Ruiz Ritter -
Em meio a tantos escândalos de corrupção no país, com consequentes cobranças sociais por respostas imediatas dos Poderes Judiciário, Executivo e Legislativo (tendo-se o Ministério Público Federal, inclusive, sugerido 10 medidas contra a corrupção – as quais já foram muito bem enfrentadas em edição especial deste Boletim, não é de todo surpreendente a decisão do STF (HC 126.292 – julgado em 17.02.2016 que, alterando a jurisprudência da Corte, passou a admitir a execução antecipada da pena (leia-se após o julgamento em segunda instância).
Isso não diminui um justificado sentimento de frustração, é verdade. Um ataque como esse à Constituição é frustrante a qualquer cidadão que reconhece o Estado Democrático de Direito. Mas, tampouco diminui o compromisso que a academia deve ter com a democracia (na perspectiva substancial do conceito, frisa-se), que se vê ameaçada e precisa resistir. É nesse contexto, portanto, que se insere o presente texto, que tem por finalidade a consignação de uma profunda irresignação e a acentuação, em tom de advertência, da dimensão da presunção de inocência, vítima desse lamentável julgamento.
Sem adentrar no mérito dos argumentos (extremamente problematizáveis) lançados no acórdão já publicado (17.05.2016) para fundamentar o infundamentável, há algo de nefasto no respectivo decisum, que por mais que se volte atrás (e se espera que sim), impõe uma reflexão imediata: a expressa violação da Constituição Federal pela Corte que deve(ria) lhe resguardar(!), por meio da relativização da (con)sagrada presunção de inocência. É isso mesmo. Assim como a grande parte das nulidades processuais penais (para não dizer todas), agora foi a vez dela. Ora valerá até trânsito em julgado de sentença penal condenatória, ora até o julgamento em segunda instância.
Aliás, a relação da relativização das nulidades com tal decisão também deve ser aqui registrada. Afinal, quando se fala (e muito se tem ouvido e lido isso) de que em terceira instância não se julga o mérito da causa, ignora-se que um mérito em que foram violadas garantias constitucionais em primeiro grau, confirmado em segundo grau – por eventual convalidação ou interpretação de que não houve prejuízo(?!) –, não serve à Constituição e tampouco ao Estado Democrático de Direito. Serve, será, a alguém?
Enfim, fechando os olhos, por falta de espaço, para as demais consequências desastrosas resultantes dessa nova jurisprudência (como, a título de exemplo, as questões atinentes ao duplo grau de jurisdição; ao devido processo legal; ao trânsito em julgado; ao ativismo judicial; à insegurança jurídica; à prescrição da pretensão executória; e, aos arts. 63, 118, 119, 122, 123, 133, 283, 334, 377, 379, 428, 581, XIX, 674, 686, 689, § 2.º, 691, entre outros, do CPP; sim, elas são muitas), oportuníssimo momento para se recordar a extensão e a importância do princípio da presunção de inocência, para que então se possa avaliar se é aceitável que os Ministros do STF passem a lhe obstaculizar (em termos de efetividade).
A título de contextualização e já para no âmago da questão adentrar, não é demais sublinhar que se está a falar de um princípio que exige que todos sejam tratados como inocentes até o trânsito em julgado de uma sentença penal condenatória (ao contrário do que sugeriu o Supremo), sendo, pois, mais do que um direito substancial, uma expressão clara de liberdade, “um princípio básico do Estado Democrático de Direito no campo das garantias processuais penais, com o objetivo de tutelar as liberdades individuais, coibindo abusos do Estado [...]”. Por meio dele, lembra Beccaria que “Ninguém pode ser condenado como criminoso até que seja provada sua culpa, nem a sociedade pode retirar-lhe a proteção pública até que tenha sido provado que ele violou as regras pactuadas. [...] aos olhos da lei, todo homem é inocente se o crime não for provado”.
Mas para muito além de um simples considerar inicialmente inocente o sujeito que se vê acusado de um crime, o que se extrai, de fato, dessa ordem constitucional, é como se deve tratar os indivíduos que se encontram em tal condição; a quem incumbe a prova da culpa no processo; e como deverá atuar o julgador nesse contexto, sobretudo ao final, quando se deparar com um fato sem prova consistente de sua ocorrência nos autos. À luz dessa interpretação, pode-se, então, compreender a extensão do referido princípio, como norma de tratamento (tratamento conferido aos acusados de algum ilícito), norma probatória (ônus da prova da acusação), e norma de juízo (que se manifesta em toda atividade judicial a fim de que se utilize sempre de uma interpretação favorável ao imputado, quando não houver prova segura e incontestável de que a alternativa que lhe prejudica deve prevalecer).
