Por Otávio Mazieiro -
É inegável o avanço na utilização de métodos consensuais de combate à corrupção no Brasil, notabilizado pelos acordos de colaboração premiada e leniência, os quais assumiram um papel de protagonismo na operação "lava jato". Não obstante, como decorrência natural da evolução e expansão de novos institutos, o noticiário recente traz com destaque controvérsias sobre a aplicação prática da modalidade.
Uma das frentes de desarmonia se dá em razão da pluralidade de autoridades legitimadas para propositura de ações de responsabilização e, consequentemente, para celebração de acordos, o que pode gerar a irracionalidade do mecanismo, pois a solução consensual conferida perante uma autoridade pode não ser acolhida por outra. O episódio resulta em grave insegurança jurídica aos particulares lenientes, com justo receio de, após confessarem os ilícitos, serem acionados judicialmente ou administrativamente por outros entes legitimados, levando à aplicação de sanções gravíssimas que praticamente geram a inviabilidade da atividade empresarial — tal como a proibição de contratar com o poder público e receber incentivos fiscais, atingindo, até mesmo, a dissolução compulsória da pessoa jurídica.
Exemplificando, tal fato poderia ocorrer quando uma autoridade (Ministério Público Federal) celebra o acordo com o particular e, apesar disso, outra autoridade igualmente legitimada (Advocacia-Geral da União) não concorda com o pacto firmado e move ação pretendendo a responsabilização do particular leniente, em todo o espectro sancionatório cabível e acima mencionado. O mesmo pode suceder na hipótese de ser celebrado um primeiro acordo em nível nacional (Ministério Público Federal), relatando fatos complexos e diversos, os quais, posteriormente, com avanço da investigação, podem se deslocar para outra autoridade competente (Ministério Público estadual) que não concorde com o desfecho consensual dado ao caso.
Ressalta-se que a hipótese traçada para análise pressupõe uma intransigência insuperável por parte de uma autoridade em não respeitar um acordo já celebrado, gerando efetivamente um conflito que necessite de solução no campo jurisdicional, considerando ser salutar a interlocução pretérita entre autoridades legitimadas para composição simultânea com o particular — à semelhança da forma incentivada pela portaria interministerial firmada pela Advocacia-Geral da União e Controladoria-Geral da União.
Face ao imbróglio descrito, advogará pela necessidade de os atores jurídicos envidarem esforços aptos a conferir harmonia ao programa negocial de combate à corrupção, trazendo dois principais aspectos de análise, a saber: (i) as inovações legislativas que conferem ânimo à adoção prioritária de soluções consensuais, reflexo do interesse público que é prestigiado por este método; e (ii) a atribuição e competência discricionária e/ou vinculada conferida às autoridades legitimadas a firmar acordos.
Quanto ao primeiro aspecto, temos que foram promovidas alterações legislativas, sobretudo em 2013, que possibilitaram o desenvolvimento de um programa consensual de combate à corrupção, como a Lei de Organização Criminosa e a Lei Anticorrupção, trazendo, respectivamente, disposições sobre acordo de colaboração premiada e acordo de leniência, a conferir mínima segurança jurídica ao instituto.
Importa ressaltar que grande parte do avanço legislativo pode ser entendido como uma resposta do Poder Legislativo à sensação de impunidade que permeia a sociedade brasileira, sobretudo acerca do tema de corrupção — o que, de fato, tem a sua razão de ser, pois estatísticas do Conselho Nacional de Justiça apontam que quase 90% das ações de improbidade administrativa não resultaram em ressarcimento ao erário, sendo que, contrário a este panorama, os acordos celebrados nos últimos anos possuem a expectativa de render R$ 24 bilhões aos cofres públicos, conforme divulgado pela Procuradoria-Geral da República.
Portanto, deste primeiro aspecto, infere-se que o programa consensual de combate à corrupção se mostra vantajoso ao interesse público, pois além de sua eficiência no quesito de ressarcimento ao erário e de angariar elementos que propiciam o avanço de complexas investigações, pressupõe a sobrevivência da pessoa jurídica e de sua atividade econômica, com a difusão de uma nova cultura empresarial no setor afetado por práticas ilícitas, induzindo que outros agentes e participantes do mercado se adequem às práticas de conformidade.
Para além da intenção legislativa, refletindo a vontade popular em conferir predileção ao modelo consensual, entende-se, em um segundo aspecto de abordagem, que a análise estritamente jurídica acerca do exercício de discricionariedade e vinculação para celebração do acordo de leniência confere racionalidade e harmonia ao programa consensual.
