PACOTE “ANTICRIME” PERDE OPORTUNIDADE DE CODIFICAR E SISTEMATIZAR DELAÇÃO PREMIADA

Por Víctor Gabriel Rodríguez -  

Sempre parecerão poucos os comentários lançados à Lei 13.964/2019, dado o número de alterações que ela inaugura no ordenamento penal. Muitas linhas ainda serão necessárias para compreender as mudanças e seus efeitos práticos, e aqui redigimos algumas delas, no recorte específico da delação premiada.

Sustentaremos aqui, em síntese, que essa lei do pacote "anticrime", embora apresente avanços notórios, perdeu a oportunidade de codificar e sistematizar a delação, mantendo contradições que, em algum momento, demandarão intensos esforços interpretativos. Tentamos antecipar alguns deles.

  1. Considerações iniciais: a Lei 13.964/2019, a velocidade e as polarizações Os atuais tempos de polarização política, infelizmente, demandam sempre um disclaimer de tentativa de neutralidade ideológica quando se trata de analisar o Direito Penal vigente. Tentando atingir essa neutralidade, façamos assim nossa introdução: qualquer tipo de pacote "anticrime” soa mal ao penalista, mas isso não implica afirmar que nosso ordenamento possa dispensar reformas. Se vista sob a ótica de uma tentativa de modernização, a nova lei, firmada pelo presidente Bolsonaro e pelo ministro Sergio Moro, é iniciativa louvável. Mas o açodamento na mudança, de razão apenas política, implicou erros que há que se apontar. 

A locução pacote "anticrime" é indigesta a qualquer penalista porque soa como intencional propaganda populista. Atende, sim, ao anseio da população votante, que clama, em coro com aqueles apresentadores dos programas policialescos de TV, por um “Código Penal mais severo”, que "ponha bandidos na cadeia", porque "a polícia prende, e o Judiciário solta" etc. As vantagens de uma reforma penal talvez não sejam superadas pelas desvantagens de se adotar como cavalo de batalha de um novo governo quando se sabe — com o perdão da lição básica de criminologia — que a criminalidade mesmo só diminui com reformas sociais. Falando em nome dos penalistas em geral, o gosto amargo não vem da lei em si, mas do modo como é vendida a futuros eleitores; falando talvez como remordimento pessoal, é triste que o debate para a lei tenha sido quase inexistente para a comunidade jurídica, que poderia antecipar muitas imperfeições. Mas o momento é de tratar com a lei posta.

Problema é que, mesmo para se tratar com a lei positivada, há que se escapar de um de um duplo viés de polarização, que vale enunciar:

(i) Os tempos políticos fizeram com que aqueles penalistas que sempre clamaram por um Direito Penal que atingisse também a classe dominante mudassem radicalmente de opinião, a partir do momento em que os dominantes atingidos, ao contrário do que se esperava, não foram seus adversários políticos, senão seus correligionários. As manobras, que culminaram na mudança da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal em relação à prisão após decisão colegiada, reconheçamos, remarcaram a fronteira, que começava a esfumar-se, entre Direito Penal de classe alta e de classe baixa. Afinal, assaltantes de rua e pequenos narcotraficantes não terão direito a esperar a palavra da corte suprema para se recolherem ao cárcere. Diga-se aos mais ativistas que um estuprador ou um homicida devem cumprir pena somente quando o STF analise seu último recurso extraordinário, e logo se notará como as opiniões garantistas se revertem rapidamente, aos ventos a ideologia. Reconheçamos, apenas;

(ii) Outra polarização, principalmente no que tange à delação premiada, concerne ao papel dos operadores do Direito. As manifestações sobre delação, com todo respeito, seguem a cartilha das posições forenses, salvas raras exceções: os advogados criticando qualquer medida que possa levar seus poderosos clientes de volta ao presídio, enquanto os promotores alabam a justiça negociada como verdadeira panaceia de efetividade do Direito Penal. Poucos são os membros do parquet que não se alinharam a uma corrente interpretativa pela qual a lei de delação lhes concederia o direito de negociar, julgar e aplicar pena, relegando, o quanto possível, ao Judiciário o burocrático papel de carimbar um contrato entre partes. E isso a nova lei almejou consertar. 

Tentemos uma visão exterior a essas bifurcações, no que nos seja possível e dentro de um concreto objeto de análise: a delação.