Eis o porquê de não se poder confundi-lo (reduzi-lo) ao in dubio pro reo (pertencente à norma de juízo), em que pese atuem no mesmo sentido (favoravelmente ao acusado). Enquanto a presunção de inocência constitui-se de um direito fundamental, a qualquer pessoa, de ser considerada inocente até prova em contrário (repita-se até condenação criminal transitada em julgado!), o in dubio pro reo é aquele a imperar nos casos de dúvida do magistrado acerca da existência do fato ou de sua autoria, bem como em todo momento que se lhe exige a tomada de uma decisão. Assim, ao julgador sempre restará uma interpretação favorável ao réu quando a prova não for suficiente e segura para que se atinja a certeza de que o fato ocorreu. É, com efeito, um princípio inspirador de interpretação que sempre deverá ser invocado nos casos em que não se podendo ver um lastro probatório rigorosamente uniforme, obrigatoriamente se deverá optar pela interpretação mais favorável ao réu.
Equivale dizer que, não tendo sido exitosa a acusação em comprovar a culpabilidade do acusado no processo, prevalece-se a presunção de inocência, que impera em toda a fase processual e somente poderá ser superada quando diante de material probatório incriminador suficientemente satisfatório. A propósito disso, no magistério de Carnelutti: “Es necesario, pues, para condenar, que las pruebas sean suficientes para eliminar una duda relevante tanto sobre la existencia de los requisitos constitutivos como sobre la inexistencia de los requisitos invalidativos o extintivos”. Admitir o contrário é aceitar o modelo de regimes totalitários em plena democracia, em que no lugar do in dubio pro reo vige o in dubio pro civitate. E não é essa, claro, a concepção garantista que se pretende reconhecer no processo penal democrático-constitucional. Ao contrário, o que se deve verificar neste modelo de Estado é justamente a força normativa de tal princípio, já que intimamente ligado à liberdade do cidadão.
Dito isso, e superada a possível confusão entre presunção de inocência e in dubio pro reo, pode-se avançar para outro importante reflexo do princípio em apreço, acima identificado por norma probatória, que orientará a atividade processual penal, impondo que se o acusado é presumido inocente, aquele que disser o contrário (que é culpado) é quem deverá provar a alegação. Afinal, “Si por principio general, toda persona es inocente hasta que se pruebe lo contrario, la carga de la prueba del delito, imputabilidad, culpabilidad y demás circunstancias, así como el monto del daño causado, descansa en el Ministerio Público”. Consequentemente, ao acusado, desnecessária a produção de provas, posto que na falta delas a sentença absolutória é a única decisão legítima para o julgador. No entanto, tal desnecessidade não se confunde com restrição ao direito que possui o acusado de provar o que entender pertinente à sua defesa. Basta compreender que se trata de um direito e não de um dever a produção de prova para o réu, que poderá fazê-la a fim de criar uma dúvida razoável para tornar crível sua alegação.
Por derradeiro, cumpre se compreender o princípio em questão como verdadeira norma de tratamento, que impõe que antes da condenação definitiva ninguém deve estar sujeito a medidas restritivas de direitos que antecipem um juízo de culpa. De observar, que tal imposição permeia toda a apuração do fato criminoso, devendo orientar a atividade persecutória desde o descobrimento do ilícito. Disso decorre que juízos antecipatórios condenatórios, atitudes como deixar algemado sem necessidade o investigado em audiências e violações da intimidade do suspeito com divulgações de informações que aparentemente (ao arrepio do contraditório) lhe colocam em posição delicada, violam a presunção de inocência em seu caráter de garantia de tratamento, devendo ser repudiadas. Que dirá prender antes do trânsito em julgado da sentença penal condenatória, para cumprimento antecipado de pena! Evidente o equívoco, para dizer o mínimo, do Supremo.
Refere Giacomolli, a esse respeito, que a regra de tratamento da pessoa possui efeitos tanto endoprocessuais, servindo de orientação para o agir dos sujeitos processuais, quanto extraprocessuais, servindo de orientação a terceiros, sobretudo no tocante a preservação da imagem do indivíduo. Ou seja, é no tratamento do sujeito investigado que se verá se há ou não respeito à consagrada presunção de inocência. Na dimensão interna se determinará que a prova seja produzida pela acusação; que a dúvida leve invariavelmente a absolvição e que a prisão seja somente a ultima ratio – não podendo ser banalizada, mormente por suas consequências negativas incalculáveis para aquele que se presume inocente (note-se, aqui, o erro crasso do STF); na dimensão externa, por sua vez, se cuidará da imagem do investigado, atuando contra uma publicidade abusiva e estigmatizante.
Em apertada síntese, portanto, é essa a configuração do princípio da presunção de inocência em sua amplitude (ou tríplice função delimitadora: in dubio pro reo, ônus da prova e regra de tratamento). Incontestavelmente, se está diante de um princípio-garantia, que muito mais do que preservar um status de não culpabilidade antes de uma decisão condenatória definitiva, preserva a dignidade(!) do cidadão frente ao Estado. No contexto atual, que inicialmente se referiu e agora conta com o aval do STF, a dúvida que se coloca é: se é aceitável que tal princípio seja violado (ou, no mínimo, relativizado) como fez a Suprema Corte. Acaso a resposta seja afirmativa, resta apenas alertar que será altíssimo o preço a ser pago.