Roberth Alencar e Nilton Cesar Boscaro -
Os aspectos formais do inquérito policial, instrumento principal e inicial da primeira fase da persecução criminal no Brasil, consolidado cada vez mais como mecanismo de materialização eficaz das investigações policiais e indispensável para os alicerces da ação penal, encontram amparo legal no antiquado Código de Processo Penal, que apesar das alterações nos últimos anos, ainda não contemplou a modernização necessária para a celeridade da produção das provas das infrações de natureza geral.
O aumento progressivo da criminalidade organizada, a demora da prestação jurisdicional e o fortalecimento do Estado Constitucional de Direito são alguns dos fatores que determinaram inovações legislativas na fase processual (lato senso) da persecução penal, em especial a simplificação das investigações dos crimes de menor potencial ofensivo, mediante o Termo Circunstanciado de Ocorrência, estipulada no artigo 69 e seguintes da Lei 9.099/95; a utilização do sistema audiovisual acrescida ao artigo 405, parágrafo 1°, do Código de Processo Penal pela Lei 11.719/2008; e a dispensabilidade da autorização judicial para acesso a registros e a dados cadastrais de ligações telefônicas e telemáticas existentes em instituições públicas e privadas (artigo 3º, inciso IV da Lei 12.850/2013), alterações que surgiram como sinais de exigibilidade de uma modificação estrutural do inquérito policial.
No contexto, através da união de critérios práticos — experimentais — amparados por fontes legais e principiológicas, detalhamos uma série de atos próprios que podem ser incorporados no ordenamento jurídico brasileiro, especificamente através da eminente reforma do Código de Processo Penal.
De acordo com Dantas e Ferro Junior, “o mundo globalizado da ‘Era da Informação’, da telemática e do cada vez mais rápido transporte aéreo internacional, também globalizou, de alguma forma, o crime, suas práticas, padrões e tendências”, sendo que, não apenas por razões legislativas, mas circunstâncias que vão desde o comodismo até a discriminação quanto à investigação criminal por parte de alguns operadores do Direito que não aceitam referida evolução tecnológica nos instrumentos de investigação criminal e se valem de interpretações corporativistas na busca de concentração de poderes, e, ainda, em razão da ausência de recursos financeiros, que as diligências policiais investigativas não se modernizam.
A Lei 11.719, de 2008, alterou o Código de Processo Penal (artigo 405) no capítulo da instrução criminal em juízo, permitindo o registro de oitivas por meio de recursos tecnológicos, como meio audiovisual, sem a necessidade de transcrição.
Apesar dessa modificação normativa, entendemos imprescindível uma reforma substancial ampla na forma de produção do principal instrumento da primeira fase da persecução penal — investigação criminal pela Polícia Judiciária — através da modernização do inquérito policial. Discorrendo acerca da primeira fase da persecução penal, Manuel Monteiro Guedes Valente preleciona que:
A investigação criminal permitirá, desta feita, a aplicação da lei ao caso concreto, promovendo deste modo a sua “cristalização definitiva”, saindo de sua redoma abstracta para uma aplicação material e concreta, movida pelas instâncias que controlam (como a lei, a polícia, a acusação pública, o tribunal, o sistema penitenciário).
Nessa conjectura, pregamos, a priori, que a União, a fim de padronizar e, ao mesmo tempo, obter informações dos índices de criminalidade deveria buscar convênios com os estados-membros, patrocinando sistemas informatizados e todo o aparato tecnológico a fim que as diligências policiais fossem realizadas por meio audiovisual e/ou outras tecnologias da informação.
Com o advento do permissivo legal que possibilitou a coleta de oitivas por meio do sistema audiovisual durante a fase judicial da instrução criminal, integrantes das polícias judiciárias (alguns delegados de polícia) também passaram a utilizar a ferramenta durante a primeira fase da persecução penal, a fim de fortalecer a transparência dos atos de polícia judiciária, em especial no que tange aos direitos e garantias fundamentais do investigado, afastando eventuais argumentos de produção de prova ilícita, bem como facilitar a compreensão das narrativas, propiciando celeridade na confecção das oitivas.
