Por Víctor Gabriel Rodríguez -
Uma nova lei, chegando ao ordenamento jurídico, comumente obriga o Judiciário a soluções interpretativas. Com a lei de delação premiada não foi diferente, em especial porque introduzia um novo sistema de Justiça negociada, em quase nada adaptado à cultura latina e, como temos sempre insistido, aos demais princípios penais por aqui vigentes. A grande diferença, no caso, foi a velocidade com que nossa suprema corte se manifestou sobre temas angulares do instituto. Tratou-se de uma precipitação que, embora justificável, hoje clama por revisão.
A forma arrojada com a qual o STF decidiu questões relacionadas à delação encontra explicação muito plausível, em três motivos. As decisões mais relevantes tiveram origem na "lava jato", o que significa dizer que (i) eram catalisadas por uma demanda social por resposta imediata. Também era pela "lava jato" que essas demandas chegavam diretamente ao STF, o que é um segundo fator de atropelamento. Afinal, (ii) agir como instância originária de um processo dificulta a reflexão, e os ministros sabem disso: as razões das partes e os pronunciamentos judiciais anteriores, nas diversas etapas que normalmente antecedem uma decisão suprema, são argumentos seguros para se apoiar, exercitar a dialética e mesmo criar divergência. Sem esses antecedentes, o risco de erro aumenta.
De outro lado, (iii) a novidade da aplicação do sistema de delação sequer deu fôlego à doutrina para que criasse base mais sólida na discussão do tema. Apesar de os demais Poderes da República hoje enunciarem seu desprezo à Filosofia, os ministros do Judiciário conhecem a importância de que fundamentos mais abstratos — não criados para a casuística — norteiem suas decisões. Mas esses estudos requerem tempo e, sobre o tema específico, ainda estão sendo escritos.
Portanto, o tempo exíguo, a atuação como instância originária e a falta de material doutrinário são importantes pontos para sempre ter em conta que a jurisprudência da suprema corte em matéria de delação premiada já se pode alterar, sem qualquer prejuízo à segurança jurídica.
Especialmente me refiro à necessidade de revisão dos julgamentos que sedimentaram a natureza da delação premiada como “negócio jurídico personalíssimo”, porque suas consequências foram ofensivas aos direitos individuais, mesmo de modo difuso. Um julgado específico, com o qual não temos qualquer envolvimento senão o de reconhecê-lo como paradigma maior do tema, é agora objeto de nossa análise.
Embora a jurisprudência já indicasse essa direção, foi o HC 127.483 que finalizou a cizânia. Suas longas 154 páginas serviram como principal fundamento para que a delação premiada se consolidasse, para o Judiciário, como objeto do Direito Civil, deixando de lado sua natureza de Direito Público e, principalmente, sua essência penal, com tudo o que esse entendimento acarreta. Transformar um instituto que interfere na obrigatoriedade da pena em matéria de Direito Privado foi intenção mais que confessa do acórdão.
Em um paralelo doutrinário bastante inovador — algo inusual para o STF —, o ministro relator colhe de um livro único os fundamentos para moldar a delação ao formato do Direito Privado. Plano da validade, plano da eficácia e plano da existência, no tripé utilizado pelo professor Junqueira de Azevedo para sua teoria do negócio jurídico, são trazidos ao texto, abusando da obra de um autor que, até onde alcanço, jamais escreveu sequer sobre processo. Tudo para, progressivamente, distanciar-se da lei penal.
A consequência da concepção foi imediata e está no próprio acórdão. Porque se tratava de um pedido de tutela de delatados na operação "lava jato", que protestavam pelo reconhecimento de ilegalidade de um acordo de colaboração que os prejudicava. No caso, na delação promovida por Alberto Youssef.
Se bem entendi o que ali se decidia, os delatados alegavam que fora concedido ao delator benefício que a lei não permite. O Ministério Público teria preservado os bens do colaborador, para que este, delatando, mantivesse um confortável futuro financeiro, enquanto a lei de crime organizado apenas autoriza negociar com a pena e seu regime, jamais com os efeitos obrigatórios da condenação. Ao transigir com a obrigatoriedade de ressarcir o dano — agora são palavras minhas —, o Ministério Público teria negociado com moeda que não lhe pertencia.
Daí se entende o motivo pelo qual o acórdão supremo perorava nas longas considerações sobre o caráter privatista e personalíssimo da delação. A decisão almejava alcançar a assertiva de que ninguém, a não ser as partes contratantes, poderiam reclamar ao Judiciário sobre a ilegalidade do acordo de delação. Em suas exatas palavras, “negar-se ao delatado o direito de impugnar o acordo de colaboração não implica desproteção a seus interesses”.
Para a velocidade dos fatos atuais, essa decisão, de 2015, já se pode considerar antiga, e há tendência de que se altere. Se observamos os acórdãos atuais sobre o tema, já se percebe que parte do STF nota o maior problema da decisão que eles mesmos tomaram: o Judiciário fica diminuído perante essa intangibilidade do “negócio jurídico personalíssimo” e, portanto, afastado da constitucional tutela de graves lesões a direitos de terceiros. Se essa timidez para intervenção segue existente, será criado toda uma casta de indivíduos “semijurisdicionados” em matéria penal.
Não é vergonha alguma recolocar o tema em pauta e reconhecer que aquele momento inicial de empolgação com os efeitos da Justiça negociada gerou desequilíbrios, que se podem ajustar revisando a interpretação da natureza do instituto. Voltar atrás nesse posicionamento não será menos que uma grande nota de altivez da suprema corte, a demonstrar sua aptidão para responder a momentos emergenciais, mas também a estabilizar o sistema.