Por Mathaus Agacci -
Parece que nos dias atuais os criminalistas só falam em "lava jato". Sim, é verdade. Chega a ser maçante. Entretanto, também é verdade que na aludida operação houve imensuráveis prejuízos aos institutos jurídicos, que, em alguns casos, foram deturpados pelo poder público e utilizados em verazes perseguições de indivíduos processados, tornando-os inimigos da opinião pública em verdadeira — e menosprezável — espetacularização midiática do processo penal.
Faz-se importante, após tal declaração, afirmar que não critico o combate à criminalidade, o combate à corrupção, mas, sim, os meios pelos quais este combate é feito, uma vez que, se operarmos tecnicamente pela lógica de que “os fins justificam os meios”, colocamos em risco o Estado Democrático de Direito.
Não faz muito tempo que o termo lawfare ficou popular em nosso Direito Penal. Mas o que isso significa? Em uma tradução livre, seria “guerra jurídica”. Significa, entretanto, a utilização das leis ou recursos jurídicos, deturpando-os, para atingir determinada pessoa ou grupo de pessoas, eleito ou eleitos como inimigos públicos, geralmente com a finalidade de perseguição política.
A teoria do domínio do fato, criada pelo pai do finalismo, Hans Welzel, e desenvolvida principalmente em estudo monográfico por Claus Roxin, na Alemanha, em 1963, tem sido deturpada e utilizada pelo poder público, no bojo da operação "lava jato", para prática do lawfare.
De acordo com o citado Roxin, o elemento diferenciador entre autor e partícipe está no domínio da ação, sendo, pois, autor quem assume o protagonismo da empreitada criminosa, possuindo o domínio da conduta, seja ele executor ou não.
Partícipe, na dicção da teoria, é quem contribuiu para a prática da empreitada criminosa, embora não tenha poder de direção sobre a conduta delituosa.
De forma sintetizada, o controle — ou domínio — do fato pode se dar pelo domínio da ação (o agente pratica ele mesmo o verbo nuclear do tipo penal); domínio da vontade (o agente, embora não pratique diretamente o verbo nuclear do tipo penal, tem o controle da vontade de quem executa, onde, neste caso, o executor é tido como mero instrumento do delito. Trata-se da autoria mediata); e, por fim, o domínio funcional do fato (o agente desempenha função indispensável ao sucesso do delito, onde cada função é dividida entre os comparsas).
Deve perceber que, tratando-se de autoria mediata, há de ser ter a prova — e quando digo prova refiro-me àquela produzida sob o crivo do contraditório, nos termos do artigo 155 do Código de Processo Penal — de que o mandante possui consciência da empreitada criminosa, agindo ativamente na consecução do delito.
O que está ocorrendo, na prática, é a confusão — intencional, talvez —, pelo Poder Judiciário brasileiro, da teoria do domínio do fato com a teoria do domínio da organização, utilizando, de maneira deturpada, a teoria de Roxin como argumento de autoridade para embasar decisões típicas de lawfare.
A importante teoria do domínio do fato não se presta para responsabilizar determinada pessoa pela mera posição de destaque no interior de uma estrutura hierárquica, tal pensamento é ofensivo ao trabalho de Roxin. Além de ocupar certo cargo, tem que se provar que o acusado emitiu a ordem, quis o resultado.
Exemplo claríssimo da aplicação do lawfare, utilizando a teoria do domínio do fato indevidamente, é o caso da apelação criminal impetrada pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva no TRF-4, pelo caso do triplex em Guarujá, onde os desembargadores, nos votos, deturparam o conceito da teoria, visando justificar uma sentença condenatória carente de provas.
Para se ter noção da péssima aplicação da teoria do domínio do fato pelo Judiciário brasileiro, o próprio Claus Roxin, em entrevista, em 2012, para a Folha de S.Paulo, relatou:
Folha — É possível usar a teoria para fundamentar a condenação de um acusado supondo sua participação apenas pelo fato de sua posição hierárquica?
