Por Henrique Saibro -
Sumulou-se o entendimento, no âmbito do Supremo Tribunal Federal, segundo o qual “Não se tipifica crime material contra a ordem tributária, previsto no artigo 1º, incisos I a IV, da Lei 8.137/1990, antes do lançamento definitivo do tributo” (Súmula Vinculante 24). No caso, a inteligência da súmula abrange, apenas, os delitos fiscais materiais, ou seja, aqueles para os quais o resultado integra o próprio tipo penal; quando, efetivamente, houver supressão ou redução de tributo — dano ao erário.
Por outro lado, sendo desnecessária a configuração de crédito tributário para tipificar as condutas formais contra a ordem tributária — como, por exemplo, o delito do artigo 2º da Lei 8.137/90 —, a jurisprudência vê como dispensável o lançamento definitivo para o oferecimento da denúncia (STF, RHC 90.532 ED, Relator Min. Joaquim Barbosa, Tribunal Pleno, julgado em 23/9/2009, publicado em 6/11/2009). Daí porque o objeto deste artigo delimita-se somente aos crimes tributários materiais, já que a eficácia da Súmula Vinculante 24 é conteúdo indissociável deste estudo.
A despeito de o referido entendimento sumulado ter prestigiado premissas tais quais Direito Penal como ultima ratio e processo penal como pena, bem como considerado o contraditório e a ampla defesa, já que torna indispensável, previamente à persecução penal, que o litigante, no processo administrativo fiscal, tenha o direito de usar de todos os meios e recursos previstos em lei antes da decisão final da autoridade administrativa, não significa que tenha mitigado problemáticas penais e processuais penais sobre o tema. Longe disso. Aliás, mesmo que não propositalmente, criou outras dificuldades.
No Direito Tributário, o prazo de decadência, em se tratando de lançamento de ofício (artigo 173, I, do CTN), inicia-se a partir do primeiro dia do exercício seguinte àquele em que o lançamento poderia ter sido efetuado. Supondo que, hipoteticamente, tenha ocorrido o fato gerador proveniente não apenas do não pagamento do débito tributário, senão, também, de ato de supressão de tributo (ou seja, de crime tributário), em abril de 2017. O primeiro dia do exercício seguinte será 1º de janeiro de 2018. Somente a partir de janeiro de 2018 contar-se-á, a começar do zero, os cinco anos de decadência.
A decadência flui até a notificação do sujeito passivo quanto ao lançamento. Suponha-se, então, que tal notificação tenha ocorrido em dezembro de 2022 (portanto, dentro do prazo decadencial). A partir da notificação, o sujeito passivo possui uma série de mecanismos jurídicos voltados à discussão do crédito tributário, como inicialmente a impugnação, a qual deve ser formalizada por escrito e instruída com os documentos em que se fundamentar no prazo de 30 dias (artigo 15 do Decreto 70.235/72). Com a protocolização da impugnação, dá-se início a um PAF (artigos 14 do Decreto 70.235/72, 5º e 6º da Lei 9.784/99).
Após a decisão em primeira instância da impugnação, o sujeito passivo possui o direito de interpor recurso voluntário, igualmente no prazo de 30 dias (artigo 33 do Decreto 70.235/72), sendo que o mesmo prazo é facultado ao Procurador da Fazenda Nacional para apresentar contrarrazões ao recurso voluntário (artigo 48, § 2º, da Portaria do Ministério da Fazenda 343/15).
No âmbito do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), órgão de julgamento em segunda instância, os prazos são de 15 dias para a interposição do recurso especial para o Conselho Superior de Recursos Fiscais (artigo 37, § 2º, do Decreto 70.235/72) ou para apresentar contrarrazões e de 05 dias para a oposição de embargos de declaração (artigo 65, § 1º, da Portaria do Ministério da Fazenda 343/15). Há, também, a possibilidade de interposição de recurso de agravo (artigo 71 da Portaria do Ministério da Fazenda 343/15).
Ainda, o artigo 24 da Lei 11.457/2007 impõe que é “obrigatório que seja proferida decisão administrativa no prazo máximo de 360 (trezentos e sessenta) dias a contar do protocolo de petições, defesas ou recursos administrativos do contribuinte”. Assim, a partir da impugnação do PAF deverá a Delegacia de Julgamento julgá-la no prazo de 360 dias a contar de seu protocolo. Sucessivamente, “em havendo recurso voluntário dessa decisão, reinicia-se o prazo de 360 dias a partir do protocolo recursal, o mesmo sucedendo para a hipótese de interposição de recurso especial administrativo”, ou seja, o prazo de 360 dias não consiste no prazo final para o julgamento definitivo do PAF, “mas é o prazo que se renova em cada nova etapa processual provocada pelo peticionário (impugnação, recurso voluntário, recurso especial)”. Esse é o entendimento consolidado no STJ em sede de recurso repetitivo (REsp 1.138.206/RS, Rel. Ministro Luiz Fux, Primeira Seção, julgado em 09/08/2010, publicado em 01/09/2010).
