Por Davi Tangerino e Gabriel Brezinski Rodrigues -
Na crise da Covid-19 no Brasil, parece haver uma única certeza no mundo jurídico: a incerteza. A dúvida já começa se haverá extensão da quarentena.
A sinalização do presidente da República de que poderia haver flexibilização das regras de confinamento, no dia 24 de março de 2020, por meio da campanha #OBrasilNãoPodeParar, foi revertida pela Justiça Federal no Rio de Janeiro, que proibiu sua veiculação, poucos dias depois.
Também do Rio de Janeiro veio decisão determinando que o presidente se abstivesse de “adotar qualquer estímulo à não observância do isolamento social recomendado pela OMS”.
A Procuradoria-Geral da República também recomendou que o Presidente acompanhasse os parâmetros internacionais de isolamento social; os presidentes da Câmara e do Senado também adotam discurso público nesse sentido.
O sinal mais claro de que a quarentena será inevitável vem da esmagadora maioria dos governadores, e de muitos prefeitos que seguem firmes em Decretos impondo níveis diferentes de incentivos ao isolamento.
Mas qual e para quem?
A leitura dos jornais parece que a questão é simples: serviços essenciais podem continuar funcionando. E só. Mas quais são os serviços essenciais?
Há uma pandemia de normas que responder(iam) a essa pergunta.
No âmbito federal, as principais normas sob a atual emergência de saúde pública são a Lei 13.979, de 6 de fevereiro de 2020, e o Decreto correlato nº 10.282, que delimita os serviços essenciais.
Em 20 de março de 2020, o Governo Federal emitiu a Medida Provisória 926/2020, alterando a citada Lei nº 13.979/20 para concentrar nas mãos do presidente da República e das Agências Nacionais o poder de restringir a locomoção interestadual e intermunicipal, além de dispor sobre os serviços e atividades essenciais.
Ocorre que o ministro Marco Aurélio, na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 6341/DF, proferiu decisão monocrática, afirmando que a competência administrativa para medidas sanitárias referentes à Covid-19 é concorrente, ou seja, Estados e Municípios podem legislar nesse assunto.
Na prática, isso obriga do empresário a pesquisar nos âmbitos municipal, estadual e federal se, em que medida, sua atividade está autorizada.
Em São Paulo, há o Decreto estadual de quarentena, nº 64.881, de 22 de março de 2020, que suspende estabelecimentos comerciais e prestadores de serviços, especialmente em casas noturnas e estabelecimentos fechados, além de proibir consumo local de alimentos.
Há um rol específico de serviços aos quais a suspensão não se aplica (artigo 2º, §1º). No âmbito municipal, há o decreto de quarentena nº 59.298, de 23 de março de 2020, de mesma intenção, mas com outra lista sobre quais serviços podem continuar funcionando.
No Estado do Rio de Janeiro, já são quatro versões do Decreto de quarentena. A atual, nº 46.980, de 19 de março de 2020, adotou tom conciliador com o governo federal, suspendendo eventos públicos, transporte intermunicipal, shoppings, bares e restaurantes.
A suspensão de circulação de transporte interestadual marítimo e aéreo ficou a cargo de ratificação das agências reguladoras nacionais, embora ainda seja a intenção do decreto. Já no município do Rio, os atos são diversos. Os Decretos nº 47.282 e 47.285, de 23 de março de 2020, suspenderam serviços, estabeleceram regras para o funcionamento de transporte de massa e definiram suas próprias exceções. Atos normativos avulsos permitiram a reabertura de alguns tipos de comércio.
O controle jurisdicional coloca mais lenha na fogueira. Em São Paulo, uma liminar proferida pelo juízo de primeira instância proibiu a realização de cultos e atos religiosos. Tempos depois, a liminar foi cassada pelo Tribunal de Justiça.
Mesmo assim, nada garante que as celebrações acontecerão indefinidamente, já que a Administração ainda pode ordenar a suspensão. No Rio, uma liminar da Justiça Federal suspendeu os decretos da União que incluíam igrejas e casas lotéricas nas atividades consideradas essenciais. Já em Vitória, no Espírito Santo, o município proibiu o consumo presencial em restaurantes.
No entanto, o Decreto de quarentena estadual permitiu esse tipo de funcionamento. Coube ao juízo da fazenda pública estadual decidir liminarmente, fazendo valer, por hora, o Decreto estadual.
Confusão criminalizável.
Essa confusão toda se torna particularmente complicada diante dos crimes dos artigos 268 e 330 do Código Penal (CP).
O crime de infração de medida sanitária (artigo 268, CP) é o que chamamos de norma penal em branco. Isso significa que, para completá-lo, temos que consultar as respectivas determinações do Poder Público materializadas em leis, decretos, regulamentos e portarias.
Por sua vez, o crime de desobediência (artigo 330, CP) consiste em descumprir ordem formal, substancial e legal de funcionário público competente. Logo, não basta o mero comando. Quem ordena deve ser respaldado por lei, e quem é ordenado deve ter o dever jurídico de obedecer.
Como regra, o artigo 330 terá pouco aplicação. O descumprimento à ordem do Poder Público é elemento comum a ambos os delitos, o que torna o mais específico (artigo 268) aplicável ao caso. Salvo, talvez, na hipótese de confisco de bens e serviços, quando o crime de desobediência pode surgir como ameaça à recusa.
