Por Sidney Duran Gonçalez -
O Supremo Tribunal Federal, no final do ano passado, fixou a tese de que o empresário que deixa de recolher ICMS incide no tipo penal do artigo 2º, inciso 2, da Lei 8.137/90. A tese vitoriosa do relator ministro Luís Roberto Barroso, no RHC 163.334, foi acolhida por maioria de votos em julgamento do Plenário.
O ministro Barroso sustentou a importância de agravar as sanções contra a "sonegação" e crimes tributários, afirmando que o calote impede o país de "acudir as demandas da sociedade", sendo que, no entendimento do ministro, o ICMS não faria parte do patrimônio da empresa, que retém o valor correspondente ao tributo que deveria ser repassado ao fisco estadual.
Em dezembro de 2019, ninguém imaginava o cenário que se descortinaria meses depois. A partir de março de 2020, o Estado brasileiro passa a impor — em razão da grave crise sanitária que se instalou — que empresários fechassem suas empresas e, por conseguinte, seu sustento.
No momento presente, é fácil compreender que a necessidade não conhece princípios. Considerar crime o não pagamento de dívida implicaria encarcerar milhões de pessoas que, certamente, não deram causa à situação. Logo, o entendimento firmado no RHC está tão suspenso quanto as cláusulas pétreas que garantem o direito de reunião e o de ir e vir.
Mas o exemplo da epidemia não é a única situação em que uma empresa se vê impossibilitada de arcar com obrigação tributária. O coronavírus não inventou todos os imprevistos. Enchentes, incêndios, políticas econômicas desastrosas, incidentes e acidentes são tão ou mais possíveis que doenças transitórias. A decisão do Supremo não é equivocada por agora, apenas.
Este momento de grande crise faz surgir um direito que sentimos superior, que ampara a existência das pessoas jurídicas — o direito de existir — para que possamos sobreviver como sociedade. Faz lembrar Antígona em seu discurso a Creonte, pois é preciso que o Estado entenda que existe além do direito emergencial, de vida ou morte, imprevistos. E nesses casos éditos devem ser relativizados ou revistos .
A aplicação do entendimento do Supremo Tribunal Federal faria com que muitos empresários surrados pela crise econômica e pelas imposições sanitárias do Estado fossem levados à barra dos tribunais para ser julgados criminalmente. A exposição de tais fatos não nos soa justa, demonstra que existe uma injustiça latente em tais conjecturas.
No caso em que o empresário deixa de recolher o ICMS declarado ao Fisco estadual para que possa manter em funcionamento suas atividades, ou ainda, para que tenha possibilidade de reabrir a sua empresa. Passada a crise sanitária, se aplicada a tese firmada pelo Supremo para empresários que deixam de recolher seus tributos, além da avalanche de imputações penais, ocorreria o desmonte do sistema produtivo do país.
É certo dizer que a decisão desenhada pelo Supremo é destinada a algumas situações que em tese seriam as abrangidas pelo novo entendimento, qual seja o de agir de "forma contumaz, e com dolo de apropriação", todavia, o entendimento lançado, na forma em que se encontra, deixa grande margem para apreciação da situação, já que será pautada exclusivamente na análise de elementos valorativos, subjetivos, e ao juiz livremente fazer esse juízo de valor.
De inopino, não faltam exemplos de afastamento da tese no quadro atual. É o caso dos diversos prejuízos ocasionados aos empresários que precisam manter seus custos fixos com a redução da jornada de trabalho ou proibição de exercer as atividades da empresa; ou ainda, e mesmo que a empresa não esteja na relação dos serviços não essenciais, esta precisa adotar procedimentos custosos para a sua operação o que certamente causa desequilíbrio financeiro.
Fácil notar, nos dois exemplos acima sugeridos, o paradoxo da imposição de custos ou prejuízos sem a necessária contrapartida do faturamento. A imposição parte do Estado que visa a proteger a sociedade em geral por questões sanitárias e, para tanto, fragiliza as empresas que passam a reduzir seus lucros ou acumular prejuízos, a ponto algumas terem completamente inviabilizadas suas atividades.
No caso de manifesta possibilidade de inviabilização de operação de uma empresa em razão das restrições impostas pelo Estado, o não pagamento do ICMS pelo empresário deve ser visto como conduta não culpável.
Para que se salve a empresa, não pagar seus impostos é o menor dos problemas — jamais uma conduta delituosa e, sim, uma conduta amparada por exculpante, amparada pelo artigo 23 do Código Penal. Não pode o Estado exigir que o empresário mate sua empresa em razão da obrigação de pagar impostos em uma situação de grave crise como a atual.
A inexigibilidade de conduta diversa caracteriza-se quando age o autor de maneira típica e ilícita, mas não merece ser punido, pois, naquelas circunstâncias fáticas, dentro do que revela a experiência humana, não lhe era exigível um comportamento conforme o ordenamento jurídico .
Diante da grave crise sanitária e das imposições do Estado para conter a pandemia, é claro que as empresas e os empresários são os mais afetados, com centenas de milhares de empresas fechadas desde o início da crise sanitária, conforme expõe notícia divulgada pelo jornal El Pais, em que se aponta o número de 716.000 empresas fechadas desde o início da pandemia. Os efeitos para as empresas são catastróficos .
O fechamento em massa de empresas, e, com isso, o aumento significativo do desemprego no Brasil, demonstra a necessidade de uma visão mais adequada a questões relativas ao não pagamento de impostos. Cabe aos tribunais a responsabilidade, diante da séria e cruel realidade vivida pela nação, de aplicar a mais importante das leis desta quadra: a lei do bom senso.