Theuan Carvalho Gomes -
Ainda há quem negue o quadro punitivista que se instaurou no Brasil nos últimos anos, como no texto “É falacioso argumento de que vivemos punitivismo exagerado”, publicado nesta ConJur em 24 de dezembro de 2017. Este texto pretende se colocar no debate de maneira respeitosa e altiva, sem, contudo, atacar ou diminuir qualquer opinião divergente. Pois bem.
Segundo o dicionário da Universidade de Oxford – que elegeu a palavra “post-truth” como a palavra de 2016 –, pós-verdade se relaciona a circunstâncias em que fatos objetivos são menos importantes na formação da opinião pública do que o apelo para emoções e convicções pessoais.
Basicamente, pós-verdade é negar a realidade empírica por questões ideológicas, que falam à emoção das pessoas. Ao negar o punitivismo que se instaurou no Brasil, o articulista usou aspectos emocionais para sustentar sua opinião, sobretudo para uma espécie de sentimento primitivo de vingança e regozijo que as pessoas sentem ao verem aqueles que historicamente restavam impunes neste país agora sendo presos.
O articulista sugere que muitos dos acusados de “crimes do colarinho branco” restavam impunes porque contratavam a “peso de ouro” escritórios especializados. Afirma que os tribunais deixaram de admitir teses antes majoritárias que reconheciam nulidades e inadmitiam provas ilícitas. Argumenta que o Direito Penal atualmente é empregado de maneira correta “justamente para proteger os bem jurídicos fundamentais”, principalmente porque agora é aplicado “para todos”, pobres, ricos e autoridades.
Ainda, o articulista defende que o Direito Penal passe a “ser respeitado e temido, de modo que a sociedade acredite nas instituições e os criminosos de todas as espécies saibam que por ele podem ser alcançados”. Vejamos.
Em primeiro lugar, se apenas escritórios especializados conseguiam resultados positivos em processos penais, isso diz muito mais sobre a necessidade de estruturação das defensorias públicas do que qualquer outra coisa. Muito embora prevista na Constituição desde 1988, apenas em 2006 a Defensoria Pública Paulista foi criada. Isso para ficar apenas com o exemplo do estado mais rico da federação e que possui, por sua vez, a maior população prisional.
São Paulo conta com menos de 800 defensores e defensoras, que têm atribuições das mais diversas, e não exclusivamente criminal, para dar conta de 30% do número de pessoas presas no país inteiro. Em outras palavras: o acesso à justiça sequer é garantido adequadamente para quem hoje está preso, o que contribui, sobremaneira, para um punitivismo exacerbado. Sim, porque o Direito Penal não é só a “lava jato”, como muitos podem querer fazer crer.
Em segundo lugar, a virada na jurisprudência das cortes superiores, na verdade, ao invés de abonar a tese do articulista, reforça a tese da crescente onda punitivista. Sim, os tribunais estão mais rigorosos do que nunca. Admitir um recurso especial ou extraordinário defensivo é uma verdadeira via-sacra – muito embora o mesmo não seja verdadeiro para a acusação. Isso para não falar na malfadada Súmula 691 do STF, que colocou peias no conhecimento de Habeas Corpus.
Mas o exemplo emblemático dessa viragem da jurisprudência pode ser lido no acórdão do pedido de Habeas Corpus 126.292, em que o STF permitiu o início do cumprimento de pena a partir da condenação em segunda instância, mesmo quando o art. 5, inc. LVII da Constituição Federal é bastante claro em dizer o contrário.
Em terceiro lugar: não, o Direito Penal não é aplicado para todos. Não é porque alguns poucos empresários e políticos – que sabemos os nomes e sobrenomes – foram presos, é que podemos decretar o fim da seletividade penal. Não. O Direito Penal é estruturalmente seletivo e desigual. E é isso é facilmente constatado pela realidade (essa desconhecida!), já que temos quase um milhão de pessoas anônimas presas por crimes como tráfico, furto e roubo.
