Francisco Sannini Neto -
Nos últimos anos, vem se acentuando a crise em torno da segurança pública no país. Influenciado pelo fracasso do nosso sistema carcerário e, sobretudo, pela explosão de violência no Rio de Janeiro, o presidente Michel Temer decretou intervenção federal no referido estado, muito embora, vale dizer, outras unidades da federação apresentem índices criminais mais alarmantes.
Nos termos do artigo 34, inciso III, da Constituição da República, caberá intervenção federal “por termo a grave comprometimento da ordem pública”. Trata-se de medida constitucional, mas de natureza excepcional, na qual o interventor passa a ser a maior autoridade do estado, ao menos no que se refere à segurança pública.
Parece-nos bem questionável a eficácia dessa medida, que, no máximo, terá um efeito paliativo no combate à criminalidade. Já é possível vislumbrar, por exemplo, uma provável migração de criminosos para outros estados, mudando, assim, apenas o local do problema, sem nunca solucioná-lo. Devido à repressão das Forças Armadas, pode haver o enfraquecimento, ainda que temporário, das facções criminosas do Rio de Janeiro, o que, naturalmente, acarretará o fortalecimento da principal facção criminosa do país, concebida no estado de São Paulo.
Infelizmente, o amadorismo toma conta da segurança pública no Brasil, sendo certo que o tema será destaque no universo político deste ano, seja no âmbito estadual ou no federal. Um exemplo disso é o recém-anunciado Ministério da Segurança Pública, que, ao que tudo indica, deve concentrar sob o seu comando a Polícia Federal, a Polícia Rodoviária Federal, o Departamento Penitenciário Nacional e a Secretaria de Segurança Pública.
Em nossa visão, trata-se de mais uma medida simbólica com viés eleitoreiro que intenciona, sem qualquer pudor, transmitir uma falsa sensação de segurança ao cidadão brasileiro. A verdade é que de nada adianta a criação de um novo ministério se com ele não vierem novas propostas para a segurança pública do país. Justamente por isso não vemos razão para tanto. Considerando os gastos que envolvem a nova pasta, o ideal seria manter o tema no Ministério da Justiça.
No que se refere especificamente à Polícia Federal, parece-nos equivocada a ideia de vinculá-la ao Ministério da Segurança, haja vista que, muito embora as polícias judiciárias estejam no capítulo que regulamenta a matéria na Constituição da República, funcionalmente estão ligadas ao sistema de Justiça Criminal.
Sobre esse assunto, vale destacar o voto proferido pelo ministro Cezar Pelluso no RE 5.593.727/MG, que tratava sobre o poder investigatório do Ministério Público. O ministro relator lembrou que o artigo 4° do CPP dispõe que a apuração de infrações penais e sua autoria seriam de atribuição da polícia judiciária, destacando que, na realização do inquérito policial, a polícia exerce função judiciária, pois, se organicamente ligada à máquina administrativa, funcionalmente ela estaria ligada ao aparelho judiciário.
No mesmo sentido se manifestou Ferrajoli ao comentar as funções da polícia judiciária:
As diversas atribuições, por fim, deveriam estar destinadas a corpos separáveis entre eles e organizados de forma independente não apenas funcional, mas, também, hierárquica e administrativamente dos diversos poderes aos quais auxiliam. Em particular, a polícia judiciária, destinada, à investigação dos crimes e a execução dos provimentos jurisdicionais, deveria ser separada rigidamente dos outros corpos da polícia e dotada, em relação ao Executivo, das mesmas garantias de independência que são asseguradas ao Poder Judiciário do qual deveria, exclusivamente, depender” (grifamos).
De fato, as funções de apoio ao Poder Judiciário e a apuração de infrações penais repercutem diretamente na consecução da Justiça. Ao cumprir um mandado de prisão, por exemplo, as polícias Civil e Federal viabilizam a execução de uma pena ou asseguram a instrução processual. Por outro lado, através de investigações criminais, as polícias judiciárias conseguem reunir elementos probatórios que demonstram a justa causa necessária para o início do processo, instrumento indispensável para se chegar legitimamente à pena.
Conclui-se, pois, que as atividades exercidas pelas polícias judiciárias estão diretamente ligadas à Justiça e apenas indiretamente ligadas à segurança pública. Por óbvio, na medida em que se assegura a responsabilização penal do autor de um crime, de maneira reflexa também se contribui para a redução da criminalidade, uma vez que, quanto maior a eficiência da investigação criminal, maior a certeza da punição do criminoso, que, nesse cenário, será desestimulado a delinquir.
Um exemplo da eficiência da investigação criminal na redução das estatísticas criminais envolve o delito de extorsão mediante sequestro, previsto no artigo 159, do Código Penal. No final da década de 1980, houve uma explosão de extorsões mediante sequestro, sendo que vários empresários foram vítimas dessa infração, fazendo com que o Congresso Nacional editasse a Lei 8.072/90, criando os crimes hediondos e impondo os maiores rigores para os seus autores.
