Frederico Afonso Izidoro -
No ano de 2016 na Capital paulista ocorreram 1130 registros formais acerca do crime de desacato. Por sua vez em 2017 (até 27 de junho) tivemos 758 registros.
Na região metropolitana de São Paulo, formada por 42 municípios, tivemos em 2016, 1492 registros e em 2017 (até 27 de junho) 539 registros.
Em apenas 5 meses o Superior Tribunal de Justiça (STJ) afirmou que desacato não seria mais crime, e posteriormente reviu a própria decisão.
Mas afinal, desacato é ou não é crime?
Coloquialmente conhecido como “desacato à autoridade”, está no rol “Dos crimes praticados por particular contra a Administração em geral”, previsto no art. 331 do nosso Código Penal, no qual afirma-se que “Desacatar funcionário público no exercício da função ou em razão dela” é crime com a pena de “detenção, de seis meses a dois anos, ou multa”.
Inicialmente precisamos avaliar se este tipo penal afronta ou não a liberdade de expressão?
Em segundo, o controle jurisdicional de convencionalidade das leis deve ser aplicado ao caso em tela?
Por fim, o Brasil está em conformidade com o Sistema Regional Americano de Direitos Humanos?
Para respondermos, façamos algumas análises:
No âmbito constitucional temos o inciso IV do art. 5º afirmando que “é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato”.
O preceito constitucional recepcionou o crime de desacato? O Supremo Tribunal Federal (STF) não enfrentou essa questão (sobre a liberdade de manifestação do pensamento já se posicionou algumas vezes sobre a liberdade de imprensa e a “marcha da maconha”.
Haveria uma diferença da liberdade de expressão prevista na Constituição Federal com a prevista na Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica – PSJCR)? A descrição do PSJCR é mais extensa, detalhada. Vejamos:
Art. 13. Liberdade de pensamento e de expressão
- Toda pessoa tem direito à liberdade de pensamento e de expressão. Esse direito compreende a liberdade de buscar, receber e difundir informações e idéias de toda natureza, sem consideração de fronteiras, verbalmente ou por escrito, ou em forma impressa ou artística, ou por qualquer outro processo de sua escolha.
Assim, entendo que não há diferença, apenas o STF não enfrentou a questão, enquanto que a Corte e a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (Comissão IDH) já o fizeram.
No Sistema Regional Americano de Direitos Humanos temos como base normativa o PSJCR. Para melhor entendimento, se faz necessária uma “cronologia sobre os documentos”:
1969: PSJCR é publicado no âmbito da Organização dos Estados Americanos (OEA);
1992: o Brasil promulga o PSJCR (Decreto nº 678/92);
1998: o Brasil promulga a Declaração de Reconhecimento da Competência Obrigatória da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Decreto nº 4.463/02), ou seja, fica reconhecida como obrigatória, de pleno direito e por prazo indeterminado, a competência da Corte Interamericana de Direitos Humanos em todos os casos relativos à interpretação ou aplicação do PSJCR;
2000: a Comissão IDH publica a Declaração de Princípios sobre a Liberdade de Expressão, promulgada pela Relatoria para a Liberdade de Expressão. A Declaração constitui uma interpretação definitiva do art. 13 do PSJCR, com destaque ao Princípio 11 que se refere às leis sobre desacato: “Os funcionários públicos estão sujeitos a maior escrutínio da sociedade. As leis que punem a expressão ofensiva contra funcionários públicos, geralmente conhecidas como “leis de desacato”, atentam contra a liberdade de expressão e o direito à informação”;
2004: a Emenda Constitucional nº 45/04 trouxe uma nova regra de incorporação aos tratados internacionais sobre direitos humanos, dando a possibilidade dos mesmos serem equivalentes às emendas constitucionais;
2006: a Corte IDH impõe ao Judiciário nacional a compatibilização das normas internas com os tratados internacionais sobre direitos humanos ratificados no País, com destaque ao PSJCR;
2008: o STF em razão do julgamento do RE 466.343-1/SP, reconhece que os tratados internacionais sobre direitos humanos que foram incorporados antes da EC nº 45/04 (caso do PSJCR), possuem status de norma supralegal;