  1. A oportunidade perdida 

O maior problema da Lei 13.964/19, no que concerne à delação premiada, foi sua precipitação em solucionar dissonâncias relativas à natureza do instituto, que, como se dirá, restou inócua. Para usar termos penais, o legislador pecou pelo excesso comissivo ao se manifestar na matéria processual, enquanto renunciou a seu dever de manifestação — ou seja, foi omisso — na codificação penal substantiva. 

O novo diploma anticrime inseriu artigo na Lei 12.850/2013 para definir a natureza jurídica do acordo de delação premiada, dispondo agora que “o acordo de colaboração premiada é negócio jurídico processual e meio de obtenção de prova, que pressupõe utilidade e interesse públicos”. Com essa precipitação, o legislador acabou por acatar os exatos termos de uma orientação interna do Ministério Público Federal (Orientação Conjunta 01/2018), ao mesmo tempo em que concede status legal à, em nossa opinião, tão porosa concepção do STF sobre o caráter privatista do acordo de delação.

Porém, mesmo que o legislador concordasse com essa orientação jurisprudencial, deveria admitir que não é papel da norma definir a natureza do acordo. Talvez o novel legislador não tenha notado que, por uma razão bastante nobre, a lei não costuma, ao menos no Direito Penal, positivar definições. Ela deve descrever o fenômeno, ditar suas regras, para que o intérprete o conceitue, sujeito a críticas e alterações dialéticas. Como ilustração, cabe dizer que seria simples ao legislador, de tendência muito autoritária, conceituar no Código Penal o que seria o “dolo”, o que seria “culpabilidade” ou até mesmo, didaticamente, quais são os elementos do crime. Evitaria a princípio muita cizânia doutrinária e jurisprudencial, mas depois desacreditaria a própria lei, quando os intérpretes comprovassem disparidade entre a definição e a realidade do instituto.

A definição do novo artigo 3-A da Lei 12.850/13 não desfez contradição estrutural sobre acordo de delação premiada, que há tempo temos denunciado. A delação é um instituto de natureza penal material, porque implica diminuição de pena ou extinção da punibilidade. O acordo é mera consagração de um direito que o réu adquire a partir de um comportamento pós-delitivo, que apenas a lei material pode autorizar, pois implica a redução da pena a patamar inferior ao mínimo cominado. Essa é a estrutura de nosso ordenamento, como a de todos as de inspiração latino-germânica.

Essa lição já deveria haver sido aprendida desde a Lei 9.099/95, cujos autores, também de inspiração processualista pura, clamaram para as “medidas despenalizadoras” ali inauguradas o título de lei adjetiva. A autoproclamação tomou um rápido revés da corte suprema, a qual não demorou em alertar que qualquer elemento que diminua a pena é de natureza material, seja qual for o predicativo que a lei lhe queira atribuir. Dizer que a delação premiada é um acordo processual que simplesmente causa “efeitos na pena” é algo análogo, com o perdão da coloquialidade, a afirmar que a cauda é quem abana o cachorro. Adjetivo e substantivo, corpo e apêndice, guardam uma relação ontológica de hierarquia, que as palavras não alteram.

Uma reforma jurídica dessa dimensão deveria ter aproveitado o men at work, a mudança de todo o sistema, para alterar, no que tange à delação, o Código Penal (como fez a Argentina), e a legislação processual (como se fez na Colômbia). Afinal, o mais eficaz fator de coesão legislativa é a sistemática do código, não o esforço conceitual em leis agregadas. Apenas para dar um exemplo, de que serve zelar tanto, nesta reforma, para aperfeiçoar o regime de progressão de penas, detalhando frações de cumprimento tão inusuais ao Direito Penal, se um mero acordo processual pode baixar a pena em absolutos 100 por cento? É simplesmente um arquétipo da falta de sistematização, que um maior diálogo técnico, ainda que atrasasse a publicação da Reforma, conseguiria evitar. 

  1. O que a lei “pressupõe”. 

Sobre os efeitos da mudança — há muitos — reduzimos a apenas dois, que unimos por um viés linguístico. O vocábulo “pressupor”. 

Esse verbo jamais apareceu no Código Penal, sequer no Código de Processo Penal (aparece uma vez no particípio, em sentido nominal e específico, de “pressuposto processual” e, no Código Penal, como “crime pressuposto” de outro, o que é muito distinto) ou sequer na redação original da Lei 12.850/2013. Nesta reforma penal, porém, insere-se o até então inédito verbo por duas vezes. Em ambas, de modo muito emblemático, porém, ao leitor mais atento, recheado de significado. É o que se expõe a seguir.

