O QUE O CASO QUEIROZ NOS ENSINA SOBRE HONORÁRIOS MACULADOS

Por Gabriel Andrade de Santana e João Daniel Jacobina Brandão de Carvalho -  

É recorrente a divulgação de posicionamentos doutrinários direcionados à potencial criminalização da advocacia. Ao que parece, há uma tendência em incutir na opinião pública o dever de o Estado responsabilizar penalmente aquele que, no exercício da sua atividade advocatícia, recebe como pagamento valores que imputam ser proveniente de alguma atividade criminosa praticada pelo cliente.  

Sem maiores delongas acerca da temática dos honorários maculados, o que chamou atenção recentemente foi o episódio no qual o Hospital Albert Einstein, em São Paulo, teria recebido R$ 64,6 mil, em espécie, pelos serviços hospitalares custeados por Fabrício Queiroz, então paciente, além de outros pagamentos em dinheiro à equipe médica.  

Em nota à imprensa, o Einstein informou que houve a devida comunicação à Receita Federal e que “o dinheiro em espécie é uma das formas de pagamento aceitas”, não cabendo “a um hospital fazer julgamentos de valor sobre pessoas que buscam seu cuidado e, sim, cumprir a sua missão e obrigações legais”. 

A supracitada publicação promovida pelo respeitado hospital derivou do fato público e notório de que o paciente Fabrício Queiroz é investigado pelo Ministério Público do Rio de Janeiro, pela suposta prática dos crimes de peculato, lavagem de dinheiro e organização criminosa, o que exigiu uma resposta à sociedade.  

É dizer, apesar das fortes suspeitas da existência dos delitos mencionados e sua conhecida autoria, o estabelecimento hospitalar ainda assim recebeu como pagamento pelos serviços prestados valores elevados em espécie, porque entendeu que esse comportamento é compatível com o ordenamento jurídico. 

Observa-se, a nossa ótica, que essa situação se assemelha à recorrente questão dos honorários maculados, haja vista que, em ambas, existe a possibilidade de que os valores recebidos pelos serviços tenham como origem alguma atividade criminosa. 

Daí emerge o seguinte questionamento: sob a lógica da criminalização do recebimento de honorários advocatícios maculados, a conduta do hospital se adequaria aos delitos de lavagem de dinheiro ou receptação?  

Entendemos que em nenhuma das hipóteses — e em hipótese alguma — resta configurado as infrações penais em testilha.  

Com todo o respeito àqueles que pensam diferente, não é dever do advogado ou, neste caso, do hospital verificar a origem do dinheiro destinado ao pagamento de seus serviços. Até porque pessoas investigadas ou acusadas por crimes financeiros geralmente possuem atividade lícita, culminando na mescla do patrimônio que é utilizado cotidianamente. No entanto, ninguém questiona com o mesmo vigor quando esse capital misto é empregado para pagamento de outros prestadores de serviço.  

De certa forma, essa é uma visão preconceituosa acerca do direito de defesa e do papel do advogado, que, por essência, exerce a posição contramajoritária ao situar-se ao lado do increpado, enquanto a sociedade eleva o tom a despeito da sua não culpabilidade.  

Destarte, desde que sua atividade seja limitada ao exercício profissional contratado e cumprida as obrigações fiscais, não há ilegalidade no recebimento de valores em espécie, por transferência bancária ou outro meio permitido, tão somente pela probabilidade de este ser produto do delito perpetrado pelo cliente. Ainda que exista desconfiança acerca da procedência lícita dos valores a serem auferidos, se inexistir má fé do advogado ou hospital em contribuir com o encobrimento desse numerário, a conduta é atípica. Portanto, a pretensão acusatória, de logo, encontra óbice no campo da tipicidade objetiva, eis que a cobrança de honorários advocatícios ou médicos constitui atividade neutra. É preciso entender que algumas condutas são socialmente adequadas, não obstante a dúvida acerca da sua real licitude. 

