Por Rafael Junior Soares e Luiz Antonio Borri -
A colaboração premiada representa atualmente importante instituto na persecução penal envolvendo organizações criminosas e a criminalidade complexa. Embora o instrumento tenha sido introduzido no ordenamento jurídico na década de 1990, com essência eminentemente de direito material, sua ampla utilização ocorreu somente após o advento da Lei 12.850/13, em função da definição do procedimento a ser observado pelas autoridades públicas. A alteração é relevante porque, até então, ficava sob a responsabilidade das partes delimitar a forma a ser seguida no desenvolvimento dos acordos, o que gerava muitas dúvidas quanto à sua realização, com altos riscos de eventuais nulidades pelos tribunais.
Apesar da previsão legal detalhada trazida na nova legislação (artigos 4º a 7º), sobreveio discussão acerca da classificação jurídica da colaboração premiada, vez que poderia ser entendida como meio de prova ou meio de obtenção de prova.
Dessa forma, o Supremo Tribunal Federal, no âmbito do Habeas Corpus 127.483/PR, definiu que se tratava de meio de obtenção de prova, conforme importante voto proferido pelo ministro Dias Toffoli, “a colaboração premiada, como meio de obtenção de prova, destina-se à “aquisição de entes (coisas materiais, traços [no sentido de vestígios ou indícios] ou declarações) dotados de capacidade probatória”, razão por que não constitui meio de prova propriamente dito”.
O estabelecimento de parâmetros pelos tribunais superiores é fenômeno interessante, vez que, como vários investigados com prerrogativa de foro foram processados em ações penais que possuíam colaborações premiadas, tal fato acelerou o exame das colaborações premiadas, sem que houvesse o aprofundamento do tema pelas instâncias inferiores.
A conclusão acima é importante porque estabelece a colaboração premiada como instrumento para se alcançar fontes ou elementos de prova, ou seja, elementos externos à delação premiada como forma de se corroborar o material trazido pelo delator. Como ensina Gustavo Badaró, “exigindo que o conteúdo da colaboração processual seja confirmado por outros elementos de prova. Logo, a presença e o potencial corroborativo desse outro elemento probatório é conditio sine qua non para o emprego da delação premiada para fins condenatórios”.
O entendimento supra é inclusive reforçado pelo artigo 4º, parágrafo 16º, da Lei 12.850/13, que veda a condenação do agente baseada exclusivamente em delações premiadas, inserindo expressa restrição ao livre convencimento motivado, ao atribuir valor distinto à colaboração premiada por força de lei, se comparado com as demais provas admitidas.
Neste contexto, dirimido o valor probatório da delação premiada para fins de proferimento de sentença, surge outra questão relevante a ser enfrentada, porque não se consignou na lei se a colaboração premiada, por si só, seria suficiente para dar início à ação penal. De forma muito objetiva, se as delações representariam justa causa para se inaugurar o processo criminal.
É claro que o conceito de justa causa é extremamente polêmico na estrutura do nosso sistema, mas, segundo o magistério da ministra Maria Thereza Rocha de Assis Moura, a inauguração do processo criminal “não suporta que a acusação se faça sem que encontre lastro na prova colhida no inquérito policial ou nas peças de informação”. A terminologia justa causa não é imune a divergências no âmbito doutrinário e jurisprudencial, mas inexistem dúvidas de que a delação, sem que haja respaldo probatório de elementos de corroboração, é incapaz de legitimar o início da ação penal, notadamente diante da existência de penas processuais.
Como sustenta Vinicius Vasconcellos, as declarações do colaborar sempre devem ser confirmadas por elementos externos, vedando-se a decretação de medidas cautelares ou o próprio recebimento da peça acusatória alicerçado tão somente nas declarações do delator. Ademais, consoante Walter Barbosa Bittar, as declarações do colaborador constituem prova meramente indiciária, no entanto, para isso, devem ser confrontadas com outros elementos encartados à investigação ou instrução processual, de modo que “os indícios devem concordar entre si, não sendo a versão isolada do delator mais do que uma hipótese isolada que nada configura, ficando completamente afastada a ideia de justa causa”.
Da mesma forma acentua Andrey Borges de Mendonça que “em princípio não deve o membro do Ministério Público oferecer denúncia com base apenas nas palavras de colaborar, sem elementos de corroboração”, até porque, se a investigação não logrou angariar elementos de corroboração, é pouco provável que a ação penal suprirá a carência de elementos probatórios.
Isso não poderia ser diferente até mesmo pela questão da interpretação do dispositivo existente na Lei 12.850/13 (artigo 4º, parágrafo 16º, da Lei 12.850/13). Ou seja, se a sentença condenatória deve se respaldada em elementos de corroboração alheios à própria colaboração premiada, não se pode autorizar o início do processo criminal com base em tal elemento, mormente porque se trata de ação penal fadada ao insucesso.
Por outro lado, especialmente no Supremo Tribunal Federal, ao se examinar situações de admissibilidade da ação penal, iniciou-se o entendimento de que as delações não seriam suficientes para inaugurar o processo criminal. É interessante o posicionamento, vez que a corte suprema foi além, afirmando inclusive que elementos decorrentes do próprio colaborador também seriam insuficientes, por exemplo, planilhas, anotações e contabilidade particular. Nas palavras do ministro Dias Toffoli, “é licito concluir que essas declarações, por si sós, não autorizam a formulação de um juízo de probabilidade de condenação e, por via de consequência, não permitem um juízo positivo de admissibilidade da acusação”, isto porque padecem “da mesma presunção relativa de falta de fidedignidade”.
Da mesma forma, o Superior Tribunal de Justiça entendeu pelo trancamento de ações penais de processos criminais em que a peça acusatória estava lastreada apenas em declarações de colaboradores. De acordo com o ministro Rogério Schietti, “evidenciado que a denúncia apoia-se exclusivamente em colaboração premiada, é o caso de trancar o processo”.
O posicionamento é importante, tendo em vista que, além de correto, reforça a concepção de que se trata de meio de obtenção de prova, com o claro propósito de se buscar elementos ou fontes de prova prévios à própria instauração da ação penal. À luz do artigo 4º, parágrafo 16, da Lei 12.850/13, se as declarações prestadas por colaborador premiado não podem subsidiar decreto condenatório, mostra-se possível a antecipação dessa análise para a fase do recebimento da denúncia, com a conclusão de que deve se dar a imediata rejeição da exordial acusatória.
Portanto, configuram-se como temerárias ações penais baseadas apenas nas palavras de colaboradores premiados, os quais possuem diversos motivos para sustentar versões fantasiosas e de acordo com a tese acusatória, devendo ser rejeitadas em face da inexistência de outros elementos que sirvam como corroboração da tese sustentada pelo delator, na linha da jurisprudência que se firma nos tribunais brasileiros.