APLICAÇÃO DOS EFEITOS TRIBUTÁRIOS DA DENÚNCIA ESPONTÂNEA NA DELAÇÃO PREMIADA

Por Marco Aurélio Marrafon e Thiago Dayan -   

Independente das discussões sobre prós e contras, a delação premiada se tornou figura central no Direito Penal e Processual Penal brasileiro, a ponto de atingir o próprio sistema constitucional de garantias fundamentais em prol da ascensão cada vez mais evidente do direito negociado/transacionado. 

Contudo, para além da esfera penal, o descontrole de múltiplas instâncias decisórias e a existência de diversos órgãos estatais de controle com competências próprias e autônomas tem ensejado inúmeras questões jurídicas não resolvidas que colocam em xeque a própria sobrevivência do instituto, tais como a cumulação de sanções pelo mesmo fato.  

Adentrando nesse tema, o presente artigo analisa as consequências tributárias da delação premiada e a necessidade de equiparação com os efeitos da denúncia espontânea como garantia de segurança jurídica e mesmo da sobrevivência e busca de melhores resultados da própria delação.  

O Supremo Tribunal Federal já assentou que a delação premiada possui natureza de negócio jurídico processual personalíssimo com efeitos no direito material (vide decisão no HC 127.483, rel. min. Dias Toffoli. Tribunal Pleno. Julgado em 27/8/2015). 

Enquanto negócio jurídico, ela pressupõe os requisitos de validade, vigência e eficácia, inclusive a espontaneidade e autonomia da vontade das partes para sua celebração.  

Do mesmo modo, para que a delação premiada cumpra seus objetivos e não viole direitos fundamentais e garantias processuais, ela deve ser regida pelos princípios da segurança jurídica, da boa-fé, da confiança, da lealdade processual, da maximização dos resultados e máxima eficácia da prestação jurisdicional.  

Como cediço, a delação premiada não é prova em si, mas, como a própria dicção legal deixa claro, ela é meio de obtenção de prova (artigo 3º, Lei 12.850/13), com efeitos que extrapolam a seara criminal. 

Isso porque é comum nos acordos de delação que a justificativa para caracterizar o interesse público na celebração do acordo contenha uma cláusula que prevê justamente a repercussão dos ilícitos penais nas esferas cível, administrativa, tributária e disciplinar, conforme está expressamente previsto no acordo de delação de Alberto Youssef e Paulo Roberto da Costa, no bojo da operação "lava jato".  

Estabelecidas essas premissas, o presente artigo tem como foco analisar os efeitos da delação na seara fiscal e tributária e sua proximidade com o instituto da denúncia espontânea.  

Para tanto, é preciso distinguir entre duas situações:  

(i) a Receita Federal utiliza informações confidenciadas nas delações e faz autuação fiscal em cima dos próprios crimes delatados, por exemplo, pagamentos de propina e lavagem de dinheiro; e 

(ii) as informações da delação geram autuações de sonegação a partir da movimentação financeira ou pagamentos que estão diretamente ligados aos crimes confessados, como também são autuadas outras operações que decorreram de movimentações que não estão diretamente ligados aos crimes confessados. 

No caso (i), a solução constitucionalmente adequada é a impossibilidade de punição e cobrança posterior, uma vez que o próprio Estado não pode sustentar sua arrecadação diretamente no objeto ilícito, por exemplo, Imposto de Renda incidindo em pagamento de propina. 

De maneira alguma se pode conceber a possibilidade de que se institua como hipótese de incidência de tributos bens ou rendas provenientes do exercício de atividades ilícitas. 

O próprio conceito de tributo descrito no artigo 3º do CTN nos ensina que é impossível a instituição de tributo decorrente de sanção por ato ilícito. Quando a Receita Federal lavra um auto de infração decorrente de informações vinculadas a uma delação premiada, ela está se locupletando de ações que ela mesmo proíbe, associando-se à ilegalidade e dela tirando proveito. 

Já na hipótese descrita em (ii), a situação se revela mais complexa, ensejando uma análise pormenorizada das consequências, especialmente em face do princípio da proibição de cumulação de sanções (ne bis in idem) em um contexto de multiplicidade de órgãos de controle e sancionadores e da necessidade de preservar a eficácia e maximizar os resultados obtidos com a delação em prol do interesse público.  

E é sobre esse segundo caso, mais especificamente, que se dirigem as linhas seguintes.  

