RELATOR: DESEMBARGADOR FAUSTO DE SANCTIS -
PENAL E PROCESSO PENAL. ESTELIONATO TENTADO. ART. 171, PARÁGRAFO 3º, C.C. ART. 14 , II, AMBOS DO CP. HIPÓTESE DE CRIME IMPOSSÍVEL AFASTADA. MATERIALIDADE, AUTORIA E DOLO DEMONSTRADOS. DOSIMETRIA. SUPRESSÃO DE DUAS CIRCUNSTÂNCIAS JUDICIAIS DESFAVORÁVEIS (CULPABILIDADE E CONSEQUÊNCIAS DO DELITO). AUSÊNCIA DE CONFISSÃO. REDUÇÃO PARA 1/6 (UM SEXTO) DA FRAÇÃO DE AUMENTO PELA REINCIDÊNCIA. FIXAÇÃO DE REGIME INICIAL SEMIABERTO. REDUÇÃO DA PENA E ALTERAÇÃO DO REGIME INICIAL ESTABELECIDOS EM SENTENÇA.1- Para a caracterização do crime de estelionato, devem estar presentes três requisitos fundamentais, quais sejam: I) o emprego de meio fraudulento, de que são exemplos o artifício (recurso engenhoso/artístico) e o ardil (astúcia, manha ou sutileza), ambos espécie do gênero fraude.; II) o induzimento ou manutenção da vítima em erro; III) a obtenção, em prejuízo alheio, de vantagem ilícita (economicamente apreciável), sem o que não se há de falar em consumação deste delito.2- Ontologicamente, não se há de falar em distinção entre fraude penal e fraude civil, já que não há diferenças estruturais entre estas. É possível que haja um comportamento ilícito e, todavia, circunscrito à esfera civil. Assim, por força dos princípios da intervenção mínima e da fragmentariedade, é necessário, para a caracterização do crime de estelionato, que o agente tenha o dolo como fim especial de agir, sendo imprescindível a consciência, a vontade de enganar, ludibriar, com objetivo de obter vantagem ilícita em detrimento da vítima. É a presença do dolo que distinguirá uma conduta penalmente relevante daquela situação em que, por exemplo, o agente age com boa-fé, sem a intenção de enganar, mas, por motivos diversos, acaba por cometer um ilícito civil. Atente-se que se, por um lado, não se pode adentrar a consciência do indivíduo, por outro, é possível aferir a presença do elemento anímico a partir de fatores externos, ou seja, dos detalhes e circunstâncias que envolvem os fatos. Além disso, é indispensável, para a caracterização do delito de estelionato, que se identifique a ocorrência de ação dolosa pré-ordenada (antecedente), pois, se, em dado caso, se constatar que o dolo é posterior (subsequens), ou seja, surgiu apenas depois da obtenção/entrega da vantagem, não se haverá de falar em estelionato, mas sim no crime de apropriação indébita que, aliás, sequer exige a ocorrência de fraude para sua caracterização.3-O estelionato não se confunde com o furto mediante fraude, pois, nesta última hipótese, a fraude é utilizada como meio de burlar a vigilância da vítima que, por desatenção, não percebe que a coisa lhe está sendo subtraída, enquanto que, na hipótese de estelionato, a fraude é utilizada para se obter o consentimento viciado da vítima que, iludida, entrega voluntariamente o bem ao agente. 4- É importante falar sobre a frequente hipótese em que a falsidade documental é o meio empregado para se obter êxito na empreitada criminosa. Neste caso, em observância ao princípio da consunção, deve prevalecer o entendimento de que o crime-meio (falsidade documental) deverá ser absorvido pelo crime-fim (estelionato), desde que, depois da utilização do documento falso para obtenção de vantagem ilícita, não reste qualquer potencialidade ofensiva, nos termos da súmula n.º 17 do Superior Tribunal de Justiça.5- Em se constatando que a fraude não foi suficientemente hábil para provocar ou manter em erro a vítima (fraude grosseira), deverá haver, em princípio, o reconhecimento da hipótese de crime impossível, por absoluta ineficácia do meio ou absoluta impropriedade do objeto (inteligência do art. 17 do CP).6- Em sendo o estelionato um crime material e de dano, sua consumação se dará com a efetiva obtenção da vantagem, isto é, a partir do momento em que a coisa passar da esfera de disponibilidade da vítima para a do infrator (ou de terceiro). Além disso, não se deve perder de vista que a vantagem obtida pelo agente deve ser ilícita, ou seja, contrária ao ordenamento, uma vez que, se a vantagem for devida, ficará descaracterizado o delito de estelionato, podendo haver, por exemplo, a desclassificação para o delito de exercício arbitrário das próprias razões, nos termos do artigo 345 do CP.7- No caso concreto, o réu