  1. A primeira: pressuposição de interesse público 

A lei nova define que o acordo de colaboração premiada “pressupõe utilidade e interesse públicos”. É notório que o legislador atual advoga pelas vantagens da colaboração, o que em si não é um defeito, mas dizer que dela se pode “pressupor” utilidade pública parece exagerado. A fórmula enunciativa inaugurada pelo novel legislador impõe sua visão subjetiva de que a colaboração é um bem que se faz à sociedade, tangenciando a presunção de interesse público em qualquer transação.

O legislador perdeu a oportunidade de, em lugar de pressupor, exigir que o acordo de colaboração se paute pelo interesse público (para isso está o verbo “dever”), cabendo ao magistrado zelar por essa condição. Se o acordo já chega ao magistrado com a pressuposição de interesse público, pouco lhe sobra para analisar. E o legislador, claro, sabe bem disso.

  1. A segunda: pressuposição de renúncia ao crime 

A segunda pressuposição é ainda mais sintomática. Porque o novel legislador nos diz que “o acordo de colaboração premiada pressupõe que o colaborador cesse o envolvimento em conduta ilícita relacionada ao objeto da colaboração, sob pena de rescisão.” 

Novamente, a enunciação trai o instituto para enredar-se diretamente em outra crítica que sempre lançamos. A falsa ideia em que repousa a delação premiada, de que o delator é um arrependido, quem, portanto, só por delatar já está convicto de abandonar a vida criminosa. Assim é que se pressupõe que ele tenha renunciado a sua contínua atividade de delito, no momento que se transforma em um colaborador.

Trata-se da abordagem romântica do instituto, que evita reconhecer o utilitarismo na traição do delator, sempre insinuando que este é um novo converso ao bem. Sobre o tema, já dissertamos bastante, mas aqui há que focar na lei: o acordo de delação deveria novamente exigir (em lugar de pressupor) o abandono da atividade delitiva e detalhar como e quando este será aferido.

Essa questão nos conduz, novamente, a problemas práticos no atrito entre Direito Processual e Direito Penal. Veja-se, o efeito (não a “pena”) de não haver abandonado a atividade criminal é a de rescisão do acordo, mas esse não abandono pode acarretar nova questão não solucionada pela lei: o que ocorrerá caso se venha a descobrir que o delator não renunciou à atividade criminosa (ou que voltou a ela, o que é uma mera questão de hermenêutica cronológica), quando a tal delator já houver sido aplicada pena diminuída ou perdão judicial?

Nossa pergunta não apenas desvela a falta de técnica enunciativa, pois a lei fala em “sob pena” de rescisão, o que é uma infeliz coloquialidade, por não se tratar de pena em sentido estrito, mas de uma “cláusula penal” de um contrato semi-privado. Numa lei criminal, tal acepção é bastante imprecisa.

O mais preocupante, em nosso questionamento, é saber o momento em que se termina o “acordo” e se celebra sua final recompensa, a pena inferior ao mínimo legal ou o perdão judicial. Nesta última figura, o perdão, é que a lei adjetiva parece apoiar-se em instituto de direito material (a extinção da punibilidade, artigo 107, IX, do Código Penal), mas é justamente aí que está o percalço: pela lei penal, o juiz não pode “desperdoar”. O “desperdão”, claro, não se inscreve sequer no vernáculo, mas repousa por detrás do novo artigo analisado: a rescisão de um acordo que já se aperfeiçoara na fixação da pena seria um imaginativo ato de reversão, a ressurreição da punibilidade declarada extinta, vedada em termos materiais.

Um aclaramento no Código Penal, aproveitando a natureza da reforma, acalmaria dúvidas como essa, que não estão isoladas no texto da Lei 13.964/2019.

  1. Conclusão 

A lei, sim, tem a vantagem de tentar modernizar os institutos penais, mas peca em sua origem, ao ser vendida como fim da criminalidade, e por sua pressa, para gerar efeitos ainda durante a gestão que a aprovou. São questões políticas. Tecnicamente, esse atropelamento trouxe imprecisões, com efeito prático evidente. Não tenho qualquer dúvida de que os descompassos aqui apontados, que se referem a apenas um recorte do tema da delação, serão levados à decisão do Judiciário, tão logo se entenda que violem algum direito individual, especialmente de algum réu dotado de condições econômicas para alçar seu pleito à corte suprema. 

Uma reforma sistêmica dos códigos e leis extravagantes, mesmo carregado do viés de louvor à justiça negociada, poderia evitá-los. Não havendo sido essa a opção, voltaremos a comentar outras dúvidas sobre a aplicação dessas leis reformadas.

 

Comments are closed.