Proibição de cumulação de sanções e maximização de resultados Já está bastante sedimentado no pensamento jurídico que a delação premiada opera como um jogo de estratégia entre sujeitos que ponderam custos e benefícios.  

Desse modo, sua eficácia é melhor compreendida a partir da Teoria dos Jogos, tornada célebre a partir das teses de Jonh Nash. Nela, a interação humana e suas estratégias de tomada de decisão são analisadas a partir dos impulsos que os agentes racionais sofrem com base na possibilidade de obter uma recompensa ou ser acometido de um prejuízo.  

Aplicada à delação premiada, a recompensa gera o incentivo à colaboração, maximizando seus resultados. No entanto, para que isso ocorra, é preciso abater os custos.

Nessa perspectiva, a questão é tratada com a racionalidade típica do movimento da Análise Econômica do Direito (AED), a qual acolhe o Teorema de Coase como importante vetor para o fomento de melhores resultados na negociação.  

Coase advoga uma mudança de olhar nas relações entre Direito e Economia, destacando as consequências econômicas dos entendimentos jurídicos, de modo que os custos das transações devem ser considerados na propriedade de direitos, levando a maior eficiência.  

Daí porque é preciso considerar a redução de custos para maximizar os resultados nas delações premiadas e, dentre eles, a possibilidade de punir mais de uma vez sobre os mesmos fatos e sanções tem se tornado uma das mais graves questões para a sobrevivência e o futuro do instituto.  

É certo que nesse jogo, como bem anota o ministro Marco Aurélio, “os delatores premiados, como as pessoas em geral, movem-se estrategicamente e fazem afirmações que atendam, muitas vezes, suas próprias circunstâncias e não a busca de verdade”. 

No entanto, em face das diversas discussões existentes sobre a delação e os seus efeitos, principalmente no campo tributário, ainda não existe suficiente regramento para que exista segurança jurídica mínima que respalde o colaborador.  

Apesar de alçado à categoria de direito fundamental, inexiste no Brasil uma regulamentação clara acerca da aplicação do princípio do ne bis in idem, isto é, da proibição de mais de uma punição pelos mesmos fatos e fundamentos, o que tem propiciado inúmeros conflitos entre diferentes órgãos controladores, o que se agrava diante da autonomia das diferentes esferas administrativas, cíveis, penais e tributárias e da ausência de um posicionamento pacificador da parte do Poder Judiciário.  

Todavia, como bem anota Keity Saboya, “garantias contra novos processos ou contra riscos de novos processos, contra uma segunda condenação ou contra uma segunda sanção, e também contra qualquer nova pretensão com sentido retributivo são asseguradas pelo espectro de proteção do ne bis in idem”.  

É preciso, então, encontrar soluções legais e doutrinárias que possam conciliar de um lado i) o interesse público primário em repelir o ilícito e a autonomia dos diferentes órgãos sancionadores com ii) a necessidade de redução de custos para máxima eficácia do instituto da delação, com as proteções legais inerentes à validade dos negócios jurídicos e os princípios constitucionais que assegurem os direitos fundamentais e as garantias processuais dos cidadãos, incluindo o ne bis in idem.  

Paraquedas dourado na área tributária: a equivalência com a denúncia espontânea Cientes da importância de gerar incentivos para promover melhores meios para a alocação eficiente de recursos, grandes empresas do mundo inteiro têm buscado programas de benefícios e redução de custos que possam impulsionar seus colaboradores, em especial altos executivos, a alcançarem melhores resultados.  

Dentre eles, o chamado “paraquedas dourado” consiste em uma cláusula que prevê uma indenização em caso de rescisão de contrato, em especial no caso de fusões e aquisições hostis, para que o Executivo faça um pouso suave, ou seja, tenha condições de se prevenir de imprevistos futuros. O paraquedas dourado é uma proteção cujas bases remontam ao princípio da não surpresa, entendido como importante fator de incentivo. 

Nesse sentido, após lembrar que o advento da Justiça negocial não pode significar a violação das garantias processuais constitucionais, Aury Lopes Jr, Alexandre Morais da Rosa e Philipe Benoni Melo e Silva defendem que “a inserção de cláusulas de paraquedas dourado nos contratos penais que envolvem a delação premiada, para assegurar um “pouso suave” às partes envolvidas, trará mais segurança jurídica ao instituto da colaboração”.  

