Por João Emmanuel Cordeiro Lima -
Há cerca de três meses, a imprensa nacional noticiou denúncia apresentada pelo Ministério Público Federal contra algumas empresas nacionais e estrangeiras fabricantes de produtos com açaí (suprimentos alimentares), pela suposta prática de crime consistente no acesso (pesquisa e desenvolvimento) ao patrimônio genético da biodiversidade brasileira sem autorização e sem repartir os benefícios decorrentes de sua exploração. Mais recentemente, a suposta biopirataria voltou aos jornais em razão do recebimento da denúncia pela 4ª Vara Federal da Seção Judiciária do Amapá.
A notícia possivelmente passaria despercebida caso a denúncia tratasse de outros crimes ambientais, afinal, a apresentação de acusações visando à punição de infrações ao meio ambiente é assunto do dia a dia do Ministério Público e pauta recorrente dos periódicos nacionais. O que chamou atenção no caso específico é que tanto a legislação que rege o acesso ao patrimônio genético no Brasil atualmente (Lei Federal 13.123/2015) como a que regeu no passado (Medida Provisória 2.186-16/2001) não tipificam o acesso sem autorização ou a ausência de repartição de benefícios como crime.
Não que o descumprimento dessas normas não acarrete consequência para os infratores. Na verdade, há previsão de sanções administrativas severas para aqueles que as violarem, que vão de pesadas multas até a interdição de estabelecimento. Foi com base nessas normas que o Ibama realizou duas grandes operações de fiscalização (operações novos rumos) que resultaram na aplicação de mais de R$ 200 milhões em multas entre os anos de 2010 e 2012. Mas isso não muda o fato de que esses estatutos legais não trataram seu descumprimento como crime.
Justamente por saberem que essas violações não estão tipificadas como crime, alguns parlamentares chegaram a apresentar projetos de lei com esse objetivo, caso dos PLCs 5.104/2005, 6.794/2006 e 7.710/2010. No entanto, nenhuma dessas iniciativas foi aprovada pelo Congresso. E oportunidade para tanto não faltou, uma vez que recentemente toda a regulamentação existente sobre o tema foi rediscutida e alterada durante o trâmite do projeto que resultou na Lei 13.123/2015. O legislador, porém, optou por manter apenas a sanção administrativa como mecanismo de controle de seu descumprimento.
Diante desse quadro, é de se perguntar como a denúncia do Ministério Público foi formulada e recebida pela Justiça Federal do Amapá.
Analisando peça processual, verifica-se que a solução encontrada pelo parquet para tentar criminalizar aquilo que o legislador aparentemente nunca quis foi invocar o artigo 68 da Lei 9.605/1998 (Lei de Crimes Ambientais). De acordo com esse dispositivo, considera-se crime ambiental a conduta de “deixar, aquele que tiver o dever legal ou contratual de fazê-lo, de cumprir obrigação de relevante interesse ambiental”.
Não é de hoje a crítica que se faz ao tipo penal em questão. Primeiro, por ter criminalizado de forma incompreensível o descumprimento não apenas de um dever legal, mas também contratual, como se o particular ou mesmo o poder público pudesse integrar o tipo penal com a celebração de um contrato. Segundo — e mais grave —, por ter se valido da expressão “obrigação de relevante interesse ambiental” para composição do tipo sem dizer que obrigações seriam essas, prejudicando severamente a sua compreensão não apenas pelos profissionais do direito, mas especialmente para o cidadão comum.
Ora, o artigo 5º, XXXIX da Constituição Federal estabelece como garantia do cidadão que “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”, consagrando regra civilizatória do Direito Penal cujos contornos já haviam sido traçados por Cesare Beccaria, no século XXVIII, em seu clássico Dos Delitos e Das Penas. A doutrina penalista extrai deste enunciado três regras fundamentais (ou princípios): 1) o crime deve estar previsto em lei (princípio da reserva legal); 2) a lei deve ser anterior à ocorrência dos fatos criminosos (princípio da anterioridade); e 3) o tipo penal deve ser redigido com um nível de clareza que permita ao cidadão saber se sua conduta é criminosa (princípio da taxatividade).