Destaque-se, todavia, que não foram esses rigores jurídico-penais os responsáveis pela redução das extorsões mediante sequestro, mas um sistema eficiente de investigação criminal. Foi a probabilidade de não obter êxito no seu ímpeto criminoso que resultou na redução desse tipo de crime. Nesse contexto, salta aos olhos a importância das polícias judiciárias na promoção e concretização da Justiça.
Não é outro o magistério de Zacariotto, senão vejamos:
(...) Deve a polícia judiciária ser tão-somente identificada como a atividade de pesquisa, necessariamente desenvolvida dentro dos parâmetros garantidores de isenção e de justiça, voltada à elucidação da verdade sobre os fatos considerados transgressores às leis penais, assim mirando, e em caráter restritivo, proporcionar condições excelentes ao Poder Judiciário para a aplicação do direito em face do aclarado caso concreto. No Estado Democrático de Direito, o exercício policial judiciário somente se fará legítimo quando balizado por um único e exclusivo compromisso, firmado não com a administração e/ou segurança públicas, mas sim, e cogentemente, com os fins de justiça criminal.
No intuito de reforçar nossas conclusões sobre o tema, lembramos que a primeira organização policial criada no Brasil, a Intendência Geral de Polícia, em 1808, por alvará de D. João VI, foi posta sob a direção de um desembargador e sob a representação de um delegado de polícia em cada província.
Posteriormente, por meio da Lei 261/1841, surgiu uma nova organização policial, comandada pelos chefes de polícia (escolhidos entre os desembargadores), auxiliados por delegados de polícia (selecionados entre os juízes de Direito). Nessa época, todas as forças policiais do país estavam vinculadas ao imperador, sob a supervisão de seu ministro da Justiça.
Em 1842 o Regulamento 120 oficializou, em seu artigo 3º, a criação da polícia judiciária entre nós, confiando-lhes não apenas a atribuição investigativa, mas também funções judiciais, o que, naturalmente, foi objeto de críticas na época. Por óbvio, não se pretende nesse trabalho ampliar as atribuições das polícias judiciárias, pois o julgamento de crimes compete ao Poder Judiciário. Contudo, essa digressão histórica tem o intuito de demonstrar a relação umbilical entre o Poder Judiciário e a polícia judiciária, razão pela qual entendemos que esta instituição policial deveria ser alocada no Ministério de Justiça, no âmbito federal, e nas secretarias de Justiça, no âmbito estadual.
Não se pode olvidar que as funções exercidas pela polícia judiciária não se assemelham às atribuições da polícia administrativa (ostensiva). Enquanto esta tem a função de assegurar a ordem pública, aquela tem o dever de assegurar a concretização da justiça. Nesse sentido, aliás, se posiciona Bandeira de Mello:
O que efetivamente aparta a polícia administrativa da polícia judiciária é que a primeira se dispõe unicamente a impedir ou paralisar atividades antissociais, enquanto a segunda se preordena à responsabilização dos violadores da ordem jurídica.
No mesmo diapasão, porém, de modo mais incisivo, é o posicionamento de José Afonso da Silva, cujo magistério merece ser transcrito na íntegra:
A polícia de segurança que, em sentido estrito, é a polícia ostensiva, tem por objetivo a preservação da ordem pública e, pois, 'as medidas preventivas que em sua prudência julga necessárias para evitar o dano ou o perigo para as pessoas'. Mas, apesar de toda vigilância, não é possível evitar o crime, sendo pois necessária a existência de um sistema que apure os fatos delituosos e cuide da perseguição aos seus agentes. Esse sistema envolve as atividades de investigação, de apuração das infrações penais, a indicação de sua autoria, assim como o processo judicial pertinente à punição do agente. É aí que entra a polícia judiciária, que tem por objetivo precisamente aquelas atividades de investigação, de apuração de infrações penais e de indicação de sua autoria, a fim de fornecer os elementos necessários ao Ministério Público em sua função repressiva de condutas criminosas, por via de ação penal pública.
Acrescente-se, ainda, que, além de viabilizar o exercício da pretensão acusatória do Estado, a investigação criminal impede que imputações infundadas desemboquem em um processo, preservando, assim, a pessoa investigada e evitando todos os gastos gerados pela persecução penal em juízo, fomentando, em qualquer caso, a concretização da justiça.
Frente ao exposto, fica evidente que as polícias judiciárias foram inseridas de maneira equivocada no capítulo da segurança pública na Constituição, sendo imprescindível distingui-las das demais corporações policiais. Daí a importância de se assegurar a autonomia das polícias investigativas, blindando-as das influências externas do governo a que se vinculam. Para tanto, o primeiro passo seria alocá-las no Ministério da Justiça e secretarias de Justiça.