Roxin — Não, em absoluto. A pessoa que ocupa a posição no topo de uma organização tem também que ter comandado esse fato, emitido uma ordem. Isso seria um mau uso. (...) A posição hierárquica não fundamenta, sob nenhuma circunstância, o domínio do fato. O mero ter que saber não basta. Essa construção ["dever de saber"] é do Direito anglo-saxão e não a considero correta. (grifei)
Cada vez mais a jurisprudência pátria relativiza garantias constitucionais em prol da incompetência ministerial em se desincumbir do ônus de provar a autoria do acusado durante sumário da culpa. É absurdo. Algo odioso, que não podemos corroborar.
Ora, parece que ser processado criminalmente, sob os incansáveis holofotes midiáticos, com informações vazadas para mídia pelo próprio órgão acusador, gerando forte anseio social pela condenação, não basta para o Judiciário brasileiro, tem-se, ainda, que relativizar o dever do representante ministerial de provar a culpa do acusado, sob o crivo do contraditório, deturpando teorias e debitando a incompetência estatal na conta do acusado. É época de inversão de valores e conceitos.
O Judiciário brasileiro não deve, nunca, se curvar a pressões populares como forma de emitir provimentos jurisdicionais. O Judiciário brasileiro não deve, nunca, mormente em tempos de crise, preocupar-se com a imagem midiática da instituição. Alguns cidadãos que assim pensam devem expurgar de suas mentes tais delírios.
Já disse muito e continuo reafirmando, em minhas sustentações, que magistrado é escravo da lei e da Constituição, magistrado não é combatente da criminalidade ou símbolo nacional de combate à corrupção, magistrado tem o dever de aplicar o Direito ao caso concreto, motivando todos os seus provimentos jurisdicionais em letra expressa de lei, máxime em processo penal, curvando-se ao da legalidade.
Acontece que, atualmente, para prática de lawfare, tem-se distorcido a letra da lei para praticar arbitrariedades, objetivando, talvez, suprir anseios populistas e pressões midiáticas, o que prefiro não acreditar, porque, se assim for, atestar-se-ia a incompetência institucional.
Objetivando a demonstração prática do lawfare em nosso processo penal atual, cito alguns exemplos da tenebrosa prática no aludido processo do ex-presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva, a começar pelo espetacularização midiática em rede nacional da (i) condução coercitiva de Lula, para prestar depoimento, no dia 4 de março de 2016, ordem emitida pelo atual ministro da Justiça, Sergio Moro, sem qualquer previsão legal no ordenamento jurídico pátrio; (ii) apresentação em rede nacional, por Deltan Dallagnol, da denúncia contra o ex-presidente, utilizando, inclusive, apresentação de PowerPoint; (iii) o vazamento intencional pelo atual ministro da Justiça de interceptação telefônica entre Lula e a ex-presidente Dilma Rousseff; (iv) interceptação telefônica entre advogado e cliente, autorizada pelo atual ministro da Justiça, que, posteriormente, teve ordenada a destruição das gravações pelo TRF-4, além de inúmeros outros exemplo ínsitos na operação.
A instabilidade das instituições jurídicas nacionais nos dias atuais é um fato notório e inegável e, indubitavelmente, reflexo de decisões judiciais tomadas sem supedâneo legal, de maneira populista e cosmética para a ansiosa e depravada mídia brasileira.
Vivemos um momento sombrio, em que garantias são relativizadas — por pura incompetência estatal em cumprir o devido processo legal — em prol de uma cega busca pela exposição de delitos.
Existe, conforme demonstrado, grande perigo na utilização da teoria do domínio do fato, assim como de outros institutos jurídicos, de forma absolutamente deturpada, algo que nós, operadores do Direito, não podemos permitir, sob pena de ruir o que tanto lutamos para conquistar.
As coisas não vão bem na atual conjuntura do processo penal brasileiro e ouso dizer que, se o futuro da advocacia criminal seguir este lado obscurantista que estamos atualmente inseridos, temo preferir não conhecê-lo.