim de exercício de violência e poder, conforme conceituação de aceitação internacional formulada por Susan Brownmiller. 6. O direito exerce importante papel na construção social das diversas e variadas subjetividades, donde decorre a necessidade de os operadores jurídicos considerarem a realidade das relações sociais, com o fim de consolidar um olhar distinto diante da discriminação e da violência que caracterizam as relações de gênero no país. 7. A incitação ao crime, enquanto delito contra a paz pública, traduz afronta a bem jurídico diverso daquele que é ofendido pela prática efetiva do crime objeto da instigação. 8. A incitação ao crime abrange tanto a influência psíquica, com o objetivo de fazer surgir no indivíduo (determinação ou induzimento) o propósito criminoso antes inexistente, quanto a instigação propriamente dita, que reforça eventual propósito existente. Consectariamente, o tipo penal do art. 286 do Código Penal alcança qualquer conduta apta a provocar ou a reforçar a intenção da prática criminosa. Na valiosa lição de Nelson Hungria, incita a prática do crime aquele que atira a primeira pedra contra a mulher adúltera. 9. In casu, (i) o parlamentar é acusado de incitação ao crime de estupro, ao afirmar que não estupraria uma Deputada Federal porque ela “não merece”; (ii) o emprego do vocábulo “merece”, no sentido e contexto presentes no caso sub judice, teve por fim conferir a este gravíssimo delito, que é o estupro, o atributo de um prêmio, um favor, uma benesse à mulher, revelando interpretação de que o homem estaria em posição de avaliar qual mulher “poderia” ou “mereceria” ser estuprada. 10. A relativização do valor do bem jurídico protegido – a honra, a integridade psíquica e a liberdade sexual da mulher – pode gerar, naqueles que não respeitam as normas penais, a tendência a considerar mulheres que, por seus dotes físicos ou por outras razões, aos olhos de potenciais criminosos, “mereceriam” ser vítimas de estupro. 11. O desprezo demonstrado pelo bem jurídico protegido (dignidade sexual) reforça e incentiva a perpetuação dos traços de uma cultura que ainda subjuga a mulher, com potencial de instigar variados grupos a lançarem sobre a própria vítima a culpa por ser alvo de criminosos sexuais, deixando, a depender da situação, de reprovar a violação sexual, como seria exigível mercê da expectativa normativa. 12. As recentes notícias de estupros coletivos reforçam a necessidade de preocupação com discursos que intensifiquem a vulnerabilidade das mulheres. 13. In casu, (i) a entrevista concedida a veículo de imprensa não atrai a imunidade parlamentar, porquanto as manifestações se revelam estranhas ao exercício do mandato legislativo, ao afirmar que “não estupraria” Deputada Federal porque ela “não merece”; (ii) o fato de o parlamentar estar em seu gabinete no momento em que concedeu a entrevista é fato meramente acidental, já que não foi ali que se tornaram públicas as ofensas, mas sim através da imprensa e da internet; (iii) a campanha “#eu não mereço ser estuprada”, iniciada na internet em seguida à divulgação das declarações do Acusado, pretendeu expor o que se considerou uma ofensa grave contra as mulheres do país, distinguindo-se da conduta narrada na denúncia, em que o vocábulo “merece” foi empregado em aparente desprezo à dignidade sexual da mulher. 14. (i) A incitação ao crime, por consubstanciar crime formal, de perigo abstrato, independe da produção de resultado naturalístico. (ii) A idoneidade da incitação para provocar a prática de crimes de estupro e outras violências, físicas ou psíquicas, contra as mulheres, é matéria a ser analisada no curso da ação penal. (iii) As declarações narradas na denúncia revelam, em tese, o potencial de reforçar eventual propósito existente em parte daqueles que ouviram ou leram as declarações, no sentido da prática de violência física e psíquica contra a mulher, inclusive novos crimes contra a honra de mulheres em geral. (iv) Conclusão contrária significaria tolerar a reprodução do discurso narrado na inicial e, consequentemente, fragilizar a proteção das mulheres perante o ordenamento jurídico, ampliando sua vitimização. 15. (i) A imunidade parlamentar incide quando as palavras tenham sido proferidas do recinto da Câmara dos Deputados: “Despiciendo, nesse caso, perquirir sobre a pertinência entre o teor das afirmações supostamente contumeliosas e o exercício do mandato parlamentar” (Inq. 3814, Primeira Turma, Rel. Min. Rosa Weber, unânime, j. 07/10/2014, DJE 21/10/2014). (ii) Os atos praticados em local distinto escapam à proteção da imunidade, quando as manifestações não guardem pertinência, por um nexo de causalidade, com o desempenho das funções do mandato parlamentar. 16. A incitação ao crime, mercê da pena máxima de seis meses prevista no art. 286 do Código Penal, se enquadra no conceito de crime de menor potencial ofensivo, à luz do art. 61 da Lei 9.099/95. 17. Os benefícios previstos nos arts. 76 e 89 da Lei nº 9.099/95 não podem ser concedidos pelo Poder Judiciário sem que o titular da ação penal tenha oferecido a proposta (Inq. 3438, Primeira Turma, Rel. Min. Rosa Weber, unânime, DJE 10/02/2015). Consecteriamente, abre-se a fase de análise da viabilidade da denúncia, máxime quando o acusado manifesta desinteresse na transação penal. 18. O concurso formal, in foco, justifica o julgamento conjunto da queixa-crime oferecida por crimes de injúria e calúnia. 19. À luz das premissas teóricas anteriormente estabelecidas na análise do tipo penal do art. 286 do Código Penal, verifica-se a adequação da conduta ao tipo penal objetivo do crime de injúria, diante da exposição da imagem da Querelante à humilhação pública, preenchendo, ainda, o elemento subjetivo do art. 140 do Código Penal, concretizado no animus injuriandi e no animus offendendi. 20. A dúvida razoável sobre ter sido a resposta proporcional a eventuais ofensas sofridas não restou comprovada, porquanto não foi mencionada expressamente qualquer provocação pessoal, direta e censurável da Querelante ao Querelado, na data dos fatos narrados na Inicial da Queixa- Crime. 21. O crime de calúnia somente se configura quando seja atribuída à vítima a prática de fato criminoso específico, com intenção de ofender sua reputação (INQ 2084, Tribunal Pleno, Rel. Min. Carlos Velloso, DJ 09/09/2005), por isso que, no caso sub examine, a inicial da Queixa-Crime deve ser parcialmente rejeitada, porquanto não narra de que maneira a afirmação do Deputado, de que teria sido chamado de “estuprador” pela Querelante, poderia ter ofendido a honra da Deputada Federal. 22. Ex positis, à luz dos requisitos do art. 41 do Código de Processo Penal, recebo a denúncia pela prática, em tese, de incitação ao crime; e recebo parcialmente a queixa-crime, apenas quanto ao delito de injúria. Rejeito a Queixa-Crime quanto à imputação do crime de calúnia.
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