No entanto, há precedentes no sentido de que, havendo sanção cível ou administrativa prevista como sanção à desobediência, então não há o crime do artigo 330.
Já a aplicação do 268 também não se dará de maneira tão simples.
O tipo penal exige (i) determinação do poder público, (ii) destinada a impedir a propagação de doença contagiosa.
Na Lei n. 13.979/2020, há duas determinações relevantes.
Primeiramente, o isolamento, "separação de pessoas doentes ou contaminadas, ou de bagagens, meios de transporte, mercadorias ou encomendas postais afetadas, de outros, de maneira a evitar a contaminação ou a propagação do coronavírus" (artigo 2º, I).
O isolamento só pode ser determinado por prescrição médica ou por recomendação do agente de vigilância epidemiológica e requer “termo de consentimento livre e esclarecido do paciente” (cf. Portaria nº 356, de 11 de março de 2020, do Ministério da Saúde).
Em tese, só haveria crime, portanto, para aqueles que contrariassem isolamento imposto por médico ou agente sanitário; vale, porém, conferir o caso do casal suspeito de Covid-19 que resolveu sair para um passeio de ciclismo, filmando o trajeto.
Nas imagens, eles zombam da possibilidade de contaminar outros. Por razões óbvias, a postagem do vídeo em redes sociais causou revolta. Assim, a pedido do Ministério Público, a Justiça de São Paulo determinou o isolamento do casal, sob pena de multa diária de dez mil reais.
A resposta estatal parece ter resolvido a situação, embora não faltará quem aponte o crime de infração de medida sanitária, ainda que não se saiba se os requisitos formais para isolamento e notificação da compulsoriedade foram cumpridos.
Quarentena, por sua vez, é "restrição de atividades ou separação de pessoas suspeitas de contaminação das pessoas que não estejam doentes, ou de bagagens, contêineres, animais, meios de transporte ou mercadorias suspeitos de contaminação, de maneira a evitar a possível contaminação ou a propagação do coronavírus" (artigo 2º, II).
Deve ser determinada por ato administrativo formal e motivado, devidamente publicado no Diário Oficial do respectivo ente federativo (cf. Portaria nº 356, do Ministério da Saúde).
Por não requerer ato individual e concreto de médico ou agente sanitário, a violação à quarenta é de mais fácil configuração, de um lado, mas pode gerar dificuldade quanto à clareza do empresário quanto ao que está efetivamente proibido.
Confira-se o caso de locadora do Rio de Janeiro, autuada pela Prefeitura por funcionar mesmo sem ser “serviço essencial”. Pelas prefeituras, esse tipo de serviço é classificado como prestação de serviço. Mas será que isso basta para sanar a dúvida sobre a suspensão da atividade?
No Decreto estadual, não há restrição desse tipo de estabelecimento. Há, ao contrário, exceção de movimentação para profissionais do setor de serviços de transporte e logística, de onde se infere, em princípio, que os demais serviços de transporte estariam proibido. No Federal, transporte de passageiros e de cargas desponta como serviço essencial.
E quais os efeitos penais dessa dúvida, para o empresário?
No Direito Penal, o desconhecimento da lei, em si, é inescusável. Porém, quando o agente não sabe que sua conduta é criminosa ou interpreta mal a norma e acha que a proibição não alcança seu comportamento, há o chamado erro de proibição, com “isenção de pena”, quando inevitável, ou redução da pena, caso lhe fosse possível atingir a consciência da ilicitude.
É o mesmo que dizer que, embora haja um dever de informação imposto pelo Estado ao cidadão, quando as normas jurídicas são incapazes de orientar o destinatário, seja pela sua indeterminação, multiplicidade ou mudança busca, a situação de dúvida sobre os limites entre permitido e proibido é tal, que o Estado não pode exigir a abstenção da conduta.
A recomendação, portanto, em caso de dúvida, é busque se informar com especialistas.
Bem verdade que as oscilações legislativas vão ser confusas até mesmo para o profissional do Direito; essa confusão, porém, é ambígua. Aumenta o risco, de um lado, de uma incriminação arbitrárias, mas fortalece, de outro, a tese do erro.
Papel do clamor socialEmbora as penas não sejam altas (detenção de um mês a um ano, e multa), não se pode, porém, ignorar a força das agências punitivas na mudança de interpretações criminais. No julgamento da Ação Penal 470, o Supremo, influenciado pelo escândalo batizado de Mensalão, alterou a importância do “ato de ofício”, para fins de caracterização do crime de corrupção.
Mais recentemente, a título de exemplo, o conceito penal de funcionário público foi alargado para o Presidente do Comitê Olímpico Brasileiro e para Diretores de fundos de pensão de empresas públicas ou sociedades de economia mista.
Os efeitos da Covid-19 na sociedade brasileira fatalmente alcançarão tons emotivos e o sistema punitivo, por default, deve ser linha de transmissão desses sentimentos. Não causaria espanto se o inimigo da vez — o corrupto — cedesse espaço para os novos: os violadores de medidas sanitárias.
Quem duvidar da potencialidade da Covid-19, convém revisitar a Revolta da Vacina, 116 anos atrás.