Fábio Tofic Simantob -
Vivemos, em 2016, um clima de tragédia política iminente, aquela atmosfera apavorante que permeia o livro Complô contra a América, de Philip Roth. A operação “lava jato” atingiu seu auge. Ganhou até biografia. Mas foi a vez também de a “lava jato” — sim, na pessoa jurídica mesmo — colocar os pés pelas mãos. Vazamentos de áudios, apresentações em PowerPoint, notícias de delações induzidas. Advogados agredidos na porta da Polícia Federal. Advogados grampeados e áudios divulgados em rede nacional (vale lembrar que o juiz Baltazar Garzón foi condenado na Espanha por conduta semelhante).
A impressão é que, com tantas mazelas expostas, foram-se embora os deuses, e o menino Jesus, aquele de Alberto Caeiro, veio visitar a nossa aldeia. “Eternamente humano e menino. Limpa o nariz ao braço direito, chapinha nas poças d’água, colhe as flores e gosta delas e esquece-as. Atira pedra aos burros, rouba a fruta dos pomares (...). Era nosso demais para fingir.”
Houve um debate muito grande em torno das prisões nos últimos anos, advogados denunciando que as prisões estão sendo usadas para extorquir delações (por todos eles, vale conferir o artigo de Alberto Zacharias Toron na última edição da Revista Brasileira de Ciências Criminais) e procuradores se defendendo, dizendo que não. Na verdade, a opinião pública não está muito preocupada com isso. As pessoas no fundo não admitem, mas não acham nada grave prender para obter delações.
Parcela da imprensa perdeu inclusive a vergonha de dizer isso. Quando houve a prisão de Eduardo Cunha, uma importante jornalista fazia sua “análise jurídica” com naturalidade em horário nobre da televisão, explicando ao telespectador que deveria ter paciência com eventual delação, porque a PF precisaria de uns dois meses para fazer aquela pressão básica na mulher e na filha, com ameaças de prisão, para então convencê-lo a delatar.
A missão da advocacia não é mais mostrar violações ao direito de defesa, mas explicar que o direito de defesa precisa ser respeitado. Um bom sismógrafo, para usar uma feliz expressão de Roxin, do estágio civilizatório em que chegou nossa democracia.
Dois mil e dezesseis foi também o ano do pacote das “10 medidas contra a corrupção”, que já é desonesto no nome. Não só porque não são dez, como também porque não é contra a corrupção. O Brasil continuou prendendo como nunca, abusando da prisão provisória, por furto e por tráfico, prendendo mães pegas com pequenas quantidades de droga. A investigação criminal continua arcaica, pífia e com baixíssimos índices de solução de casos. As ilegalidades se avolumam nos fóruns e nos tribunais, é raríssimo ver uma corte anular um processo por prova ilícita, o Habeas Corpus está cada vez mais agrilhoado, e a violência e a corrupção policiais continuam grassando soltas, pelo menos é o que dizem as organizações internacionais. Esquizofrenicamente, porém, a comunidade jurídica passou o ano discutindo o desejo do Ministério Público Federal de aumentar os poderes de todos os agentes de investigação. É como se disséssemos “estão morrendo nos hospitais, então fechem os hospitais”. As mazelas da Justiça não podem ser atribuídas à lei ou aos direitos e garantias fundamentais do cidadão. É desonesto fazer essa apologia. O problema é da ineficiência da máquina pública, do excesso de trabalho e da má gestão.
Neste caso do pacote do MPF, a farsa foi tão grande — e louvada seja a advocacia criminal e as inúmeras entidades envolvidas em apontar isso, com destaque para as defensorias públicas — que não demorou para veículos de comunicação como Folha de S.Paulo, Estado de S. Paulo e Veja apresentarem ressalvas em relação ao projeto de lei.
Os pontos mais criticados foram justamente aqueles rejeitados na Câmara dos Deputados.
Mas o ponto alto de desrespeito ao direito de defesa no ano foi o julgamento das ações declaratórias de constitucionalidade 43 e 44, que discutiam a execução provisória da pena. O Supremo Tribunal Federal já havia decidido em fevereiro que o início do cumprimento da pena, quando pendentes recursos especial e extraordinário, não viola a presunção de inocência, nem, portanto, a Constituição Federal.