foi condenado à pena de 02 (dois) anos e 02 (dois) meses de reclusão, em regime fechado, e 32 (trinta e dois) dias-multa, cada qual fixado em 1/30 (um trigésimo) do salário mínimo, pela prática do delito de estelionato contra ente público (Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos), na forma tentada, uma vez que ficou comprovado que ele, apresentando-se falsamente como Luan Bonifácio, recebeu, de maneira fraudulenta, encomendas entregues pelos Correios, ciente de que as mercadorias haviam sido adquiridas também mediante fraude, tendo sido, naquele momento, abordado por policiais civis que vigiavam a entrega, razão pela qual o delito não se consumou, já que o acusado não chegou a desfrutar da vantagem que pretendia auferir, pois, tão logo recebeu as encomendas, foi abordado pelos policiais e preso em flagrante.8- Não há notícia de que o agente tenha sido induzido ou estimulado a cometer a infração penal, mas apenas de que policiais civis vigiaram sua conduta e conseguiram impedir a consumação do delito (hipótese de "flagrante esperado"). Conforme asseverou o r. juízo a quo, "não há que se falar em crime impossível pelo fato de policiais estarem investigando o caso. Com efeito, o crime em comento não fora praticado no transcurso do chamado 'flagrante preparado', visto que os policiais, ou mesmo a empresa pública, não tomaram qualquer iniciativa a instigar o acusado para a prática delitiva. Ao contrário, policiais e empresa de Correios apenas suspeitavam de fraude na compra do produto a ser entregue tendo em vista denúncia realizada pelo site de vendas Mercado Livre. Assim, foram ao local dos fatos a fim de averiguar a veracidade da denúncia. Neste contexto, o crime foi praticado espontaneamente pelo réu, ensejando sua imediata prisão em flagrante delito. O flagrante foi esperado pelos policiais, não preparado".9- A despeito do que alegou a defesa, o meio utilizado pelo agente para perpetrar a fraude revelou-se eficaz. Embora não seja de praxe que os agentes dos Correios exijam identificação documental para entrega de encomendas, pois costumam pedir apenas que o destinatário da encomenda coloque nome e número do RG no recibo de entrega, fato é que restou suficientemente demonstrado que "o acusado (...) apresentou-se como LUAN, assinando este nome e colocando o RG desta pessoa no recibo, recebendo, então, de maneira fraudulenta, as encomendas". Além disso, a possibilidade de o agente alcançar o resultado pretendido existia e a consumação da infração penal somente não ocorreu por circunstâncias alheias à vontade do réu. Tal como constou da r. sentença, "em verdade, se as encomendas não viessem de outro Estado, certamente a vítima originária não teria conseguido avisar ao site de vendas e à polícia acerca da fraude perpetrada em tempo hábil. Ou seja, o acusado teria consumado o delito sem quaisquer problemas. Se havia a possibilidade de consumação do delito, não há que se falar, por óbvio, em impropriedade do objeto e em crime impossível.10- Os elementos de prova apresentados, especialmente os depoimentos prestados pelas testemunhas, são suficientes para a formação de juízo de certeza acerca da materialidade e autoria delitivas, bem como evidenciam a presença do dolo.11- O fato de o réu ter praticado o delito em questão quando estava gozando de livramento condicional indica que sua conduta extrapolou a normalidade a ponto de merecer maior reprovação social e, portanto, justifica, em princípio, a majoração da pena-base. Todavia, considerando que, in casu, a condenação transitada em julgado que ensejou a concessão do livramento condicional já foi utilizada na segunda fase da dosimetria para fins de incremento da pena (pela reincidência), não se deve permitir que esta gere, também, repercussões na reprimenda básica, sob pena de bis in idem. Determina-se, pois, seja afastado o incremento da pena-base em razão do vetor culpabilidade.12- Para que as consequências do crime autorizem o aumento da pena-base, estas devem extravasar o mero resultado decorrente da prática da infração penal. Considerando que, in casu, o delito sequer se consumou, já que o acusado não chegou a desfrutar da vantagem que pretendia auferir, pois, tão logo recebeu as encomendas, foi abordado pelos policiais e preso em