Entrementes, no atual movimento de expansão do Direito Penal, é assunto recorrente a questão dos honorários maculados, tendo, inclusive, avançado na análise subjetiva da conduta, a exemplo da representação de um procurador da República em desfavor de advogado que teria recebido honorários de cliente investigado por crime de lavagem de dinheiro e outros. Para tanto, a utilização desvirtuada de teorias alienígenas sob a égide do discurso do combate à impunidade é cada vez mais presente nos julgamentos pátrios.  

Nesta ambiência é que se questiona a forma como vem sendo aplicada a denominada teoria da cegueira deliberada. Em substância, segundo essa doutrina, não é necessário provar que o agente tenha conhecimento do fato (dolo direto), desde que haja uma probabilidade de que ele, propositalmente, se fez ignorante à situação. É o exemplo do hospital que recebeu vultosa quantia em espécie, mas não se preocupou em verificar a sua procedência lícita. Daí se discute configurado (ou não) o crime de lavagem de dinheiro em sua modalidade dolosa (dolo eventual), porquanto, sabidamente, a referida conduta, quando culposa, é atípica por ausência de previsão legal. Há quem entenda, ainda, pela adequação ao delito de receptação culposa.  

Dada a complexidade do tema, é relevante a este artigo aduzir que a referida teoria da forma desenhada para o Direito norte-americano — como uma necessidade prática em ocupar o hiato existente entre o conhecimento e a imprudência — tem justificado em terra brasilis o cabimento da lavagem de dinheiro, bastando, para tanto, que haja evidências do delito cometido pelo cliente e esta informação esteja ao alcance do agente, sem que ele precise empregar meios de grande complexidade ou sua desinformação se deva a mera preguiça, incompetência ou ausência de curiosidade.  

Ora, se adequarmos essas premissas ao caso concreto, é forçoso concluir que a conduta do Hospital Albert Einsten se amolda(ria) aos crimes de branqueamento de capitais ou receptação, pois o que não faltam são informações imputando a autoria de crimes ao paciente Fabrício Queiroz, corroboradas, a propósito, mediante uma elevadíssima movimentação financeira. 

Por conta disso, Ragués i Vallés ensina que os aspectos observados pelos doutrinadores americanos devem ser tomados apenas como ponto de partida para uma análise acerca do cabimento (ou não) da teoria da cegueira deliberada, porquanto insuficientes ao Direito continental. Dito isso, adverte ser primordial compreender que a referida doutrina somente auxiliará na delimitação do elemento subjetivo nos casos de alegado desconhecimento, quando restar satisfatoriamente demonstrado que o sujeito executou um comportamento objetivamente típico. O que, saliente-se, não ocorre nas situações de atividades neutras, pois, segundo Perez Manzano, a cobrança de honorários segundo práticas habituais jamais poderá acarretar a responsabilidade penal por lavagem de dinheiro. 

Em que pese, a recepção acrítica e descontextualizada da teoria da cegueira deliberada em nosso ordenamento pátrio tem lastreado entendimentos em prol da criminalização de condutas, a exemplo do Hospital Albert Einsten e dos honorários maculados, a despeito da análise de imputação objetiva.  

No entanto, a toda evidência, é necessário chamar atenção quantas vezes for preciso ao que Jakobs alertou há tempos: “nem tudo é assunto de todos”. Ao revés, o progresso da repressão punitiva em relação a quem presta o serviço lícito, regular e recebe a sua justa contrapartida vai avançar inclusive em situações na qual o analista Ben Sobel (Billy Cristal), no filme A Máfia no Divã, deva ser acusado de lavagem de dinheiro, já que tinha o conhecimento das atividades criminosas lideradas por seu cliente Paul Vitti (Robert Del Niro) e ainda sim prestou e foi remunerado por seus cuidados psiquiátricos.  

Enquanto há tempo, por todos da classe, tomamos então emprestado a nota emitida pelo Hospital Albert Einsten para advertir, semelhantemente, que “não é dever do advogado fazer julgamento de valor sobre as pessoas que buscam seu cuidado, e, sim, cumprir a sua missão e obrigações legais”.

 

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