Na configuração do artigo 68 da Lei de Crimes Ambientais pelo legislador, pode-se considerar que as duas primeiras regras constitucionais foram cumpridas (há lei e ela só pode ser aplicada a condutas ocorridas depois de sua edição), mas a terceira aparentemente não, tendo em vista o uso da enigmática expressão “obrigação de relevante interesse ambiental” sem dar pistas sobre o que se trata. Por isso, o Tribunal Regional Federal da 1ª Região já decidiu em uma oportunidade que esse dispositivo seria inconstitucional. Afinal, como saber se uma obrigação é de relevante interesse ambiental?
A legislação ambiental brasileira é vastíssima. E não apenas em âmbito federal, mas também estadual e municipal, já que todos os entes federativos têm competência para legislar nessa seara, conforme artigo 24, VI, VII e VIII e artigo 30, I e II da Constituição. Isso significa que, se todos resolverem editar uma única lei — e a realidade é que editam muitas —, teríamos mais de 5,5 mil estatutos, cada uma prevendo um sem-número de obrigações voltadas à tutela do meio ambiente. Como definir quais serão consideradas de relevante interesse sem que o legislador tenha fixado um critério? Ficaria isso a cargo do poder Judiciário?
Pode-se afirmar — e com razão — que não é a primeira vez que o legislador brasileiro se valeu de expressões que demandam algum grau de interpretação para sua aplicação (tipos abertos) na elaboração de tipos penais. Contudo, o grau de imprecisão neste caso não encontra precedentes, demandando não interpretação, mas pura e simples criação caso se entenda que Judiciário é quem dirá se uma obrigação é ou não de relevante interesse ambiental em cada caso. Uma abertura de tal ordem seria a verdadeira negação do princípio da taxatividade, pois transferiria para o aplicador (juízes e tribunais) a tarefa de elaborar praticamente do zero a parte faltante de um tipo fluído e impreciso. E até que o faça, o jurisdicionado ficaria no escuro sem saber se sua omissão configura ou não crime.
Aceitar uma abertura dessa ordem seria o mesmo que admitir que em um rompante reformador o Congresso pudesse substituir os inúmeros e detalhados tipos do Código Penal e das leis especiais por meia dúzia de artigos tipificando como crime condutas como deixar de cumprir obrigação de relevante interesse fiscal; deixar de cumprir obrigação de interesse à saúde; ou deixar de cumprir obrigação de relevante interesse para o consumidor; e transferindo para o Judiciário a tarefa de dizer que obrigações seriam essas no caso concreto. A repulsa que essa ideia certamente causará deve ser a mesma gerada pelo tipo penal em questão, caso se entenda que ele pode ser aplicado tal como está, sem nenhuma complementação, mediante simples intervenção judicial. Isso porque a Constituição não autoriza o afastamento do seu artigo 5º, XXXIX — e do princípio da taxatividade dele decorrente —, simplesmente porque o intérprete ou o legislador julgam o bem jurídico em questão (meio ambiente) digno de uma proteção mais fluida.
Sendo assim, diferentemente do que defendem alguns autores, não nos parece que recorrer à prudência do Judiciário na aplicação desse dispositivo ou à possibilidade de revisão de decisões pelo sistema recursal sejam medidas suficientes para garantir sua validade. A única forma de mantê-lo no sistema em conformidade com a Constituição Federal é considerá-lo uma norma penal amplamente em branco e reconhecer que a expressão obrigação de relevante interesse ambiental exige outra lei para complementá-la e permitir sua aplicação, como corretamente já decidiu o Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Caberá a essa lei — e não ao aplicador — definir quais obrigações podem ser assim consideradas. Foi o que fez, por exemplo, a Lei 12.305/2010, que estabeleceu que a observância de alguns de seus preceitos configuraria obrigação de relevante interesse ambiental para os fins do artigo 68 da Lei de Crimes Ambientais. Com essa complementação, o cidadão passa a saber se determinada omissão é ou não crime sem precisar se submeter a um processo judicial para descobrir.
Veja que não basta que a lei defina uma obrigação e o juiz valore se ela é ou não de relevante interesse ambiental, como se a parte do tipo que exige a complementação por outra norma fosse apenas a inicial (“deixar, aquele que tiver o dever legal ou contratual de fazê-lo, de cumprir obrigação”). Para que ele possa ser aplicado em consonância com a Constituição, é preciso que a lei não apenas fixe a obrigação, mas também que a defina como de relevante interesse ambiental, como fez a já citada legislação de resíduos. Ao juiz caberá apenas analisar se a obrigação foi ou não descumprida e não aferir, de acordo com critérios subjetivos, se ela era ou não de relevante interesse ambiental, tarefa que já terá sido desempenhada pelo legislador.