2015: em fevereiro é assinada uma Carta de Intenções entre o STF e a Comissão IDH para que o Brasil comece a aplicar o chamado controle jurisdicional de convencionalidade das leis;
2015: em março o juiz Alexandre Morais da Rosa, no julgamento dos autos nº 0067370-64.2012.8.24.0023 (Florianópolis/SC), efetuando controle de convencionalidade, reconheceu a inexistência do crime de desacato, tendo como base a Declaração de Princípios sobre a Liberdade de Expressão, afastando a incidência do art. 331/CP. Outros julgados ocorreram no mesmo sentido;
2016: em dezembro a 5ª Turma do STJ (REsp nº 1.640.084/SP – decisão unânime), descriminalizou o crime de desacato por incompatibilidade entre o Código Penal (art. 331) e o PSJCR (art. 13). O ministro relator do recurso no STJ, Ribeiro Dantas, ratificou os argumentos apresentados pelo Ministério Público Federal (MPF) de que os funcionários públicos estão mais sujeitos ao escrutínio da sociedade, e que as “leis de desacato” existentes em países como o Brasil atentam contra a liberdade de expressão e o direito à informação. A 5ª Turma ressaltou que o STF já firmou entendimento de que os tratados internacionais de direitos humanos ratificados pelo Brasil têm natureza supralegal. Para a turma, a condenação por desacato, baseada em lei federal, é incompatível com o tratado do qual o Brasil é signatário;
2017: em maio a 3ª Seção do STJ uniformizou o entendimento do tribunal sobre a criminalização do desacato (acórdão não havia sido publicado quando da elaboração deste artigo). O min. Antonio Saldanha Palheiro (autor do voto vencedor no julgamento do HC 379269/MS), afirmou que a tipificação do desacato como crime é uma proteção adicional ao agente público contra possíveis “ofensas sem limites”, e ainda, que a figura penal do desacato, não prejudica a liberdade de expressão, pois não impede o cidadão de se manifestar, “desde que o faça com civilidade e educação”.
Com relação às indagações pendentes:
- O crime de desacato afronta ou não a liberdade de expressão?
O STF não enfrentou o caso. O STJ afirma que não. A Corte e Comissão IDH afirmam que sim.
- O controle jurisdicional de convencionalidade das leis deve ser aplicado ao caso em tela?
Sim, cabe. Caio e Thimotie destacam o caso Almonacid e outros vs. Chile, julgado pela Corte IDH em 2006: “Ao interpretar os tratados internacionais de direitos humanos e demais normas do bloco de convencionalidade, o intérprete deve analisar a situação à luz dos precedentes internacionais de direitos humanos, sob pena de subverter a lógica interpretativa dos tratados. Assim, quem determina o significado e o alcance normativo da CADH é a própria Corte IDH, e não os estados signatários (...). Portanto, ao se interpretar um tratado internacional de direitos humanos, ou outra norma que compõe o bloco de convencionalidade, o intérprete deve, a partir de uma hermenêutica jurídica cosmopolita, seguir o entendimento dos tribunais internacionais sobre o assunto, uma vez que estes desempenham a interpretação internacionalista por excelência, sob pena de criar um ‘tratado internacional nacional’” (HEEMANN, Thimotie Aragon e PAIVA, Caio. Jurisprudência Internacional de Direitos Humanos. 2. ed., Belo Horizonte: Cei, 2017, p. 49-50).
- O Brasil está em conformidade com o Sistema Regional Americano de Direitos Humanos?
Infelizmente não. Mais uma vez o Brasil perde a oportunidade de ficar em consonância com as normas internacionais das quais é signatária. Mazzuoli lembra que “Os juízes e tribunais nacionais estão obrigados a controlar ex officio (e preliminarmente) a convencionalidade das leis, invalidando as normas domésticas menos benéficas incompatíveis com os tratados de direitos humanos em vigor no Estado” (MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. O controle jurisdicional da convencionalidade das leis. 4. ed. São Paulo: RT, 2016, p. 218).
Diante do exposto, desacato, na visão do Direito Internacional dos Direitos Humanos, deixou de ser crime!