Leonardo Marcondes Machado -
A investigação pública não constitui, por óbvio, mera liberalidade particular. A nenhum órgão estatal do sistema de Justiça criminal pode ser dado escolher arbitrariamente se deseja ou não exercer seu mister investigativo em face de um caso concreto. A disciplina deve ser obrigatoriamente legal e formada por regras claras que permitam controlar o exercício do poder estatal. Na esfera da chamada “investigação ministerial”, a coisa não pode ser diferente. A disciplina do poder investigativo do Ministério Público deve, obrigatoriamente, constar de modo expresso em lei e segundo hipóteses claras de atuação.
Por oportuno, sublinhem-se os diferentes lugares que podem ser ocupados pelo Ministério Público na etapa de investigação preliminar em um determinado sistema processual penal conforme a escolha político-normativa de cada país: a) órgão de presidência exclusivo: todas as investigações criminais estatais são dirigidas pelo Ministério Público, o qual pode se valer da polícia como órgão de execução; b) órgão de presidência supletiva: as investigações criminais estatais são dirigidas, em regra, pela polícia (investigativa), mas com hipóteses excepcionais expressamente admitidas em lei de presidência pelo Ministério Público; c) órgão de presidência nula/controller permanente: todas as investigações criminais são dirigidas pela polícia (investigativa), mas sob o controle (externo) do Ministério Público.
Todas essas são, em tese, opções válidas em um sistema processual penal democrático. Nenhuma delas constitui em si ou a princípio um modelo autoritário (em que pese críticas sempre possíveis a cada um desses esquemas teórico-normativos). O caráter antidemocrático da investigação ministerial está justamente na sua atuação para além de uma estrita previsão legal (inclusive em âmbito constitucional).
Alguns problemas recorrentes nesse campo, particularmente na tradição brasileira, se dão pelo vácuo normativo. Não há disciplina legal específica a respeito do poder ministerial de investigação (e suas hipóteses). Isso acaba gerando inúmeros dilemas concretos e, por vezes, diametralmente opostos, como a ausência de investigação ou a dupla apuração numa determinada situação. Há casos que são investigados tanto pela polícia quanto pelo Ministério Público, algumas vezes, inclusive, de modo cruzado, com prejuízo mútuo aos procedimentos investigativos. Outros, no entanto, deixam de ser investigados por ambos os órgãos sem qualquer justificativa ou nível de responsabilização.
Nesse sentido, a definição legal sobre a atribuição pública investigativa constitui regra básica do due process of law; trata-se, portanto, de exigência lógica de racionalidade do sistema processual penal e de direito subjetivo do imputado, além, é claro, de regra fundamental de gestão dos entes públicos (princípios básicos da legalidade, impessoalidade e eficiência na administração pública — artigo 37, caput, da CRFB).
Por aqui, mesmo depois do reconhecimento supremo da prerrogativa ministerial de investigação criminal (RE 593.727/MG), forte na teoria dos “poderes implícitos” (inherent powers ou implied powers), inexiste qualquer critério legal e, portanto, formalmente legítimo de distribuição dos casos penais entre os órgãos estatais (polícia e Ministério Público). Sequer a controvertida Resolução 181 do CNMP, que se (auto)intitula disciplinadora do “procedimento de investigação criminal a cargo do Ministério Público”, trata da questão.
Enfim, vigora, nesse particular, a máxima da “escolha arbitrária” e da “legitimidade aleatória” segundo o interesse (particular) casuístico. Algo, sem sombra de dúvidas, nada afeto ao regime democrático do Estado de Direito.
O cenário, entretanto, pode mudar com o projeto de novo Código de Processo Penal (PL 8.045/2010) atualmente em discussão na Câmara dos Deputados. Isso porque, muito embora a redação original do artigo 18, parágrafo 2º, do projeto de lei em tramitação seja absolutamente omissa nessa matéria (tal qual o atual CPP de 1941), o substitutivo ao PL 8.045/10 estabelece uma nova proposição legal.
