Rogério Sanches Cunha -
Percebemos crescer, a cada ano, a tese de que punição da conduta de desacato é incompatível com a ordem constitucional e com a legislação internacional de que o Brasil faz parte.
Argumenta-se que se trata de tipificação de caráter autoritário, que visa a impedir – ou ao menos a desencorajar – manifestações contrárias às práticas de agentes estatais. Sustenta-se que, apesar da objetividade jurídica do crime – a manutenção do prestígio da Administração –, os agentes públicos estão sujeitos a maior fiscalização e censura e que, por isso, não se pode tolher o direito de crítica, ainda que exacerbada.
Lecionam que a criminalização da conduta de desacato fere, também, o princípio da proporcionalidade e ignora postulados próprios do Direito Penal, como a intervenção mínima e a lesividade. Argumentam que, em grande parte das situações, o agente estatal, em tese ofendido, acaba por fazer uma espécie de “juízo preliminar” da caracterização do crime e toma por ofensa uma manifestação que, no geral, seria interpretada como mera crítica, provocando constrangimento contra quem se manifestou.
E no que concerne à legislação internacional, ensinam que a Convenção Americana sobre os Direitos Humanos – à qual o Brasil aderiu por meio do Decreto nº 678/92 – garante, no artigo 13, a liberdade de pensamento e expressão. Dentro desse espírito, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos já se manifestou no sentido de que a legislação de desacato vigente no continente americano contraria os termos da Convenção: “A ameaça de sofrer punições penais por expressões, sobretudo nos casos em que elas consistissem de opiniões críticas de funcionários ou pessoas públicas, gera um efeito paralisante em quem quer expressar-se, que pode traduzir-se em situações de auto-censura incompatíveis com um sistema democrático. A esta conclusão se chegou pela análise que efetuou a CIDH acerca da compatibilidade das leis de desacato com a Convenção Americana sobre Direitos Humanos em um relatório realizado em 1995. A CIDH concluiu que tais leis não eram compatíveis com a Convenção porque se prestavam ao abuso como um meio para silenciar ideias e opiniões impopulares, reprimindo desse modo o debate que é crítico para o efetivo funcionamento das instituições democráticas. Em consequência, os cidadãos têm o direito de criticar e examinar as ações e atitudes dos funcionários públicos no que se relaciona com a função pública. Ademais, as leis de desacato dissuadem as críticas pelo temor das pessoas às ações judiciais ou sanções monetárias. Por estas e outras razões, a CIDH concluiu que as leis de desacato são incompatíveis com a Convenção, e instou aos Estados a que as derrogassem”.
Seduzida por tais argumentos, a 5a. T do STJ, no julgamento do REsp 1.640.084/SP, considerou a tipificação do desacato incompatível com a citada Convenção, pois, “Embora a jurisprudência afaste a tipicidade do desacato quando a palavra ou o ato ofensivo resultar de reclamação ou crítica à atuação funcional do agente público (RHC 9.615/RS, Quinta Turma, DJ 25/9/2000), o esforço intelectual de discernir censura de insulto à dignidade da função exercida em nome do Estado é por demais complexo, abrindo espaço para a imposição abusiva do poder punitivo estatal. Não há dúvida de que a criminalização do desacato está na contramão do humanismo, porque ressalta a preponderância do Estado – personificado em seus agentes – sobre o indivíduo”.
Ouso discordar. Vamos, preliminarmente, compreender no que consiste a conduta criminosa rotulada no nosso ordenamento, como desacato. É, em apertada síntese, ofender, achincalhar, menosprezar, humilhar, desprestigiar o servidor, no exercício da função ou em razão dela, seja por meio de gestos, palavras ou escritos. É a grosseira falta de acatamento, agressão física ou verbal, ameaça, gesto obsceno etc. Para a configuração do crime, é de rigor o dolo, consistente na vontade deliberada de desprestigiar a função exercida pelo sujeito passivo.
Obviamente não está abrangida pelo tipo a conduta do cidadão movida pelo desejo de criticar ou censurar servidores, ainda que de forma mais enfática. Nesse mesmo caminho, alertam Antonio Pagliaro e Paulo José da Costa Jr.: “Não poderão, porém, constituir desacato meras críticas ou censuras, ainda que acerbas. O respeito que se deve aos funcionários não implica que não sejam investigados. Não constituem tampouco o delito simples indelicadezas ou petulâncias, infrações a regra do cerimonial ou recusas, como a não aceitação de um convite ou restituição de uma condecoração formalmente não injuriosas” (Dos crimes contra a Administração Pública, p. 210).
Portanto, não faz sentido abolir o delito de desacato, deixando, por conseguinte, de resguardar o respeito (e prestígio) da função pública, assegurando, por conseguinte, o regular andamento das atividades administrativas.
Felizmente, após a decisão da 5a. T, a Terceira Seção do STJ reanalisou o assunto e, não sem razão, decidiu que o desacato continua sendo crime. Lembrou, corretamente, que a tipificação penal da ofensa contra o funcionário público no exercício de suas funções é uma proteção adicional que não impede a liberdade de expressão, desde que exercida sem exageros. E afastar a figura criminosa do desacato não traria mudança significativa nos limites do direito de expressão, pois o exagero poderia de qualquer forma ser punido como injúria majorada. Logo, o esforço para discernir a censura do insulto permaneceria. O importante não é afastar a priori a possibilidade de punição do desacato, mas, mantendo a proteção ao exercício da função pública, exercer o controle sobre eventuais abusos desse exercício. Noutras palavras, compete ao Poder Judiciário garantir tanto a punição do exagero do direito de crítica à atividade desempenhada pelo funcionário público quanto a punição do abuso na reação do funcionário diante de uma crítica justa proferida pelo cidadão.
Alerto, por fim, que, embora a Comissão Interamericana de Direitos Humanos tenha se manifestado contrariamente à punição criminal do desacato, a Corte Interamericana tem admitido que se invoque o Direito Penal para punir excessos no exercício da liberdade de expressão. Eis o fundamento justo e real para existir, em nossa legislação, o crime do art. 331 do CP e arts. 298, 299 e 300, todos do CP Militar.