flagrante, considera-se não haver justificativa suficiente para uma avaliação negativa das consequências do delito.13- É certo que, considerando circunstâncias como lugar do crime, tempo de sua duração, relacionamento existente entre autor e vítima, atitude assumida pelo delinquente no decorrer da realização do fato criminoso, dentre outras, nada obsta o julgador de majorar a pena-base, desde que se tratem de circunstâncias acidentais, isto é, circunstâncias que não participem da própria estrutura do tipo penal (STJ, 5ª Turma, HC 235.465/RN, Rel. Marco Aurélio Bellize, DJe de 25.06.2013). Como bem asseverou o r. juízo a quo, "a prática delitiva faria, se consumada, diversas vítimas", pois "foram ao menos quatro vendedores que enviaram encomendas ao endereço onde se localizava o réu, sem receberem os valores devidos, bem como foram vítimas reflexas os sites de vendas online e a empresa pública federal, que, mantida em erro, entregaria mercadorias para pessoa indevida", de modo que a exasperação da pena-base com fulcro na valoração negativa das "circunstâncias do crime" se amparou em fundamentos idôneos e deve ser mantida.14- Em sendo 8 (oito) as circunstâncias judiciais a serem analisadas para a fixação da pena-base (inteligência do art. 59 do CP), e considerando que a pena abstratamente cominada para o delito de estelionato é a de 01 (um) a 05 (cinco) anos de reclusão, considero que a exasperação deve ser equivalente a 06 (seis) meses para cada circunstância judicial identificada. Determina-se, pois, a redução da pena-base privativa de liberdade para 01 (um) ano e 06 (seis) meses de reclusão.15-Na segunda fase, o r. juízo a quo reconheceu como presente a agravante da reincidência, já que "o réu cumpria pena de mais de 11 anos de reclusão em regime de livramento condicional" e elevou a pena privativa de liberdade em 1/2 (metade). Ocorre que, embora o Código Penal não forneça um quantum para fins de atenuação ou agravamento da pena, de modo que ao juiz é dada certa margem de discricionariedade, ante a ausência de critérios previamente definidos pela lei, prevalece na doutrina e jurisprudência o entendimento de que, para se atender aos critérios da proporcionalidade e em observância ao princípio da razoabilidade, cada circunstância atenuante ou agravante deverá fazer com que a pena-base seja diminuída ou aumentada em 1/6 (um sexto), a menos que, no caso concreto, haja circunstância anormal que legitime a majoração ou redução em percentual diferente, o que não se verifica in casu. Fixa-se, pois, na segunda fase, a pena privativa de liberdade em 01 (um) ano e 09 (nove) meses de reclusão.16- Em momento algum o réu admitiu ter realizado a conduta que lhe foi imputada, isto é, jamais admitiu ter empregado meio fraudulento para obter vantagem ilícita, não se havendo de falar em confissão como atenuante.17- Na terceira fase, vislumbra-se a presença da causa de aumento prevista no parágrafo 3º do art. 171 do CP do Código Penal, de maneira que a pena deve ser elevada em 1/3 (um terço), ficando estabelecida em 02 (dois) anos e 04 (quatro) meses. Por fim, é de rigor a aplicação da causa de diminuição prevista no artigo 14, II, do Código Penal, a fim de que a pena seja reduzida em 2/3 (dois terços), conforme determinou a r. sentença, em se tratando de recurso exclusivo da defesa.18- Em sendo o réu reincidente, não se há de falar, em princípio, em fixação de regime inicial aberto. Por outro lado, não é razoável a manutenção do regime fechado (estabelecido em sentença), considerando que a pena privativa de liberdade foi fixada em patamar inferior a quatro anos e tendo em vista que as circunstâncias judiciais se revelaram majoritariamente favoráveis, de modo que deve prevalecer o teor da Súmula n.º 269 do Superior Tribunal de Justiça, a fim de que o regime inicial de cumprimento de pena seja o semiaberto (inteligência do art. 33, §2º, "b" e "c" e § 3º, do Código Penal). 19- A pena se torna definitiva em 09 (nove) meses e 10 (dez) dias de reclusão, em regime semiaberto, e 10 (dez) dias-multa, cada qual fixado em 1/30 (um trigésimo) do salário mínimo (valor do salário mínimo vigente à época dos fatos e atualizado na forma da lei).20- Apelação da defesa a que se dá parcial provimento.
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