SE SUPREMO DEVE OBEDECER À VOZ DAS RUAS, QUAL É O VALOR DA CONSTITUIÇÃO?

Lenio Luiz Streck -  

No dia 6 de outubro de 1988, fiz meu primeiro controle difuso de constitucionalidade tendo por base a parametricidade da recém-promulgada Constituição.

Como promotor de Justiça, recebi um conjunto de processos judicialiformes vindos da Polícia Civil. Com efeito, à época do regime militar, foi editada a Lei 4.611, pela qual os crimes previstos nos artigos 121, parágrafo 3º, e 129, parágrafo 6º, do Código Penal teriam seus processos sob o rito sumário. O que acontecia era que o delegado era, ao mesmo tempo, policial, promotor e juiz. De imediato, suscitei o controle difuso ao juiz da vara no município de Panambi (RS), que, depois de muita discussão, atendeu ao meu pedido. Deixou de aplicar a Lei 4.611 e aplicou a Constituição.

Dali em diante, esses procedimentos judicialiformes deixavam de existir na comarca. O titular da ação penal, o Ministério Público, passou a ter o domínio dos inquéritos, passando, inclusive, a participar ativamente de uma espécie de controle externo da atividade policial, em obediência ao artigo 129, VII, da Lei Maior.

Minha ortodoxia constitucional começou ali, no dia seguinte à promulgação da Constituição. E por esse caminho venho trilhando dia a dia, lutando pela preservação do elevado grau de autonomia que o Direito exige.

Assim como, com Dworkin, eu acredito em respostas corretas, penso também ser possível estabelecer, a partir de critérios, uma forma objetiva de se fazer as coisas. E acho que é possível dizer, objetivamente, que há um jeito certo para se comemorar os 30 anos da Constituição cidadã: lutando contra sua fragilização. Minha participação no "Observatório", por isso, é um manifesto. Quero comemorar o aniversário de 30 anos da Constituição como tenho feito desde 1988: do jeito certo. Lutando por ela e sua força normativa.

À luta, pois.

Para que se possa combater um problema, inicialmente, é preciso identificá-lo: não se pode lutar contra aquilo que se desconhece, sob o risco de empregarmos nossos esforços em uma batalha contra moinhos de vento. Por isso, hoje, quero falar sobre algo que, para além do realismo e dos diversos voluntarismos (aqui incluída a ponderação à brasileira e a má compreensão acerca do positivismo), tem fragilizado a Constituição de 1988 e sua força normativa: a repristinação do dualismo metodológico predominante no século XIX e que adentrou o século XX. E que persiste no século XXI.

No século XIX, falava-se que as Constituições eram folhas de papel. Havia uma realidade social, que podia substituir a realidade das leis. Eram outros tempos.

Retomando o que escrevi, ainda em 2007, com Marcelo Cattoni e Martonio Mont’Alverne Barreto Lima, digo que esse fenômeno está presente no conceito de mutação constitucional de Laband e Jellinek. E como bem afirmam Artur J. Jacobson e Bernhard Schlink, é esse dualismo metodológico que impede o jurista alemão de lidar normativamente com o reconhecimento daquelas que seriam as influências das “realidades sociais” no Direito. 

Por que faço essa digressão? Porque essa fenomenologia parece tratar do que ocorreu e continua ocorrendo no Brasil: coloca-se uma contraposição da realidade social à normatividade constitucional. E a opção parece que tem sido pela primeira. Em síntese, a tese dualista herdada de Laband e Jellinek justifica, passados mais de um século, uma concepção decisionista da jurisdição e contribui para a compreensão das cortes constitucionais como poderes constituintes permanentes.

Traduzindo em termos mais claros: é o dualismo que fundamenta a sobreposição da “voz das ruas” sobre a Constituição.

Tempos interessantes estes em que vivemos: tempos em que o clamor social é capaz de afastar a densidade principiológica da Constituição que lhe dá sustentação. Tempos em que a “voz das ruas”, seja lá o que isso signifique, é capaz de dizer que, onde está escrito x, deve-se ler y.

