Flagrante preparado com cobertura da mídia mutila a honra do cidadão

Luíz Flávio Borges D’Urso e Marjori Ferrari Alves -

A prisão, sem dúvida, é a sanção mais aplicada em nosso ordenamento jurídico. Por vezes, sua aplicação ocorre antes da punição, em caráter de exceção, não como pena, mas por conveniência da investigação ou do processo. Dentre essas possibilidades, encontra-se a prisão em flagrante, que ocorre quando o crime está acontecendo (ou logo após sua ocorrência).

Na prática, a prisão em flagrante pode acontecer até quando se espera a ocorrência do crime. O que não se admite é a possibilidade do Estado, por meio de seus agentes, provocar que o crime aconteça, exemplo denominado como “flagrante preparado”.

Neste caso, absolutamente ilegal, a verdade é que o crime jamais teria lugar, não fosse a provocação dos agentes públicos, que induzem o suposto criminoso, a realizar a conduta, para que este seja surpreendido cometendo o crime. Importante ressalvar que, nesta hipótese, o crime foi realizado para dar lugar à prisão em flagrante, pois, não houvesse a provocação, a conduta não existiria, vale dizer, não haveria crime.

A sociedade estabelece, pela lei penal, as condutas que deseja evitar, impondo punições àqueles que as praticar. A graduação da proteção é materializada na graduação da pena, de modo que, quanto maior for a pena, mais se deseja evitar aquela conduta.

A lei penal, portanto, protege bens jurídicos, em maior ou menor grau, estabelecendo penas proporcionais, dependendo da importância destes bens jurídicos tutelados por aquela sociedade. Conclui-se, portanto, que o crime viola o bem jurídico tutelado. Assim, se o bem jurídico protegido não foi ofendido e não correu risco algum, não se admite, nestes casos, a existência do crime.

É exatamente nesse contexto, que reside a ilegalidade da prisão em flagrante, quando este flagrante é preparado, pois, nestes casos, o bem jurídico jamais esteve em risco, pois nunca existiu crime algum.

Essa tem sido a posição sedimentada pela nossa doutrina e também pela nossa jurisprudência, que culminou com a edição, pelo Supremo Tribunal Federal, da Súmula 145, corroborando a tese de que, havendo absoluta ineficácia do meio ou visível impropriedade do objeto, em função de flagrante preparado pela polícia ou por terceiro, o crime não se consuma, pois verifica-se o crime impossível.

A premissa é de que a prisão em flagrante deve atender não somente a nossa Carta Magna, especialmente quanto aos princípios e garantias constitucionais, mas, também, às disposições do Código de Processo Penal, para que encontre o palco da legalidade, expurgando o abuso de poder.

Nesse sentido, a preparação do flagrante pela polícia ou por terceiro, com o único objetivo de flagrar o agente no momento da execução do crime, fere, sem sombra de dúvida, a garantia constitucional relativa à liberdade individual, pois se revela um crime impossível, não sendo, assim, passível de punição, porquanto o agente teve a sua vontade e consciência maculadas por um instigador.

Mas, afinal, quando ocorre o flagrante preparado? Nas palavras de Nelson Hungria, o flagrante preparado ocorre “quando alguém insidiosamente provoca outrem à prática de um crime e, simultaneamente, toma as providências necessárias para surpreendê-lo na flagrância da execução, e esta, fica, assim, impossibilitada ou frustrada”. O festejado doutrinador conclui que “o desprevenido sujeito ativo opera dentro de uma pura ilusão, pois, ab initio, a vigilância da autoridade policial ou do suposto paciente torna impraticável a real consumação do crime... Um crime que, além de astuciosamente sugerido e ensejado ao agente, tem suas consequências frustradas por medidas tomadas de antemão. Tal não passa de crime imaginário” (Comentários ao Código Penal, p. 103).

A jurisprudência consolidou o entendimento de que ocorre o crime impossível quando a polícia ou terceiro interfere na vontade do agente, uma vez que fornece os meios para a prática do delito, criando uma falsa situação de flagrância. Vejamos este julgado do STF, coroando esta posição: “A jurisprudência desta Suprema Corte já firmou entendimento no sentido de que a comprovada ocorrência de ‘flagrante preparado’ constitui situação apta a ensejar a nulidade radical do processo penal (RTJ 130/666, Rel. Min. Carlos Madeira - RTJ 140/936, Rel. Min. Ilmar Galvão – RTJ 153/614, Rel. Min. PAULO BROSSARD, v.g.)” (HC 84723, Rel. Min. Celso de Mello, Segunda Turma, DJe de 4.12.2013).

Por óbvio, prender alguém em flagrância nessas condições, restaria em evidente ilegalidade, pois se não tivesse havido a provocação, o crime não teria ocorrido. O agente foi estimulado a cometer tal delito. Sua atividade não se desenvolveu naturalmente, não existindo, assim, autenticidade nos fatos, nem espontaneidade em querer praticar o delito, consequentemente, não havendo efetiva e real exposição a perigo de qualquer bem tutelado pela lei, não poderá subsistir o flagrante, bem como, a acusação nele consubstanciada, desaguando tudo isso na ilegalidade, ensejando imediata anulação.

Se o flagrante preparado é ilegal e propicia um sofrimento injusto ao suposto autor do crime, caso se verifique a cobertura da mídia para essa diligência abusiva e lesiva, o dano suportado pelo cidadão acusado poderá ser irreparável.

A importância da mídia é inquestionável, todavia, lamentavelmente, no Brasil, parcela significativa dessa mídia abusa e patrocina desastres na vida privada do cidadão, que é exposto, acusado, linchado moralmente de modo imutável. O maior exemplo disso foi o caso “Escola Base”.

A ninguém é dado o direito de consumar uma acusação e consequente julgamento, sem observar o direito de defesa e tudo o que dele decorre, vale dizer, o princípio da presunção de inocência, estabelecido em nossa Constituição Federal, assegura que o cidadão, mesmo diante de uma acusação, deve ser preservado e facultado a ele o amplo direito de defesa.

Tudo isso é desrespeitado quando, diante de um flagrante preparado (ilegal), o cidadão é exposto pela mídia, como se culpado fosse, mutilando sua honra de forma irreversível. Mesmo que esse flagrante, amplamente noticiado e alardeado, venha a ser anulado (pela ilegalidade verificada no caso), o cidadão acusado já terá sofrido esse verdadeiro linchamento moral, que suportará pelo resto de sua vida.

O dano suportado é gigantesco, o prejuízo incalculável e o sofrimento indescritível. Em nosso sistema jurídico, tudo isso é passível de indenização, que jamais apagará as consequências das levianas notícias, mas exercerá um efeito didático a servir de exemplo, para que, no futuro, se tenha um pouco de cautela e consequente responsabilidade, antes de se destruir uma reputação ou de mutilar indelevelmente a honra alheia pela mídia. Trata-se de uma questão de Justiça!

 

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