A prisão de meia dúzia de engravatados não é o suficiente para subverter a lógica de um sistema estruturalmente construído para gerir a miséria, como sustenta, por exemplo, o criminólogo Loïc Wacquant. O fenômeno criminal é muito maior do que a “lava jato” e sua “força-tarefa”.
No mês em que o Departamento Penitenciário Nacional (Depen) divulga dados atualizados da população prisional brasileira, que chegou à terceira maior população prisional do mundo, fica bastante difícil negar a onda punitivista que o Brasil enfrenta.
São 726 mil presos, uma taxa de ocupação de 197%, com déficit de 360 mil vagas, sendo que 40% das pessoas encarceradas ainda não foram julgadas definitivamente (portanto, presumidamente inocentes). De acordo com os dados, houve um crescimento de 708% do número de pessoas presas em 26 anos, sendo que em 1990 tínhamos “apenas” 90 mil pessoas presas. Do total, o tipo penal que mais prende continua sendo o tráfico, seguido pelos crimes patrimoniais, que juntos correspondem a 55% da população carcerária.
Como negar essa realidade? Como afirmar que é “falacioso o argumento que vivemos o punitivismo”?
Em quarto lugar, é preciso dizer que a crise da teoria do bem jurídico se alastra desde há muito – o que é impossível abordar neste curto espaço. Que dirá as teorias preventivas da pena, como a teoria da prevenção geral negativa – a intimidação proposta pelo articulista – que, por sua vez, é indemonstrável na prática. Na verdade, ao invés de proteger bens jurídicos, o Direito Penal da realidade tem produzido uma das maiores catástrofes humanitárias modernas: a violação de direitos humanos por meio do cárcere.
Basta lembrarmos das mais de 115 pessoas mortas nos primeiros 14 dias de janeiro de 2017 sob a custódia estatal. Se nem a vida é garantida pelo Estado, que dirá os outros direitos.
Diante do quadro nefasto de violação de direitos humanos no sistema prisional brasileiro, a Corte Interamericana de Direitos Humanos criou o primeiro supercaso de violação de direitos humanos, aglutinando quatro outros casos brasileiros que por ali tramitavam sobre essa mesma matéria. Ainda em 2007 – há mais de 10 anos, portanto – a CPI dos presídios já dava conta desse quadro caótico.
Em 2015, a ONU constatou, por meio de relatório especial, que na maioria das unidades prisionais visitadas no Brasil a condição de encarceramento era cruel, desumana e degradante. A Comissão Americana de Direitos Humanos já deferiu cinco medidas cautelares contra o Brasil por violação de direitos humanos de pessoas presas. Até mesmo o STF, em agosto de 2015, ao deferir a medida cautelar na ADPF 347, reconheceu o estado de coisas inconstitucional das prisões.
Como se não bastasse, o direito de defesa também tem sofrido duros golpes. Advogados e advogadas sendo processados criminalmente por... advogarem; escritórios inteiros sendo grampeados ilegalmente; vazamentos seletivos de interceptações e delações para a mídia; espetacularização do processo penal, em que jornalistas e jornaleiros tem acesso antes da defesa à peças processuais; apresentações acusatórias midiáticas de casos penais com direito a Power Point; conduções coercitivas ao arrepio da lei com objetivo de impedir o contato prévio com a defesa técnica; pacotes legislativos que pretendem ampliar prazos prescricionais, instituir testes imorais, impor ônus probatórios à defesa, reduzir o acesso recursal, além de tantas outras deformações do processo penal; e o uso abusivo de prisões preventivas como, por exemplo, contra os desvalidos, que respondem ao processo preso e depois cerca de 37% sequer é condenado à pena privativa de liberdade.
Esses são apenas alguns aspectos da realidade que está posta. O quadro é grave. Não há nenhuma falácia em afirmar que vivemos sim tempos de punitivismo exacerbado. O punitivismo não é uma falácia porque está empiricamente demonstrado nos foros e nos presídios todos os dias. Portanto, ou deixamos de lado nossas emoções e olhamos para os fatos, ou em muito breve teremos a maior população prisional do mundo – argumento irrefutável de punitivismo. Admitir o contrário é admitir a novínlingua de que falava Orwell, que contém em si o ranço do autoritarismo.