O delegado da Polícia Federal Alexandre Henrique Lobo de Paiva, tratando sobre o tema, ponderou:
Percebe-se, então, que a difusão de tal meio de coleta de depoimentos na seara policial, além de conferir maior transparência, preservar ipsis litteris os termos utilizados e a expressão corporal, impor maior celeridade à coleta dos depoimentos e, até mesmo, economizar papel, contribuindo para a preservação ambiental, é medida que se impõe com urgência [...] Por fim, tem-se que a opção pela implementação, em larga escala, dos depoimentos registrados em meio audiovisual vai ao encontro dos princípios constitucionais garantidores dos direitos e garantias individuais e da administração pública (destaques nossos).
É fato que, perante a realidade das poucas condições dos recursos estruturantes das instituições policiais, a disseminação das oitivas por intermédio do sistema audiovisual tem aplicação casual, sem força institucional. Por outro lado, quando há a disponibilização dos meios tecnológicos e, principalmente, apoio do Poder Judiciário e do Ministério Público, a introdução de um novo conceito célere de investigação criminal se torna realidade, a exemplo de delegacias nos estados de Santa Catarina e Mato Grosso.
Para se dimensionar a relevância prática do uso do sistema audiovisual nas investigações criminais, é conveniente citar o Inquérito Policial 006/2015/DTP, elaborado pela Polícia Civil do Acre e transformado na Ação Penal 0005161-28.2016.8.01.0001 (em trâmite na 2º Vara Criminal da Comarca de Rio Branco), constituído em 11 volumes com mais de 5 mil folhas e 53 indiciados. Somente com o uso do recurso audiovisual foi possível formalizar no feito aproximadamente 130 oitivas, medida que possibilitou a conclusão do procedimento de forma rápida em um período aproximado de quatro meses.
Observando os efeitos positivos produzidos pela captação de depoimentos através do sistema audiovisual, entre outros, a celeridade, transparência, reforço na garantia de direitos, valoração da prova, aufere-se que o uso da tecnologia também deve ser estendido na realização de outras diligências policiais no bojo do inquérito policial, especificamente nas acareações; entrevistas informais, desde que assegurados os direitos fundamentais; reconhecimento de pessoas e coisas; reprodução simulada dos fatos; trabalhos em locais de crime; exumações e perícias; realizações de buscas pessoais e domiciliares; arrecadações e apreensões de bens; e cumprimento de medidas diversas de prisão e restritivas de liberdade, entre outras ações de natureza investigativa.
Embora a legislação dispense a transcrição (na instrução criminal em juízo), algumas das diligências policiais, efetivadas por equipamentos audiovisuais, poderiam vir acompanhadas de breves resumos escritos, por exemplo, oitivas, relatórios de local de crime e perícias, dentre outros.
O emprego dessas tecnologias nos instrumentos de investigação criminal, em especial no inquérito policial, otimizaria o tempo das diligências investigativas e, consequentemente, propiciaria uma célere resposta à demanda social, havendo maior probabilidade de aumentar os resultados dos indicadores de desempenho, ou seja, maior descoberta de crimes, autorias e recuperação de bens das vítimas.
A modernização desses instrumentos investigativos de forma isolada por cada Estado seria um avanço importante na agilidade da prestação do serviço público, frente aos escassos recursos humanos de que dispõem as polícias judiciárias.
Por outro lado, o aparelhamento pela União dos recursos tecnológicos facilitaria até mesmo na contraprestação de responsabilidade dos Estados, pois haveria um único sistema informatizado e o estabelecimento de indicadores padrões em todo o Brasil, produzindo informações transparentes quanto às estatísticas e análises criminais, o que promoveria uma eficaz accountability das polícias judiciárias.
Com o arrimo dos princípios da oralidade, eficiência e da oportunidade, passamos a discorrer sobre outra vertente plausível ao redimensionamento dos atos formais do inquérito policial, especificamente a admissibilidade pelo Poder Judiciário de representações policiais por medidas cautelares na modalidade oral ou por gravação em mídia (sistema audiovisual), acompanhado com um breve termo escrito.
Em uma interpretação objetiva, a medida parece ser totalmente incompatível com a regra processual de exigência da forma escrita, no entanto, a aplicabilidade da sugestão não afetará essa condição, pois será suprida com a lavratura de um conciso termo próprio contendo os requisitos de uma petição, incluindo endereçamento, qualificações das partes, motivos e fundamentação legal, além de pedido, assim como a própria legislação processual autoriza nos casos da representação nas ações penais (artigo 39, parágrafo 1º do Código de Processo Penal) e, excepcionalmente, no artigo 4, parágrafo 1º da Lei 9.296/96.
