Eduardo Luiz Santos Cabette -
Recentemente, o Superior Tribunal de Justiça se manifestou acerca da questão do acesso, em investigação criminal, a comunicações por aplicativos como o WhatsApp e outros meios informáticos, bem como por intermédio de viva-voz. Com a prudência e o acato às normas constitucionais que devem marcar a jurisprudência, firmou entendimento de que há necessidade de ordem judicial para que o sigilo dessas comunicações possa ser violado (STJ, HC 51.531 – RO; RHC 75.800 e REsp 1.630.097).
Surpreendentemente, em posição oposta a essa orientação jurisprudencial do STJ e outros tribunais estaduais que seguem pela mesma senda, o I Fórum Nacional de Juízes Criminais elaborou o Súmula 7 com o seguinte teor:
“O acesso ao conteúdo de todos os dados, dentre eles, aplicativos e contatos telefônicos, em celular apreendido durante flagrante pela polícia não precisa de autorização judicial” (grifo nosso).
Procura-se defender essa tese, considerando as dificuldades de comunicação e morosidade para obtenção de autorizações judiciais nesses casos. Ocorre que esse é um problema prático, um problema ligado à estrutura das instituições, suas relações e logística, sua comunicação e interação. O argumento jurídico não é autorizado a solucionar esse tipo de questão. Para problemas jurídicos, devem ser moldadas soluções jurídicas; para problemas práticos, soluções práticas, jamais obtidas por meio de desvirtuamento da legislação ordinária e muito menos por violação das garantias constitucionais da intimidade, vida privada e reserva de jurisdição.
É plenamente possível apresentar propostas de agilização e integração entre Judiciário, Ministério Público e polícia judiciária em vez de simplesmente manter o status quo deficitário desses órgãos e optar pela suposta “solução” consistente na desconsideração da letra da lei e dos ditames constitucionais. Já estamos fartos de abundante legislação penal e processual penal meramente simbólica. Ninguém precisa de um Judiciário que venha a aderir ao simbolismo e apresentar-se não como sujeito imparcial, mas como uma espécie de “justiceiro” e reparador das mazelas das instituições, mediante distorções interpretativas. Isso não colabora para a melhora do sistema, antes o mantém emperrado à custa de violar direitos e garantias individuais.
Binder destaca a dificuldade em estabelecer critérios seguros para o reconhecimento de nulidades, devido ao fato de que as decisões judiciais variam motivadas por “considerações valorativas do momento”, apartadas “de qualquer marco de referência teórico”.
A forma no processo pode, eventualmente, e especialmente numa realidade precária como a brasileira, onde são sucateados órgãos como o Judiciário, o Ministério Público e a polícia judiciária, parecer um entrave. No entanto, há que lembrar com Ihering que, “inimiga da arbitrariedade, a forma é irmã gêmea da liberdade”. Na verdade, as formalidades legais exigidas são instrumentos de proteção de princípios voltados para a consecução concreta de garantias e direitos individuais, que devem permanecer incólumes diante de abusos do poder penal.
Infelizmente, o posicionamento dos juízes criminais que se espelha na Súmula 7 de seu I Fórum Nacional, revela a (in)consciente “inversão de lugares” por que passa o judiciário. Antes visto como um poder de manutenção de expectativas institucionais, agora se apresenta o Poder Judiciário como uma espécie de fonte esperançosa para mudanças. A Justiça passa de algo instituído para força instituidora.
Acontece que o juiz não é um “justiceiro”, um “policial”, um “acusador”, um “revolucionário” ou “reformador político”, ele é, ao reverso, aquele a quem cabe manter as promessas institucionais, especialmente aquelas fundadas nas normas constitucionais. Uma alteração nesse quadro, longe de produzir maior liberdade e justiça, tende ao arbítrio, uma espécie de ditadura ou totalitarismo judiciário. Nesse cenário, lei e constituição vão perdendo sua consistência, tornando-se cada vez mais evanescentes e indefinidas. A já frágil ideia de segurança jurídica se dissolve totalmente.
Eis o campo fértil para o populismo judicial. Nas palavras de Garapon:
“A tentação populista se caracteriza, antes de mais nada, por sua pretensão a um acesso direto à verdade. Alguns indivíduos aproveitam a mídia para se emancipar de qualquer tutela hierárquica. Ela lhes oferece um acesso direto, conforme expressão de Perelman, ao ‘auditório universal’, quer dizer, à opinião pública. Um juiz considera-se prejudicado por sua hierarquia? Ele apela imediatamente para a arbitragem da opinião pública. Todas as anulações processuais são purgadas por essa instância de recurso selvagem que a mídia representa, e os argumentos técnicos do direito ou processuais não tardam a revelar-se para a opinião pública como argúcias, astúcias, desvios inúteis, que impedem a verdade de ‘vir à tona’. A busca direta da aprovação popular por intermédio da mídia, acima de qualquer instituição, é uma arma temível à disposição dos juízes, o que torna muito mais presente o desvio populista. O populismo, com efeito, é uma política que pretende, por instinto e experiência, encarnar o sentimento profundo e real do povo. Esse contato direto do juiz com a opinião é proveniente, além disso, do aumento de descrédito do político. O juiz mantém o mito de uma verdade que se basta, que não precisa mais da mediação processual”.
Daí surge uma espécie de “ativismo” que simplesmente passa como um trator sobre a legalidade e a constitucionalidade, fundando-se na “inquisição e denúncia selvagem, emoção, horror, desconfiança em relação às instituições tradicionais e uma espécie de presunção de culpabilidade”.
Assassinando sem piedade o respeito pelos direitos e garantias individuais e as formalidades legais, pretende-se conformar uma atuação mais justa, célere e eficiente. Porém, o único resultado de tudo isso é um caos institucional, porque, como já dito antes, os lugares e temas estão trocados. Movendo-se na área jurídica, pretende-se obter soluções práticas; e na seara prática, soluções jurídicas!
Em encerramento, ficam as questões: por que em vez de os juízes criminais proporem a desconsideração da reserva de jurisdição para o acesso às comunicações telefônicas em aplicativos, não apresentam sugestões tais como:
investimento em pessoal e material para o Judiciário, Ministério Público e polícia judiciária;
instituição de programas de intercâmbio imediato, via telemática, entre juízes, promotores e delegados de polícia para casos de urgência (pedidos de mandados de busca, de quebra de sigilo telefônico, de interceptação etc.);
integração de redes de inteligência dos estados e federal na área das polícias em geral e do Judiciário e Ministério Público;
instituição urgente de um documento de identificação único com banco de dados nacional;
instituição de um banco de dados nacional para consulta sobre mandados de prisão e passagens criminais (mas, algo realmente eficiente, não o sistema precário hoje vigente).
Por que não essas e outras propostas práticas para a solução de um problema prático? Por que escolher a via fácil e deletéria de desconsideração das regras e princípios? Por que a opção pela “gambiarra” ao invés dos ajustes adequados?