Relativizar, no entanto, o artigo da Constituição Federal mediante manobras hermenêuticas parecia fácil perto da dificuldade que seria negar vigência a um artigo do Código de Processo Penal, que de forma muito mais expressa impedia o STF de entender como entendeu. Diferente do que prescrevia o falecido artigo 5º, LVII, que diz que ninguém será considerado culpado antes do trânsito em julgado, o artigo 283 do Código de Processo Penal diz que ninguém será preso antes do trânsito (fora as hipóteses clássicas de prisão provisória).
Reinterpretar o sentido da expressão “culpado” parecia simples, mas como reinventar a palavra “preso”?
Foi o competente e arguto advogado Antônio Carlos de Almeida Castro que, com procuração do Partido Ecológico Nacional (PEN), percebeu com perspicácia que havia aí um novo caminho a ser percorrido (Lenio Streck, em artigo na ConJur, já havia identificado o impasse jurídico). O STF teria que reexaminar a questão, mas agora sob enforque diverso, o da constitucionalidade e, por conseguinte, da plena vigência do artigo 283 do CPP.
Várias entidades aderiram, entre elas o Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), e engrossaram fileiras ao lado da legalidade, com destaque para as defensorias públicas de São Paulo e Rio de Janeiro — sem clientes na “lava jato”, frise-se. Foi um julgamento histórico. A defesa criminal — não importa se de pobres ou de poderosos — lado a lado, lutando pelo respeito à liberdade e à legalidade. O decano Técio Lins e Silva, presidente do Instituto dos Advogados do Brasil, encerrou a sequência de sustentações orais com um apelo dramático e emocionado dirigido aos ministros.
Tudo em vão. O resultado foi o mesmo. Só que desta vez, para molhar o bico da opinião pública sedenta por prisões, o Supremo precisou expor uma insanidade jurídica que ecoaria em pronunciamentos futuros.
Manteve seu posicionamento original, mas não declarou o artigo 283 do CPP inconstitucional, como seria o mais coerente, embora juridicamente inviável. A regra processual está em perfeita consonância com a norma do artigo 5º, inciso LVII da Constituição. Havia grande expectativa para saber como o STF sairia do imbróglio. Não sendo declarada a inconstitucionalidade do dispositivo, a opção de deixar de aplicá-lo só tinha uma explicação possível. O Supremo estava revogando, ou no mínimo reescrevendo o dispositivo. Esse era o recado escondido na decisão e que a opinião pública não captou naquele momento. A decisão poderia ser entendida como uma forma de pôr em xeque a própria independência dos Poderes da República.
Não é mera coincidência que o ano judiciário tenha terminado com postura semelhante abalando a credibilidade das instituições, primeiro com o afastamento do presidente do Senado Federal por decisão monocrática de um ministro (que inclusive votou contra majoritariamente na questão da presunção de inocência), depois com a determinação de retorno de um projeto de lei para a Câmara para ser analisado de forma “correta” pelos deputados, decisão também monocrática de ministro do STF.
Principalmente no primeiro caso, muitos que aplaudiram o extermínio da presunção de inocência, agora, em nome da “governabilidade” criticaram a intromissão do STF nas atividades legislativas.
A raiz do problema talvez esteja aí. Foi o ano da “governabilidade”, o ano das ruas, o ano dos linchamentos públicos, o ano das paixões políticas, o ano das prisões para delatar; o ano das delações por encomenda; o ano do frenesi da opinião pública. E o ano em que a tão festejada audiência de custódia sofreu silenciosos ataques, terminando o ano sendo enxotada para bem longe. O projeto de lei que a regulamenta foi anexado ao CPP. Na prática legislativa significa que foi engavetado.
O Direito está fora de moda. Quando as paixões dão o tom da valsa, o Direito se esconde debaixo da mesa. Vivemos a era do voluntarismo. A nós só resta a vontade de que o ano termine logo. Feliz 2017.