A aplicabilidade prática do modelo apresentado iria superar alguns problemas comuns no cotidiano das investigações, como a demora na apreciação das representações por medidas judiciais, as quais ficam tramitando por diversos setores do Judiciário (cartório, assessoria e gabinete), isso quando não são enviadas para o Ministério Público a fim de emitir o respectivo parecer, sofrendo os mesmos trâmites burocráticos e, consequentemente, atrasando a eventual prestação jurisdicional que, ao final, refletiria positivamente para as vítimas dos ilícitos penais.
A agilidade das apreciações das representações por ordens judiciais cautelares, ou seja, de caráter urgente — princípio da oportunidade —, aumentaria a quantidade de crimes em apuração nas polícias investigativas.
Conjuntamente com a possibilidade da distribuição de representações da polícia judiciária por meio oral e/ou gravação em sistema audiovisual, acreditamos que o uso moderado de recursos tecnológicos, incluindo sistemas de informação e aplicativos conexos entre alguns dos atores da persecução penal, em especial a polícia judiciária e o Poder Judiciário, subsidiariamente o Ministério Público e outros órgãos, permitiriam uma melhoria substancial na qualidade e proatividade das investigações criminais, desenvolvendo ainda mais a cooperação entre as instituições, circunstância inclusive prevista no inciso VIII do artigo 3º da Lei 12.850/13.
O uso de tecnologias em investigações é uma realidade ordinária nas policiais estrangeiras, como a norte-americana, que utiliza avançadas ferramentas de vínculos entre as instituições.
O Judiciário dos EUA implantou nos últimos anos um sistema de concessão de mandados judiciais eletrônicos, que podem ser solicitados pelos telefones inteligentes dos policiais, promovendo o andamento e a apreciação dos pedidos em um curto espaço de tempo. Obviamente que, em razão da cultura e sistemas de investigações de cada país, apenas o delegado de polícia possui competência para distribuir representações policiais na busca de elementos probatórios durante a primeira fase da persecução penal — investigação criminal.
Outra boa prática americana que descomplica as representações policiais, por exemplo, é a adoção de singelos formulários padrões para obtenção de ordens judiciais de busca e apreensão, similar ao “termo conciso” sugerido acima. Importante destacar que a adoção da modernidade nas investigações criminais em nosso ordenamento jurídico não tem o condão de alterar o modelo de investigação adotado pelo Brasil — sistema inglês —, sendo que “a mudança do inquérito policial para um sistema de investigação ministerial ou de juizado de instrução, pouco ou nada de útil ajudaria, hoje, no Brasil, na elucidação de mais crimes”.
As concepções sugeridas se inferem como possibilidades de revisão de um dos problemas atuais do processo penal brasileiro, iniciado na primeira fase da persecução penal, a burocratização dos atos formais, que além de arcaicos e complexos não acompanham a evolução e a demanda sociocriminal brasileira. Em paralelo, a otimização do inquérito permitirá também a formação do binômio melhoria do combate estatal a criminalidade — aumento quanto aos indicadores de desempenho dos resultados. Esses indicadores “em resumo, são recursos metodológicos que permitem avaliar se um determinado objetivo foi alcançado dentro de uma determinada organização”. Entre eles encontramos os indicadores de produtividade (eficiência), qualidade (eficácia) e efetividade (impacto).
É evidente que a aplicabilidade dos conceitos expostos depende de um conjunto de medidas que, além da renúncia aos egos institucionais dos atores da persecução penal, incluem a reforma do Código de Processo Penal; investimentos maciços nas instituições policiais, sobretudo, nos recursos humanos e materiais, principalmente no que concerne aos equipamentos da tecnologia da informação, assegurando uma verdadeira modernização nos instrumentos investigativos; e na admissibilidade de representações policiais orais ou gravadas.
Portanto, com a adoção dessas medidas podemos, em curto prazo, fomentar os parâmetros principiológicos de celeridade e economia processual, bem como garantir maiores resultados nos indicadores de desempenho, enaltecendo a fase investigativa e proporcionando um amplo aumento na resolução de crimes e, consequentemente, uma repressão mais qualificada, aliando os fundamentos do garantismo penal com a produção massificada de provas técnicas.