Por Antonio Sérgio Altieri de Moraes Pitombo -
O tipo penal de cartel merece uma análise atenta do profissional do Direito, pois as alterações feitas pelo legislador em nada ajudam à melhor compreensão e aplicação da lei (artigo 4º da Lei 8.137/90, alterado pela Lei 12.859/11).
De plano, há de se observar — não obstante as críticas contemporâneas à ideia de bem jurídico — a utilidade de se encontrarem na Constituição da República os valores jurídicos que devem nortear a interpretação deste tipo legal. Na hipótese, o artigo 170 da Lei Maior contém importante lista do que se deve conhecer e valorar para o juízo da tipicidade.
Na sequência, é preciso dissecar os dois incisos para perceber que se tratam de condutas um tanto diferentes (a primeira, de natureza material, a segunda, formal), sendo certo que o inciso II do artigo 4º da Lei 8.137/09, por ser ato anterior ao praticado no inciso I do mesmo artigo, deveria tê-lo precedido na estrutura do tipo, com vistas à correta visão do iter criminis.
Ora, antes os indivíduos, vinculados a pessoas jurídicas (sócios, administradores, entre outros), se unem para cartelizar e, depois, abusam do poder econômico, o qual pode se mostrar oriundo do ajuste, ou por este ajuste pode ter sido potencializado. Logo, há a necessidade de se perquirir sobre a formação e manifestação de vontade nas empresas para se compreender a causalidade do acordo ilícito (artigo 13 do Código Penal) e responsabilidade das pessoas físicas (artigo 29 do Código Penal), a qual não pode vir a ser produto de generalização a contar de mera leitura dos documentos societários.
No âmbito do Direito Penal, preponderam a realidade e a ocorrência material de comportamentos proibidos de tais indivíduos, para o reconhecimento do crime. Não se pode abstrair do real sob a desculpa de se tratar de infração penal perpetrada no âmbito societário. E os fins específicos, detalhados no inciso II do artigo 4º da Lei 8.137/09, pertinem ao elemento subjetivo do tipo das pessoas físicas que se uniram com o objetivo de: (i) fixar preços ou quantidades vendidas ou produzidas; (ii) controlar o mercado de forma regionalizada, mediante empresa ou grupo de empresas; ou (iii) controlar, em detrimento da concorrência, a rede de distribuição e fornecedores.
Ora, se o abuso do poder econômico depende do ajuste ou acordo de empresas, a pesquisa da verdade inicia-se pelo entendimento quanto à união de pessoas físicas que se juntaram para perpetrar o crime. Depois investiga-se a real existência do poder econômico sobre o mercado, como se manifestou e quais consequências gerou à ordem econômica. Também, neste ponto, a causalidade não se presume. Ação e resultado, ou atividade e resultado, hão de ser reconhecidos, e o respectivo liame entre ambos. Combinam-se, ainda, os estudos econômicos quanto aos comportamentos do cartel e quanto aos efeitos da restrição à concorrência (e do domínio do mercado), com a análise jurídico-penal do nexo de causalidade (teoria da conditio sine qua non) (artigo 13 do Código Penal).
O exame do comportamento do cartel depende, assim, de se verificar se o grupo usa do poder econômico em contradição ao fim econômico (artigo 170 da Constituição) ou social (artigo 170, III, da Constituição) e em contrariedade ao Direito. Em simples palavras, se esta união de empresas usa mal do poder que detém num determinado mercado em menoscabo à ordem econômica (artigo 170 da Constituição) e, de forma ilícita, sob a perspectiva de outros ramos jurídicos (Direito Administrativo, v.g.).