Em países como nosso, uma visão de uma “realidade social” que vem para substituir a Constituição e sua força normativa é uma temeridade. Porque, quando a voz das ruas vale mais que a Carta Maior, viramos uma espécie de democracia plebiscitária. E essa democracia plebiscitária, por sua vez, acaba por validar um Judiciário plebiscitário. 

Afinal... O que é isto — a voz das ruas? Quando um ministro do Supremo diz "Estou atendendo ao anseio popular", "Temos de ouvir a voz das ruas", eu estarei aqui para dizer "Alto lá! Como se afere isso? Como se determina e mede a voz das ruas? Tem uma pesquisa?".

“A-há! Pegamos o professor Lenio”, alguém dirá. “Temos uma pesquisa.”

Bom, se a resposta for “sim, há uma pesquisa”, aí, paradoxalmente, o Judiciário não precisaria existir. A tese da voz das ruas torna o Judiciário autofágico. Porque se o anseio popular vale mais que a Constituição, caímos em um paradoxo: uma vez que podemos demonstrar o que pede o anseio popular, que vale mais que tudo, o Judiciário passa a ser dispensável.

Na verdade, nestes 30 anos da Constituição, ainda há um déficit considerável acerca do verdadeiro papel do rule of law. As faculdades de Direito colaboraram enormemente para que o ensino do Direito viesse a ser substituído por péssimas teorias políticas do poder. Resultado: na hora em que precisamos de resistência constitucional, o debate é tomado por posições ideológicas, em que soçobra(ra)m as garantias constitucionais. 

Quando um magistrado diz que julga “conforme sua consciência” ou julga “conforme o justo” ou “primeiro decide e depois vai encontrar um fundamento” ou ainda “julga conforme os clamores da sociedade”, é porque está repetindo algo enraizado no imaginário jurídico. É o velho dualismo metodológico que volta. E, naturalmente, um comportamento que se naturaliza leva muitos anos para “desnaturalizar”. Transforma-se em dogmática, eliminando o tempo e as coisas (cronofobia e factumfobia). E o que ocorre é que não queremos admitir que ideologizamos — para usar uma palavra suave — a aplicação da lei no país. 

Daí então a incômoda e difícil pergunta que deve ser respondida: o Direito, ao fim e ao cabo, é o que dele se diz por aí? Mas se isso é assim, se já se “naturalizou” essa concepção, por que continuamos a estudar ou escrever sobre o Direito? Não seria melhor deixar que “quem decide é quem sabe”?

A comunidade jurídica está em insolvência epistêmica. Fracassamos, porque não conseguimos contrapor ao dualismo uma coisa minimamente óbvia, obviamente mínima: Constituição é remédio contra a maioria. Um Supremo Tribunal não pode atender à “voz das ruas”, porque, entre o clamor das ruas e da Constituição, vale o ronco da Constituição. Ora, nenhuma democracia no mundo se fortaleceu com questões sazonais.

Em uma democracia, o Direito só se sustenta com certo grau de ortodoxia. E, nos 30 anos da Constituição, celebro com uma ode à sua força normativa.

Entre a voz das ruas e a resposta adequada à Constituição, fico com a segunda. Entre o consenso e a verdade, fico com a verdade.

Resumindo: se for verdade que o Judiciário (em especial, o STF) deve ouvir a voz das ruas e até existir pesquisa indicando isso, temos a seguinte questão: se a tese é boa, é ruim. Por uma simples razão: se a voz das ruas pode ser mensurada e deve ser levada em conta, já não precisa(re)mos do Judiciário. E a Constituição se torna desnecessária. Grandes ídolos morreram antes dos 30 anos: Jane Joplin, Jimmy Hendrix, Kurt Cobain, Jim Morrison, Amy Winehouse, Brian Jones... Esperamos que nossa Constituição não morra de overdose de ativismo, dualismos, pamprincipiologismo, hiperrealismos e outros ismos (como o neoconstitucionalismo).

 

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