Pedro Ivo Velloso Cordeiro, Ticiano Figueiredo e Oberdan Costa -
Na última sexta-feira (23/3), um promotor do Ministério Público do Distrito Federal pediu a liberdade de um preso preventivo por força de princípio aparentemente desconhecido pelos manuais da processualística penal: o Princípio Lula.
Sem perder de vista o ineditismo que o alarde em torno de seu uso gerou, é natural que se busque guarida na intelecção do próprio doutrinador: “Se o ex-presidente Lula não pode ser preso em eventual decisão do Tribunal Regional Federal até que o Supremo Tribunal Federal venha a julgar o Habeas Corpus, tendo em vista que o atraso é por conta do STF, então todos os casos que passarem pela minha mesa em que o atraso esteja relacionado a alguma falha do Estado, eu pedirei de ofício a liberdade do cidadão”.
A construção frasal, ao condicionar a um caso concreto uma conclusão pró-liberdade que, antes de legal, é até ética, soa quase como um fatalismo. Dito de outra forma: o tom do raciocínio parece redutível a um “se o ex-presidente teve, agora vou pedir para todo mundo”. Uma espécie de greve acusatória, em que promotores “sovinam” pedidos de prisão — à sociedade, talvez?
Se não houve aqui equívoco hermenêutico sobre a motivação irônica da enunciação do novel princípio — hipótese na qual um só pedido de desculpa é insuficiente — espera-se com sinceridade que a greve dure por muitos e muitos dias.
Para que fique claro, o Princípio Lula foi usado para pedir liberdade de preso cautelar em caso que ainda carecia de laudo pericial para prosseguir, de forma que, por morosidade do Estado, “sem o Princípio Lula” — a julgar pelo raciocínio acusatório — andaria tudo bem se o réu permanece encarcerado.
Pode parecer escusado, mas nos tempos estranhos que o processo penal amarga, não é despiciendo citar os clássicos e as aulas que deram outrora. É quando vem à mente o Segundo Tratado Sobre o Governo Civil, quando Locke se vê às voltas em uma seção do seu Magnum opus com o porquê de termos abandonado o Estado de Natureza, em sua liberdade desvairada, para dar direitos nossos de mão beijada ao governante. E a resposta era: esperávamos conforto; era um voto de confiança.
A discricionariedade do poder que cada homem possui de punir as irregularidades de outros faz com que eles busquem segurança sob leis acordadas e tentem garantir seus direitos naturais dessa maneira. A gestão responsável da punição, dentro do pactuado, era o objetivo do Contrato.
O governante, por sua vez, deve cumprir sua parte nesse contrato. Muito embora a concepção privatista lockeana sobre a teia de direitos e deveres que envolve cidadão e cidadela seja insuficiente aos olhos do cidadão contemporâneo, são a intuitividade e a naturalidade dessa alegoria contratual que baseiam a ausência de qualquer perplexidade na conclusão de que o réu não deveria permanecer sofrendo uma pena antecipada, inocente que é, porque o Estado faltou com seu dever de processá-lo em tempo compatível com seu status de presumida inocência.
Não precisamos, enquanto sociedade, de nenhum condicional em que o pressuposto é um caso concreto. O acerto da conclusão a que chega o Princípio Lula independe de Lula, e não deve ser encarado com incômodo de “sinal dos tempos” pelos promotores que, com a vênia de todos aqueles que disso sabem, não é um advogado de acusação. O promotor nunca deixa de ser fiscal da lei, mesmo quando é parte.
Não tínhamos Princípio Lula antes do julgamento do habeas corpus de Lula porque já chegávamos a essa conclusão usando o que estava nas prateleiras dos compêndios domésticos. Pré-neologismo, já nos parecia justo não deixar o réu amargar cadenas quando a dissolução da incerteza sobre ela era obrigação do Estado.