A problemática diante de toda essa marcha processual é o tempo transcorrido até se chegar ao lançamento definitivo do tributo. É que, em que pese a polêmica travada na discussão da Súmula Vinculante 24, o entendimento atual do STJ e do STF vai no sentido de que o lançamento definitivo do tributo norteia a contagem da prescrição não só do crédito tributário, senão, também, do crime fiscal: “A fluência do prazo prescricional somente tem início com o encerramento do procedimento administrativo-fiscal e o lançamento definitivo, nos termos do artigo 111, I, do CP, que condiciona o termo inicial da prescrição à consumação do delito” (AgInt no REsp 1.701.733/PB, Rel. Ministro Nefi Cordeiro, Sexta Turma, julgado em 11/6/2019, publicado em 25/6/2019).
Percebe-se que, pela sistemática do PAF, um processo pode durar mais de 10 anos sem transcurso do prazo prescricional. A preocupação já foi externada pelo Ministério da Transparência que, através de um levantamento de dados, apurou que apenas o Carf pode demorar entre 5 a 10 anos para julgar definitivamente ações.
Voltando ao nosso exemplo hipotético, digamos que o PAF dure 6 anos até o julgamento definitivo (constituição definitiva do crédito tributário). Assim, desde o fim do prazo decadencial (dezembro de 2022) até o lançamento definitivo (dezembro de 2028) transcorreram 6 anos sem a defluência de nenhum prazo prescricional. Tal prazo iniciar-se-ia apenas em dezembro de 2028. Ocorre que a prescrição dos delitos descritos no artigo 1º, incisos I a IV, da Lei 8.137/90, deve ser submetida à regra do artigo 109, III, do CP, segundo a qual prevê o prazo de prescrição de 12 anos. Portanto, falar-se-ia em prescrição do delito fiscal, no exemplo aqui trabalhado, apenas no ano 2040! Veja-se que entre o fato gerador até a prescrição do crime tributário transcorreram, aproximadamente, 23 anos. Cuida-se de lapso temporal demasiadamente longo e que, pois, choca-se em detrimento dos princípios da duração razoável do processo e da segurança jurídica. Esse tempo bastante extenso permitido ao Estado perscrutar criminalmente os cidadãos que levou os ministros, no debate da Súmula Vinculante 24, a concluir que essa sumulação era favorável ao Fisco — ou, nas palavras do ministro Dias Toffoli, favoreceria “a atividade persecutória”.
Além da problemática atinente às regras peculiares da prescrição dos crimes fiscais materiais, outro ponto controvertido, decorrente da eficácia da Súmula Vinculante 24, é o momento da consumação de tais ilícitos. Sedimentou-se o entendimento segundo o qual “A consumação do delito tipificado no artigo 1º da Lei 8.137/1990 somente se verifica com a constituição definitiva do crédito tributário” (STF, ARE 1.009.844 AgR, Rel. Min. Edson Fachin, Segunda Turma, julgado em 11/09/2017, publicado em 21/9/2017).
Ocorre que, se o referido entendimento do STF for objeto de maior reflexão, conclui-se, na verdade, que as expressões “constituição definitiva do crédito tributário” e “lançamento definitivo” não são, exatamente, elementos normativos do tipo do artigo 1º da Lei 8.137/90.
Como pontua Taffarello, o que integra o tipo penal da Lei 8.137/90 não é o “resultado de uma decisão administrativa”, senão a locução “tributo”, correlacionada à conduta de suprimir ou omitir. E é nesse ponto que se adentra a problemática relativa ao momento da consumação do delito fiscal material.
Diferentemente de qualquer outro crime disposto em nosso ordenamento jurídico, a realização do elemento do tipo penal e, portanto, a configuração da consumação do crime tributário material, a partir do entendimento exposto pela Súmula Vinculante 24, não está vinculado ao comportamento finalístico do agente que, em tese, o pratica, mas sim ao pronunciamento da Administração, formalizado através do lançamento.
É como, mutatis mutandis, a consumação do crime de homicídio (artigo 121 do CP) estivesse vinculado ao atestado de óbito ou ao exame de corpo de delito — e não à morte, em si, da vítima —, ou a consumação do crime de danificação de plantas de ornamentação de logradouro público (artigo 49 da Lei 9.605/98) estivesse ligado ao resultado de um laudo técnico apontando a existência de dano ambiental. Entretanto, como se sabe, vige no Código Penal a regra disposta do artigo 14, I, segundo a qual se diz o crime consumado, “quando nele se reúnem todos os elementos de sua definição legal”.