Essa medida é de todo conveniente não apenas em matéria criminal, mas também nas demais questões inerentes às esferas administrativas e tributárias.  

Indo além, uma vez que a delação premiada se perfaz enquanto negócio jurídico processual e uma das partes é o Estado enquanto ente superior de garantia e manutenção da ordem social, ainda que seus órgãos tenham autonomia e competências diferenciadas, o princípio da boa-fé, da lealdade processual, da não surpresa e da confiança, aliados ao princípio da maximização de resultados, faz com que, no que se refere à matéria tributária, a delação premiada opere como um equivalente funcional à denuncia espontânea.  

Mesmo não sendo institutos idênticos, mas similares em características, fundamentos e consequências na ordem jurídica, a ideia de equivalência funcional, aliada à necessidade de observância dos princípios acima citados, permite que as recompensas previstas na denuncia espontânea em matéria tributária sejam estendidas e aplicadas também na delação premiada, evitando que o réu-colaborador seja surpreendido pelo Estado e assim prejudicando o incentivo à colaboração.  

Com efeito, a denúncia espontânea é o instrumento previsto no artigo 138 do Código Tribunal Nacional por meio do qual o contribuinte, antes de qualquer procedimento administrativo ou medida de fiscalização, confessa para o Fisco que praticou algum descumprimento da obrigação tributária principal. Como medida de recompensa, ficará dispensado de pagar a multa.  

O benefício de denúncia espontânea associa-se à política tributária indutora de comportamento de retorno à legalidade e, para tanto, premia o infrator que por vontade própria fez o caminho de volta à seara do comportamento esperado socialmente. 

Nesse mesmo sentido, o contribuinte, ciente que cometeu infração tributária, com o temor de que a ilegalidade venha à luz, confessa a prática desse ilícito. Como consequência desse arrependimento, o Fisco atua de forma benevolente e propõe a benesse de excluir as multas aplicáveis ao caso. 

Sendo assim, delação premiada e denúncia espontânea possuem diversas características comuns:

(i) o ponto de partida é um conflito/desajuste entre o réu/contribuinte e a lei, gerando a possibilidade de severa punição judicial ou pelo Fisco; 

(ii) a confissão/denúncia tem por objetivo obter a recompensa: livrar-se de sanções ao retirar sua razão jurídica; 

(iii) há interesse público relevante em oferecer a recompensa como um incentivo para que se descubram situações que dificilmente seriam aclaradas; 

(iv) o interesse público também se perfaz na cessão da situação ilicitude; 

(v) ambas prestigiam a eficiência na prestação jurisdicional, uma vez que têm lugar a partir da incapacidade estatal de dar respostas às infrações criminais e/ou tributárias no seu devido tempo; 

(vi) promovem a redução de custo na ação estatal, seja persecução penal, seja na administração tributária e; 

(vii) facilitam a restituição financeira ao erário, seja na forma de ressarcimento de prejuízos causados por crime, seja no adimplemento de tributo devido.  

A partir dessas similaridades, é possível fazer uma interpretação conforme a Constituição e possibilitar que o acordo de delação seja instrumento funcionalmente equivalente à denúncia espontânea junto ao Fisco nos casos em que se confessa sonegação sem que esta esteja relacionada a um objeto direto de um outro crime, por si só, redimido.  

Essa leitura não implica na defesa da possibilidade de que o Ministério Público e/ou o delegado de política possa transacionar interesses fiscais, uma vez que não existe atribuição legal para tanto.  

Apenas traz a discussão sobre a possibilidade de reduzir a carga tributária do contribuinte enquanto recompensa e, logo, incentivo para revelar o máximo em sua colaboração, visto que o objetivo final seria alcançar a devida elucidação de ilícitos graves, tanto na esfera criminal quanto na esfera tributária. 

Decerto a tese ora esposada exige maior aprofundamento e análise de questões práticas, mas desde já se deve considerar que os novos desafios para a garantia de segurança jurídica e de máxima efetividade da delação premiada demandam o enfrentamento de seus efeitos nas esferas administrativas e tributárias em consonância com as garantias processuais constitucionais, o que pode significar aproximações permitidas no âmbito da interpretação constitucional ou, caso necessário, aperfeiçoamentos legislativos.  

O que não é constitucionalmente admitido é a ação contraditória e inesperada entre diferentes órgãos estatais ou mesmo que o Estado venha a ser sócio de um ilícito confessado em sede de colaboração.

 

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