O ENTENDIMENTO DO STF SOBRE LAVAGEM DE DINHEIRO NO CASO EDUARDO CUNHA

Bárbara Lima Rocha Azevedo e Gabriel Freire Talarico -  

No dia 9 de abril, ao indeferir a ordem de Habeas Corpus pretendida pela defesa do ex-deputado federal Eduardo Cunha, a 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal julgou impossível a consunção entre os crimes de lavagem de dinheiro e corrupção passiva na hipótese em que os valores ilícitos são recebidos em conta de trust fund no exterior. 

O debate acerca da relação sensível entre os tipos penais em questão não é novidade na academia e na jurisprudência. Chama a atenção, contudo, a mudança drástica, repentina e perigosa de posicionamento da suprema corte sobre o tema. 

Tenhamos em mente que, no julgamento da Ação Penal 470 (mensalão), notadamente no caso do deputado João Paulo Cunha (PT), auxiliado pela brilhante tese apresentada pelo professor Pierpaolo Bottini, o STF fixou o entendimento de que os atos dissimulados empregados no recebimento de valores ilícitos não constituem crime autônomo de lavagem de dinheiro. 

Ainda, segundo a corte suprema, para o reconhecimento do crime de lavagem de dinheiro, não há distinção entre atos singelos e atos complexos, assim, qualquer ocultação, elaborada ou não, deve ser considerada típica. Portanto, prevalece no STF, ou ao menos prevalecia até o julgamento do writ em questão, o entendimento de que o encobrimento, qualquer que seja ele, quando for um meio indireto de recebimento, está contido no crime de corrupção passiva.  

Surpreende, portanto, que em hipótese perfeitamente compatível com o entendimento estabelecido e observado desde o mensalão, não tenha o Supremo Tribunal Federal afastado de imediato a condenação pelo crime de lavagem de dinheiro no caso do ex-deputado federal Eduardo Cunha.  

Na ação penal referente, o emedebista carioca foi condenado pelos crimes de corrupção passiva, lavagem de dinheiro e evasão de divisas no contexto da aquisição pela Petrobras dos direitos de exploração do Bloco 4 na República de Benim, na África. 

Como muito bem apontaram os impetrantes do Habeas Corpus julgado pela 2ª Turma, a tese que prevaleceu na condenação é a de que tanto a corrupção passiva como a lavagem, no caso, correspondem ao recebimento de valores na conta do trust fund Orion SP na Suíça, do qual, segundo o édito condenatório, o ex-presidente da Câmara dos Deputados “era instituidor, controlador e beneficiário”, ou seja, “pertenceria a EDUARDO CUNHA”. 

Acontece que, se a conta que recebeu os valores pertencia ao próprio Eduardo Cunha, como reiteradamente apontou a acusação, não nos parece que a solução alcançada pelo STF seja a mais adequada.

Primeiro porque a lavagem de dinheiro na modalidade ocultação, indicada nos títulos condenatórios, pressupõe que a vantagem indevida seja distanciada do crime e, portanto, de seu autor, no intuito de escamotear a sua ocorrência. Para Pierpaolo Bottini, a punição da lavagem exige o afastamento entre o produto e o crime. Por certo, não presta para este fim o depósito em conta de titularidade do próprio autor do crime antecedente. 

Em estudo organizado por Carla Veríssimo De Carli sobre a lavagem de dinheiro na modalidade ocultação, constata-se que, de fato, o depósito de valores ilícitos em conta própria do autor do crime antecedente, no caso corrupção passiva, é meio inidôneo para a configuração da lavagem, vale dizer, nessa hipótese, o autor não estaria ocultando a verdadeira propriedade desses valores. 

O depósito em conta própria constitui o meio mais imprestável de disfarce da propriedade dos valores. Aliás, ao contrário do que se busca com os atos de lavagem, o caminho apontado pela acusação no caso Eduardo Cunha faz justamente demonstrar quem é o real proprietário do montante. 

Quando muito, o depósito em conta de trust fund no exterior representa forma sub-reptícia de recebimento dos valores indevidos, o que, contudo, constitui mero exaurimento do crime de corrupção passiva na modalidade recebimento indireto, pela qual o ex-parlamentar foi condenado, tratando-se assim de simples post factum impunível. 

Até mesmo porque a lavagem de dinheiro, por pressupor a ocorrência de um crime antecedente, exige o exaurimento deste. Em se tratando de corrupção passiva, antes do efetivo recebimento da propina, é impossível que o funcionário público lave o dinheiro, do qual simplesmente não tem sequer disponibilidade.  

Como muito bem aponta Fábio Tofic, “é que não há lavagem de crime que ainda não se consumou ou, no caso da corrupção, não teve o seu exaurimento verificado. Ou melhor, propina só pode ser lavada depois que entra na esfera de disponibilidade do agente corrompido”. 

Apontando firmemente nessa direção, a ministra Rosa Weber, quando do fatídico julgamento da Ação Penal 470, asseverou que “o ato configurador da lavagem há de ser, a meu juízo, distinto e posterior à disponibilidade sobre o produto do crime antecedente”. 

No caso Eduardo Cunha, considerando verdadeiros os fatos trazidos na condenação, para fins do presente artigo, têm-se que tanto a corrupção passiva como a lavagem ocorreram com o recebimento de valores na conta do trust fund Orion SP. A situação revela, portanto, que os fatos foram simultâneos. Ora, se foram simultâneos, não houve um antecedente e um posterior. Acontece que sem fato antecedente, como visto, é impossível falar em lavagem de dinheiro.  

De forma mais didática: se a lavagem só é possível após o exaurimento da corrupção passiva, aquela é impossível de ocorrer simultaneamente a esta. Para Tofic, “seria até mesmo hipótese de crime impossível pela impropriedade do objeto. Vale dizer, é impossível lavar o produto de propina que ainda não ingressou na esfera de disponibilidade do agente público”.

E não se diga que a lavagem corresponde ao depósito em conta de trust fund no exterior. Isso porque é legítima e lícita a pretensão de qualquer cidadão em depositar valores na conta que julgar melhor. Acontece que o Brasil não é signatário da “Convenção de Haia sobre a Lei aplicável ao Trust e a seu reconhecimento”, de tal sorte que esta modalidade de constituição financeira não foi incorporada ao Direito brasileiro. Assim, a legítima pretensão de depósito de valores em um trust só é possível no exterior. Não se trata de escolher receber os valores fora do Brasil. Na verdade, essa é a única possibilidade para quem decide receber os valores numa conta de trust. 

Nesse compasso, tudo indica que não houve lavagem de dinheiro no caso Eduardo Cunha, bem como que a opção mais correta e mais respeitosa para com o entendimento tradicional e sólido, ao menos até então, do STF seria a absorção, face ao princípio da consunção, da lavagem pela corrupção passiva.

 

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