Assim, é despicienda, para a consumação de tais delitos, a formalização de documento oficial ou, na esteira do artigo 158 do CPP, a realização de exames periciais atestando a sua ocorrência, bastando, no caso, a reunião dos elementos do tipo penal, como, por exemplo, matar alguém — independentemente de quando for (e se for) formulado o atestado de óbito ou o exame. O fato de inexistir o referido atestado ou o exame pericial não faz com que o homicídio, ontologicamente, deixe de existir. Com efeito, não se deve confundir prova da materialidade com a efetivação do elemento normativo do tipo penal.
No plano do Direito Penal Tributário não há motivos para essa regra ser distinta. No ponto, o fato gerador enseja o nascimento da obrigação tributária, que constitui uma relação jurídica tributária, cujo objetivo é o pagamento do tributo “e extingue-se juntamente com o crédito dela decorrente” (artigo 113, § 1º, do CTN). Mesmo que esta relação não seja certa, pois ainda não líquida, exigível e exequível — status somente tangível por meio do lançamento —, não quer dizer que o tributo não exista.
Significa, então, que, com a obrigação tributária, o tributo, ontologicamente, já existe; a inexistência de lançamento, por si só, não o invalida; trará, isto sim, certeza e liquidez, possibilitando a inscrição em dívida ativa e, finalmente, a sua execução. Essa é, precisamente, a ilação de Taffarello: “Trata-se, ali, de ontologia, e aqui, de deontologia, coisas que não devem confundir-se”.
Portanto, na ótica da tipicidade penal e da regra constante no artigo 14, I, do Código Penal, a realização do elemento normativo do crime material contra a ordem tributária se perfectibiliza com a conduta de supressão ou redução do tributo, já existente ontologicamente a partir da obrigação tributária, e não somente com liquidez e exigibilidade, alcançada, posteriormente, através do lançamento.
Mas qual seria, então, o propósito do lançamento, em sede de crimes fiscais materiais, se não prestaria para fins de realização tipológica, nem tampouco para efeitos de consumação? Para comprovar a materialidade. Noutras palavras, o seu pretexto deveria ser delimitado a comprovar a ocorrência do delito, nada mais, nada menos — tal qual o exame pericial a que alude o artigo 158 do CPP. Aliás, aparentemente, esse raciocínio norteou a seguinte reflexão trazida pelo Ministro Joaquim Barbosa, no âmbito do julgamento do HC 81.611, precedente representativo da Súmula Vinculante 24:
[...] quando o Fisco concluir pela existência do débito tributário, não há como se deduzir automaticamente que houve delito da Lei 8.137/1990, porque o lançamento é simplesmente um indicativo da materialidade. Por aproximação, seria algo como um laudo de corpo de delito. No máximo, o que teremos é a comprovação, por um ato administrativo presumidamente legítimo, de que o réu é devedor da Fazenda. E isso significa apenas que houve o resultado naturalístico previsto no tipo incriminador.
Todavia, por mais que o lançamento sirva como meio de prova da materialidade do ilícito, este não implica, necessariamente, na comprovação de um crime fiscal, caso contrário, admitir-se-ia um processo penal no qual a discussão se limitaria apenas à autoria delitiva. No caso, o lançamento, normalmente acompanhado de uma representação fiscal para fins penais, poderá representar indícios da materialidade criminosa, que, estando acompanhado de indícios de autoria, poderá dar ensejo ao recebimento da denúncia, mas não, por si só, à condenação do imputado, mesmo porque esses indicativos do delito devem ser confirmados, à luz do contraditório, na instrução processual.
Com efeito, a nosso ver, o momento consumativo do crime contra a ordem tributária deveria ser o da data do vencimento da obrigação contraída pelo sujeito passivo da relação tributária; esse entendimento adequa-se às regras do Código Penal, especialmente a do artigo 14, I, de modo que essa mesma data deveria dar início à contagem do prazo da prescrição da pretensão punitiva, conforme previsto no artigo 111, I, do CP.
Não se desconhece a inquestionável demora no julgamento dos processos administrativos fiscais, todavia, não pode tal morosidade pesar contra o cidadão, até porque o prazo da prescrição do artigo 1º da Lei 8.137/90 já á consideravelmente longo, no caso, de 12 anos, com fulcro no artigo 109, III, do CP.
Se realmente se pretende impedir o termo inicial prescricional do crime fiscal até o lançamento do tributo, o que aparenta ter sido feito, pragmaticamente, pelo Supremo Tribunal Federal no âmbito da Súmula Vinculante 24, que se recorra, então, à esfera legislativa, para incluir nova causa impeditiva de prescrição, dentre o rol já existente no artigo 116 do Código Penal, sob pena de inevitável desrespeito ao princípio da legalidade.