Por Hamilton Dias de Souza e Daniel Corrêa Szelbracikowski -
A imprensa, mediante revelação da ConJur, tem noticiado investigações secretas conduzidas pela Receita Federal em face de agentes públicos, seus sócios e familiares para fins de apuração de ilícitos fiscais e criminais.
O tema exige análise acerca dos limites jurídicos de atuação da Receita.
Preliminarmente, é preciso esclarecer que a Receita pode, sim, criar programas de fiscalização direcionados a determinado grupo de pessoas (vg.: empresários, advogados, agentes públicos, professores etc.). É necessário, apenas, que os critérios de seleção sejam impessoais, objetivos e adequados à finalidade precípua do Fisco: arrecadar tributos.
Conforme consta da Nota 48 RFB/Copes (02/03/18) a Receita criou um programa específico (ContÁgil) para investigar uma base de mais de 800 mil agentes públicos “de todas as esferas de governo”. Esse programa filtraria os agentes públicos, seus parentes e sócios em empresas de até segundo grau a partir de critérios objetivos, tais como patrimônio acima de R$ 5 milhões, aumento patrimonial superior a quinhentos mil reais, rendimento isento declarado acima de R$ 500 mil e valor de dinheiro mantido em espécie acima de R$ 100 mil.
Isso por si só não é ilegal e nem desborda da competência da RFB, desde que a finalidade da investigação seja meramente fiscal. A Receita pode fiscalizar determinado grupo de pessoas, utilizando-se, para tanto, de todos os meios lícitos que estão à sua disposição – tais como cruzamento de informações, dados bancários recebidos de instituições financeiras, declarações do próprio contribuinte, etc. O Fisco rotineiramente realiza esse tipo de cruzamento de informações em relação aos contribuintes em geral, de modo que, se não pudesse fazê-lo em relação aos agentes públicos, haveria violação ao princípio republicano da isonomia previsto no artigo 5º da Constituição.
Porém, embora seja possível estabelecer-se grupo de contribuintes sobre o qual será direcionada a operação de fiscalização, a Receita não pode escolher – sem critério objetivo algum – determinada (s) pessoa (s) para investigar. Se isso ocorrer haverá afronta ao princípio da impessoalidade (artigo 37 da Constituição) e verdadeira devassa exploratória que consiste em permitir que o poder público realize um “disclosure” ilimitado da vida do cidadão, sob pretenso amparo do poder/dever de fiscalização, mas sem uma justificativa concreta, sem uma causa provável.
De acordo com o Supremo Tribunal Federal, o poder de fiscalização "não pode converter-se num instrumento de indiscriminada e ordinária devassa da vida financeira das pessoas" (MS 21 .729-4/DF – Min. Celso de Mello). Mais que isso, “o processo democrático é incompatível com ‘denuncismo’” (Inq. 1828 – Min. Nelson Jobim).
Em outras palavras, os critérios de investigação devem ser objetivos e impessoais. Se não forem, haverá ilegalidade.
Além disso, as fiscalizações da Receita devem mirar exclusivamente ilícitos tributários, nunca penais.
Ocorre que a RFB tem justamente adentrado ao campo das investigações criminais. Isso, sim, é ilegal. De acordo com a Nota 48 RFB/Copes, a própria Receita admite que instaurou grupo especial de fiscalização para, mediante “processo de investigação com abordagem exploratória”, descobrir “indícios de crimes contra a ordem tributária, corrupção e lavagem ou ocultação de bens, direitos e valores envolvendo agentes públicos”.
A Receita não pode criar uma investigação paralela para buscar supostos ilícitos penais, pois isso implica desvio de finalidade. Se, no curso do processo regular de fiscalização tributária, o fiscal da Receita detectar indícios da prática de crime comum (vg.: corrupção), tais informações devem ser encaminhadas ao Ministério Público para que este órgão eventualmente instaure investigação criminal, nos termos do artigo 129 da Constituição.
Repita-se, a Receita só tem competência para tratar de questões tributárias. Qualquer investigação deve ter por finalidade apurar eventual ilícito dessa natureza. Se tiver propósito outro haverá desvio de finalidade.
Por fim, o direito ao contraditório e à ampla defesa (due process of law) determinaria, no mínimo, que os investigados pela Receita Federal fossem cientificados dos procedimentos em curso e intimados para prestar eventuais esclarecimentos.
Em síntese, não há óbice para a instauração de programa especial de fiscalização direcionado a determinado grupo de indivíduos, desde que os critérios de seleção sejam impessoais e objetivos. A par disso, a fiscalização deve ter por objetivo a apuração exclusiva de ilícitos tributários, não podendo servir de pretexto para a investigação de crimes comuns, cuja competência escapa à Receita Federal. Nesse contexto, eventuais investigações criminais realizadas pela Receita Federal são nulas em decorrência do flagrante desvio de finalidade.