Por Tiago Bunning Mendes -
A Lei 13.964/2019 (Lei Anticrime) traz, entre as poucas alterações realizadas na parte especial do Código Penal, a modificação na ação penal do crime de estelionato (artigo 171, § 5º, do CP), que passa a exigir representação do ofendido e, portanto, torna-se ação penal pública condicionada a representação, ressalvados os casos em que a vítima for a administração pública; criança ou adolescente; pessoa com deficiência mental; ou maior de 70 anos de idade ou incapaz.
Há muito a se discutir sobre o tema, por exemplo no âmbito do Direito Intertemporal, já que a Lei 13.964/2019 não trouxe uma norma de transição e, em se tratando de norma processual com conteúdo material, pois afeta a esfera da punibilidade do indivíduo, sua aplicação deve(ria) ser retroativa (artigo 5º, XL, da CF, e artigo 2º do CP), mas isso seria tarefa para um outro artigo, pois nem todos aceitaram facilmente essa posição .
Mas, neste primeiro momento, o mais urgente é uma reflexão de ordem político-criminológica, num sentido que a criminologia crítica já havia nos advertido, acerca da seletividade da norma penal, afinal, segundo Baratta, "a lei penal não é igual para todos, o status de criminoso é distribuído de modo desigual entre os indivíduos" .
Nesse contexto alertado, chama a atenção que entre o rol de crimes contra o patrimônio, sobretudo aqueles praticados sem violência e grave ameaça, o legislador tenha optado justamente e apenas pelo delito de estelionato para condicionar a representação do ofendido à deflagração da ação penal.
Acertadamente, Gustavo Livio percebeu essa incoerência seletiva e abriu nossos olhos ao dizer que "oderia o parlamento ter escolhido o furto, praticado em regra pelos despossuídos desesperados pelas contingências da vida e que, como é óbvio, corresponde a ampla fatia dos crimes processados. Poderia ter escolhido a receptação. Mas como já é de se esperar, dentre os crimes patrimoniais, escolheu justo aquele ordinariamente praticado por pessoas com maior grau de instrução e certo aparato de organização" .
Presumindo — já que não existe exposição de motivos na Lei Anticrime e tampouco no projeto apresentado pelo ex-ministro Sérgio Moro — que neste momento o legislador se baseou na fragmentariedade ou subsidiariedade do Direito Penal , perfeitamente compreensível em se tratando de crimes patrimoniais sem violência ou grave ameaça, que pouco ou nada se distinguem de ilícitos civis e que se satisfazem, a nosso sentir, com a reparação do prejuízo , pensamos que não há impeditivo legal, principiológico e tampouco limites constitucionais de proporcionalidade e razoabilidade que impeçam a construção de uma aplicação analógica in bonam partem do artigo 171, § 5º, CP a outros delitos patrimoniais assemelhados, por exemplo, o crime de furto (artigo 155 do CP), pois como explica Claus Roxin, "a analogia favorável ao acusado é legal sem a menor restrição do direito penal" .
Ser contrário a isso é admitir a seletividade positiva do Direito Penal, notadamente inconstitucional em face ao princípio da isonomia. Confirmando nossa tese, existem precedentes na própria legislação, como é o caso das escusas absolutórias (artigo 181 do CP) e inclusive da previsão de condições de procedibilidade (artigo 182 do CP), que são aplicáveis a todos os crimes patrimoniais sem distinção, excetuando-se apenas os casos em que haja emprego de grave ameaça ou violência (artigo 183, I, do CP) tal como proposto por nós.
Do mesmo modo, pensar que a modificação da ação penal do crime de furto, mormente a partir de uma analogia, ampliaria a prática do delito é errar em duas interpretações, primeiro, porque obviamente não existe e jamais existirá a comprovação da eficiência preventiva do direito penal, em segundo porque não estamos descriminalizando a conduta — isso tampouco ocorrerá com o delito de estelionato —, mas apenas criando uma condição de procedibilidade que permitirá à vítima da violação a um bem jurídico que se reveste de direito disponível (o patrimônio) escolher se deseja ou não a atuação das agências de controle.