Vale conferir a proposta legislativa substitutiva ao artigo 18 do novo CPP, especialmente quanto ao parágrafo 3º, in verbis:
Art. 18. A polícia judiciária e a apuração de infrações penais será exercida pelos delegados de polícia civil e federal, no território de suas respectivas circunscrições (...) §2º A atribuição definida neste artigo atenderá ao disposto no art. 144 da Constituição. § 3º O Ministério Público poderá promover, subsidiariamente, a investigação criminal quando houver fundado risco de ineficácia da elucidação dos fatos pela polícia, em razão de abuso do poder econômico ou político. § 4º A investigação criminal efetuada pelo Ministério Público sujeita-se às mesmas formalidades de numeração, autuação, respeito ao direito de defesa, e submissão a controle periódico de duração e de legalidade do inquérito policial pelo juízo das garantias. § 5º Para os fins de controle de prazo para o exercício da ação penal subsidiária, o Ministério Público deverá comunicar ao juiz das garantias a data em que se encerrar a investigação ministerial” (grifo nosso).
Veja que esse projeto (substitutivo) de novo Código de Processo Penal faz referência a um modelo de investigação ministerial supletiva ou subsidiária, de forma que o Ministério Público apenas assumisse a presidência investigativa criminal diante de um sério risco de ineficácia da atuação policial, seja pelo abuso do poder econômico, seja pelo abuso do poder político. Do contrário, vigeria a regra da investigação policial submetida a controle ministerial externo.
Destaque-se que a tese de poderes investigativos subsidiários do parquet não é completamente nova no Direito brasileiro. Já havia sido mencionada em alguns julgados do Supremo Tribunal Federal, principalmente nos votos dos ministros Celso de Mello, no HC 89.837/DF (repetido no RE 593.727/MG), e Gilmar Mendes, no RE 593.727/MG.
Aliás, é justamente com base nessa jurisprudência suprema que o professor André Nicolitt passou a sustentar duas características da investigação direta pelo MP, quais sejam, (i) a subsidiariedade e (ii) a excepcionalidade. Por força da subsidiariedade, só teria lugar a investigação ministerial quando verificada uma intencional omissão policial na apuração delitiva ou deliberada intenção de frustrar, em razão da qualidade da vítima ou da condição do suspeito, a regular investigação. Essa condição seria suficiente para o exercício do poder investigativo direto do parquet. Já pela excepcionalidade, só teria espaço a investigação ministerial naqueles casos de lesão ao patrimônio público ou desvios cometidos pelos próprios agentes e organismos policiais como tortura, abuso de poder, violência arbitrária, concussão ou corrupção. O que não justificaria, por si, a investigação ministerial; sendo necessário conjuntamente o preenchimento da hipótese anterior (desinteresse policial na apuração).
O modelo proposto deve ser elogiado, pois finalmente busca estabelecer critérios legais para a definição da atribuição, policial ou ministerial, investigativa criminal no processo penal brasileiro. A crítica, no entanto, reside justamente na falta de uma disciplina mais precisa a respeito desses vetores estabelecidos (abuso do poder econômico ou político) e do respectivo procedimento.
Diversas perguntas ficam em aberto. Citem-se, a título de exemplo, algumas delas:
A existência de uma investigação ministerial impede a regular instauração ou o desenvolvimento de uma investigação policial a respeito da mesma notícia-crime?
A quem compete a avaliação sobre o fundado risco de ineficácia da investigação policial por abuso do poder político ou econômico?
O investigado poderá arguir a nulidade da investigação, policial ou ministerial, perante o juiz de garantias por suposta ausência de atribuição do órgão investigativo estatal com base nessa regra?
Quem julga o conflito, positivo ou negativo, de atribuições investigativas entre polícia e parquet?
O desrespeito a esse sistema de investigação ministerial supletiva gera nulidade quanto ao processo penal decorrente?
Enfim, admitida a decisão suprema quanto à constitucionalidade da investigação direta ministerial, resta ao Congresso Nacional estabelecer no novo Código de Processo Penal a sua disciplina, enfrentando todas essas questões. Não pode o Legislativo se furtar ao regramento da matéria sob a alegação de não haver consenso firmado nesse campo. Os debates parlamentares sobre a reforma processual penal devem necessariamente abarcar a polêmica questão dos poderes investigatórios do MP, inclusive em audiências públicas, a fim de superar o atual vácuo normativo (espaço permanente de ilegalidade).