Isto porque, defende-se que a primeira autoridade a celebrar o acordo possa exercer o âmbito da competência discricionária, vinculando as demais autoridades legitimadas, evitando-se, assim, eventuais conflitos porventura existentes.
Parte-se da premissa que o leniente se obriga perante o Estado a colaborar com as investigações em relação a todas as autoridades, sendo oportuno exigir a contraprestação contratual de segurança jurídica e proteção ao particular, a fim de que em relação aos fatos narrados não exista a sua responsabilização para além do quanto já pactuado, exceto em casos de descumprimento de cláusulas do acordo, por exemplo, a omissão dolosa de informações e dados de corroboração.
Destarte, compreende-se que é cabível o exercício discricionário pela primeira autoridade para celebração do acordo, não bastando o preenchimento de requisitos objetivos, sendo também necessária uma análise subjetiva da autoridade competente, ainda que dentro de uma margem de liberdade delimitada, por exemplo, acerca da oportunidade e conveniência dos relatos trazidos pelo candidato a leniente para a investigação, bem como sobre a boa-fé demonstrada pelo particular.
No entanto, após o exercício de discricionariedade pela primeira autoridade, concebe-se que não há mais espaço para um novo exercício discricionário por outra autoridade, restando apenas o exercício de um ato vinculado, com necessidade de observância aos termos do acordo já firmado pelo Estado com o particular.
Ora, o Estado, embora representado por diferentes entes, emana e possui um único interesse público, o qual é exercido na competência discricionária em uma única oportunidade, não existindo racionalidade jurídica em se permitir que distintas autoridades de um mesmo Estado contradigam sobre qual é o melhor caminho para atingir o interesse público, em um caso concreto.
Em vista disso, uma vez exercido o âmbito da discricionariedade por autoridade competente, optando pelo caminho consensual, as demais entidades legitimadas necessitam conferir observância aos termo do acordo celebrado, pois não se pode identificar duas formas distintas que resultem na melhor maneira de se atingir o interesse público, de modo que uma vez realizado o juízo de conveniência e oportunidade pela primeira autoridade direcionada ao método consensual, resta apenas o exercício de um ato vinculado pelas demais, conferindo respeito aos termos pactuados.
Por consequência, entende-se pela ausência de interesse processual de uma autoridade “não aderente” em pretender responsabilizar e sancionar o particular leniente, haja vista a contrariedade ao mecanismo de consensualidade, incentivado pela legislação e já escolhido, a priori, por uma autoridade como a melhor forma de se efetivar o interesse público no caso concreto.
Isto é, a autoridade “não aderente” não se valerá do meio útil, necessário e adequado para reparar a suposta lesão e corrigir a conduta ilícita praticada, pois que pretere uma solução consensual já conquistada pelo Estado, em que o particular confessou e reparou o dano — se mostrando mais eficaz e vantajosa, falecendo, por conseguinte, o interesse processual. Decerto, excetuam-se, a depender do caso concreto, discussões e divisões acerca de valores de multas e de ressarcimento ao erário, que podem ser ponderadas sob critérios objetivos pelo Judiciário.
Não se mostra racional e lógico que seja conferido ao particular a possibilidade de ser recepcionado em seu intento de remediação e de colaboração por um braço estatal e, simultaneamente, seja apunhalado por outro, em razão da simples discordância estabelecida entre autoridades do mesmo Estado acerca da solução consensual conferida ao caso concreto. Quer-se dizer, o particular não pode ficar à deriva de diversas vontades estatais contraditórias, emanadas por entes distintos, pois além de o Estado descumprir o compromisso assumido na celebração do pacto, causa evidente risco ao programa consensual que vem se mostrando exitoso e benéfico ao interesse público.
Assim é que, sob pena de desprestígio e arrefecimento do mecanismo consensual de combate à corrupção, é necessário conferir efetiva racionalidade e harmonia em sua aplicação prática, mitigando as hipóteses de conflito entre autoridades igualmente legitimadas, priorizando uma atuação do Estado que preserve o particular leniente e prestigie as soluções consensuais que se mostram vantajosas ao interesse público, seja pelo benefício na atuação investigatória, seja pela pronta recuperação de valores ao erário, seja, ainda, por propiciar a inserção de uma nova cultura ética em setores previamente afetados e maculados por práticas ilícitas.