Djefferson Amadeus -
De início – e por dever de honestidade intelectual – ressalto que as críticas à verdade real nas linhas que se seguem não são fruto da originalidade deste autor; de fato, se tais críticas foram possíveis, nos moldes em que estão postas, é porque – de há muito – Ernildo Stein e Lenio Streck possibilitaram-nas.
Eis por que é vital louvar aqueles que conseguem o grande feito: romper as barreiras do senso comum teórico e conquistar um merecido lugar diferenciado de reputação.
Pois bem, nos últimos dias, os ministros Herman Benjamim e Ricardo Lewandowski, para fundamentar suas decisões, invocaram o (sic) “princípio” da verdade real.
Vejamos o que disseram os eminentes ministros:
“Aqui, na Justiça Eleitoral, nós não trabalhamos com os olhos fechados...” “Esta é a tradução deste princípio da verdade real...” (Herman Benjamim). "No processo penal o juiz está comprometido com a descoberta da verdade real. Por isso, ela tem um papel preponderante.” (Ricardo Lewandowski).
Miriam Leitão, comentando o tema, escreveu uma coluna intitulada: Verdade Real. Nela, a referida jornalista, que parece concordar com Herman Benjamim, afirmou o seguinte:
“Santana e Monica foram ouvidos uma segunda vez a pedido do Ministério Público Eleitoral, mas aí os advogados quiseram que os depoimentos fossem anulados. O ministro disse que como relator procurou a “verdade real”.
Incontinenti, lembrei-me de Millôr Fernandes, porque – dizia ele – a jaca nunca cai longe da jaqueira; se caiu longe, é porque alguém (ou alguma coisa) a levou para lá. E o que se retira disto, transportando o pensamento de Millôr para o direito, é que, se ambos os Ministros e Miriam Leitão estão invocando a verdade real, é porque leram (ou ouviram) isso em algum lugar.
Lendo os livros e manuais de concurso mais vendidos no Brasil, fica fácil entender de onde vem a tal verdade real, que domina o imaginário gnosiológico dos referidos ministros e – por que não? – de Miriam Leitão.
Por todos, cito Guilherme Nucci e Gustavo Badaró. O primeiro, porque é o livro de concurso público mais vendido no país; o segundo, porque é a demonstração de que até doutrinadores estudiosos e sofisticados, como é o caso do professor Gustavo Badaró, pagam um preço alto ao falarem de questões filosóficas, como é o caso da verdade, sem, contudo, fazer qualquer menção àqueles que dedicaram suas vidas a tais estudos: os filósofos!
Nucci, ao tratar deste tema, afirma que: “Material ou real é a verdade que mais se aproxima da realidade.”
Badaró, por sua vez, sustenta que o “conceito de verdade é um conceito de relação. Um conhecimento é verdadeiro quando há concordância entre o objeto e sua ‘imagem’ capturado pelo sujeito”. Do exposto, é possível concluir que a verdade, para Nucci e Badaró, é uma questão de correspondência: veritas est adaequatio intellectus (“a verdade está no enunciado e seu juízo capaz de exprimir as coisas como elas realmente são”.)
Ambos os autores, portanto, inseridos no paradigma aristotélico-tomista, acreditam que a correspondência entre o significado e o significante pode ser sempre garantida, dada a existência de um ente supremo (o fundamentum absolutum inconscussum veritas).
Por isso, para eles, o conhecimento é um processo de adequação do olhar ao objeto, buscando a similitude entre pensamento e coisa, desvendando as essências próprias das coisas. A verdade, assim, caracteriza-se pela correspondência entre o intelecto e a coisa visada, como a fórmula aristotélica e medieval.
Ocorre, todavia, que, de maneira paradoxal, Badaró, no final de seu texto, parece abandonar a ideia da verdade como correspondência, na medida em que a verdade deixa der ser mera semelhança com o objeto para significar, em suas palavras, uma “manifestação subjetiva da verdade”. É o que se extrai da passagem a seguir, colhida em seu livro:
“A verdade é o reflexo fiel do objeto na mente, não basta que um conhecimento seja verdadeiro sendo necessário alcançar a certeza de que é verdadeiro. (...) A certeza, portanto, constitui a ‘manifestação subjetiva da verdade’, sendo um estado de ânimo seguro da verdade de uma posição.”
Vejam: se no início de seu texto a verdade era, para Badaró, relacional (porque se chegava à verdade quando houvesse uma “concordância entre o objeto e sua ‘imagem’ capturada pelo sujeito”), depois, de uma hora para outra, a verdade passou a ser uma “manifestação subjetiva” (isto é, “o sujeito kantiano e cartesiano entra em cena”; investe a si mesmo e, em razão disso, “o homem passa a ser aquele existente no qual se funda todo o existente à maneira de ser e de sua verdade.”
E qual o problema disso? Muitos – para não dizer: todos! – porquanto, em termos filosóficos, o que Badaró fez – e isto é muito comum entre os juristas – foi conciliar paradigmas inconciliáveis. E por um simples motivo: não dá para dizer que a verdade é relacional (correspondente) e, ao mesmo tempo, o sujeito pode se valer de sua manifestação subjetiva para buscar a verdade.
Assim, ou se está na metafísica clássica (estando o sujeito assujeitado às essências), ou se está na metafísica moderna (sendo o sujeito um assujeitador dos objetos). Dizendo de outro modo, não dá para usar Kant, com o intuito de descobrir a essência da coisa ou, por outro lado, usar Platão para dizer que o sujeito é um assujeitador dos objetos.
Aliás, é justamente essa mistura de paradigmas promovida por Badaró – objetivismo / subjetivismo – que Lenio Streck chamou de “mixagem teorética” ou “cruzamentos fundacionais”.
Nas palavras do referido autor: “A aplicação do direito, como venho afirmando há tempos, está assentada num tipo muito curioso de sincretismo que podemos nomear aqui por “cruzamentos fundacionais”. Vale dizer, no direito, o paradigma objetivista, da filosofia clássica, encontra-se por vezes associado ao paradigma subjetivista, da filosofia da consciência.”
Mas, afinal, o que pretende o articulista? – é a pergunta que, naturalmente, o leitor deve estar se fazendo.
Simples: pretendo apenas demonstrar que o que há de comum entre a verdade real de Miriam Leitão, Guilherme Nucci, dentre tantos outros juristas, é o seguinte: a total ausência (ou resistência) à filosofia.
Um adendo: depois do linguisticturn, como ensinou Jacinto Coutinho, sobra pouco para continuar investindo na verdade como se fez até então, mas tal rompimento – lembra-nos Alexandre Rosa – não se fez (e não se faz) sem ranhuras, porque o conforto metafísico da verdade fundante, passível de ser alcançada/descoberta construiu prédios inteiros; e a verdade real está – viva – para demonstrar. Então, para que isso ocorra, é necessário, segundo Salah Khaled, “romper em definitivo com a busca da verdade correspondente, seja ela tida como real, material, substancial, relativa ou aproximativa.”