Voltando à denúncia do Ministério Público, diante da inexistência de previsão expressa de quais obrigações ambientais seriam relevantes para fins de aplicação do artigo 68, seja na Medida Provisória 2.186-16/2001 ou na Lei 13.123/2015, buscou-se justificar a imputação afirmando que a relevância das obrigações de obtenção de autorização de acesso e repartição de benefícios estaria no fato de que a Constituição “impõe ao poder público a proteção da diversidade e à integridade do patrimônio genético do País (art. 225, II da CRFB/88) e considera a Floresta Amazônica brasileira patrimônio nacional, condicionando a sua utilização à forma da lei”. Acrescentou-se, ainda, que a obrigação de proteção aos recursos genéticos foi assumida internacionalmente pelo Brasil, estando prevista no artigo 15 da Convenção sobre Diversidade Biológica.
O argumento não para em pé pelas razões já indicadas, ou seja, por não ser possível aplicar o artigo 68 sem que uma lei expressamente indique que determinada obrigação é de relevante interesse ambiental para fins de sua incidência, e isto não é feito pela Medida Provisória 2.186-16/2001, pela Lei 13.123/2015 ou por qualquer outra norma. Como se não bastasse, o raciocínio de que a violação de um dispositivo constitucional é suficiente para configurar o crime, como pretende o parquet, leva à conclusão de que o descumprimento de praticamente toda obrigação ambiental configura crime, pois dificilmente uma violação não poderá ser reconduzida ao amplo artigo 225.
Vale também registrar que, ainda que se ignore todos os aspectos acima mencionados, fato é que a Medida Provisória 2.186-16/2001, que previa os deveres supostamente descumpridos pelos denunciados, foi revogada antes mesmo do oferecimento da denúncia. Em situações dessa natureza, em que se tem a revogação da norma que completava o tipo penal em branco, ocorre abolitio criminis e a norma penal mais benéfica retroage para beneficiar o suposto infrator, como já teve a oportunidade de decidir o STF no HC 94.397. Ou seja, também por esse fundamento, a conduta seria atípica.
Assim, por todas essas razões, o destino dessa denúncia — e de outras com fundamento semelhante — não poderia ser outro que não a imediata rejeição por ausência de tipicidade (artigo 395, II do CPP), uma vez que, nem mesmo em tese, o acesso sem autorização ou a ausência de repartição de benefícios configuram crime ambiental. O que pode e deve ocorrer nesses casos é a aplicação de sanções administrativas, desde que presentes os pressupostos legais necessários para tanto.
Vale ponderar que a presente análise considerou apenas a tentativa de incriminação com base na tese de que o descumprimento da legislação de acesso em si configura crime, como consta na denúncia do Ministério Público Federal a que se teve acesso. Não se ignora que, em algumas situações excepcionais, outras condutas relacionadas de forma indireta ou acessória ao acesso irregular possam estar tipificadas pelo ordenamento, ensejando a potencial responsabilização do agente. Imagine-se, por exemplo, se o sujeito apanha espécie da fauna silvestre ou corta árvore em floresta considerada de preservação permanente, sem permissão da autoridade competente, e utilize esses componentes da biodiversidade para fins de acesso ao patrimônio genético em desrespeito à legislação específica. O ato de apanhar ou cortar configuram crime, nos termos dos artigos 29 e 39 da Lei de Crimes Ambientais, mas o acesso ao patrimônio genético, não.
Evidentemente, nada impede que o Congresso Nacional decida alterar essa realidade e criminalizar o descumprimento da legislação de acesso se entender pertinente. Esta é uma questão de política criminal, que deve ser discutida e avaliada com o devido cuidado pelos representantes do povo se julgarem que a estratégia de sancionar o descumprimento da lei com severas sanções administrativas, como ocorre atualmente, é insuficiente. O que se entende descabido é que essa tentativa de reforma legislativa se opere pela via judicial, sujeitando as pessoas físicas e jurídicas ao ônus de responder a um processo penal pelo suposto cometimento de um crime que, até apresente data, não existe no ordenamento jurídico brasileiro.