Todavia, a tipicidade penal exige mais do que esse juízo quanto à ilicitude do fato, pois o pretendido abuso precisa ocasionar o domínio do mercado e a eliminação, parcial ou total, da concorrência (artigo 4º, I, da Lei 8.137/90 com correspondência com o artigo 36, parágrafo segundo, da Lei 12.529/11). Exsurgem elementos do tipo o poder econômico, o mercado e a concorrência, cuja descrição se mostra essencial à acusação (artigo 41 do Código Penal). Daí se aquilata a complexidade dessa imputação, quando ausente base factual, alicerçada em conhecimento quanto ao funcionamento da economia, de um determinado momento e lugar. Como bem diz Pontes de Miranda, “a aparência pode ser cartélica, sem existir, em verdade, cartel, ou ter-se concluído cartel que não funcione como tal, ou não tenha o êxito específico” (Tratado de Direito Privado. São Paulo: RT. 2012, v. LI, p. 290).
A hegemonia do grupo de empresas no mercado em exame deve ser reconhecida em fatos econômicos concretos, pois a eventual punição consoante o artigo 4º, inciso I, encontra-se atrelada à averiguação da concentração e dos malefícios à livre concorrência. A ação típica de cartelizar acarreta, portanto, resultado sensível, o que torna manifesta a natureza material do crime, na modalidade do inciso I do artigo 4º da Lei 8.137/90. Eis aí a relevância do exame do corpo do delito (artigo 158, do Código Penal) para justa causa da ação penal pública incondicionada.
Situação diversa encontra-se na tipicidade do inciso II do artigo 4º da Lei 8.137/90, afinal, no qual se pretende a antecipação da punição diante do afirmado intrínseco perigo de se unirem indivíduos, com o propósito de abusar do poder econômico. Segue-se antiga e arriscada política criminal de se enxergar danosidade social na associação para delinquir, noção desenvolvida no século XIX, no seio da Escola Positiva, cujos abusos repressivos a experiência judiciária percebeu no exterior, bem assim no Brasil com os crimes de quadrilha ou bando (artigo 288 do Código Penal) e de organização criminosa (artigo 1º da Lei 12.850/13).
O principal problema na aplicação de tipo penal dessa natureza emerge do reducionismo de se reconhecer nos fatos a união de pessoas, ou empresas, sem jamais se constatarem os fins típicos que a lei descreve, os quais passam a ser deduzidos pela acusação pública, mediante afirmações retóricas e descompromissadas da verdade real. Em síntese, no caso do cartel, até se encontra o ajuste, mas se presumem os fins descritos no inciso II do artigo 4º da Lei 8.137/90, sem elementos probatórios aptos a justificar o oferecimento da denúncia.
Não se podem conjecturar elementos anímicos, os quais integram o crime e exigem comprovação para a propositura de ação penal pública. Logo, quem almeja imputar a infração penal sub examinem precisa demonstrar em que documentos, testemunhos, confissões encontram-se presentes as finalidades específicas que compõem o dolo do tipo legal.
Como escreve, em interessantíssimo estudo de história do Direito Econômico pátrio, Pedro Dutra: “O concerto de ações, para o fim de fixar preço e volume de produção — o cartel — importa na associação de vontades específicas, advertidos os cartelistas de que, agindo individualmente, não detêm poder de mercado em índice suficiente para versá-lo arbitrariamente e assim monopolizá-lo” (Dutra, Pedro. Regulação, concorrência e a crise brasileira. São Paulo: 2017, Ed. Singular, p. 135).
Em verdade, maus aplicadores do Direito Penal veem simplicidade na tipicidade dos crimes formais, como se a característica do tipo ser formal eliminasse a necessidade de ofertar na imputação a ocorrência da ação típica, a relação causal, o resultado típico, a culpa e os indícios da autoria delitiva. No caso do cartel (inciso II, do artigo 4º, da Lei 8.137/90), o repetitivo erro acontece, graças à conhecida ânsia de se ofertarem precoces ações penais em crimes econômicos, a contar de juízos de valor muito particulares de acusadores públicos, que gostam da mídia, não de lei e justiça. Deveriam ler Próspero Farinácio: Poena non habit locum ni si in casu a iure expresso.