Por Bruno Drago e Marco Fonseca -
O artigo 5º da Constituição Federal, que traz os direitos considerados fundamentais, determina, em seu inciso LVII, que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença condenatória. Trata-se do princípio da presunção de inocência ou da não culpabilidade.
A ideia de se presumir a inocência de investigados remonta ao século XVIII, quando, na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, previu-se que "todo homem será presumido inocente até que tenha sido declarado culpado". Em 1948, a Organização das Nações Unidas (ONU), na Declaração Universal dos Direitos Humanos, consignou que "toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência, enquanto não se prova sua culpabilidade".
No Brasil, recentemente, por ocasião do julgamento das Ações Declaratórias de Constitucionalidade nºs 43, 44 e 54, o debate sobre a presunção de inocência ganhou holofotes quando o Supremo Tribunal Federal voltou a discutir a possibilidade de prisão após a condenação em segunda instância. A discussão da Corte Suprema foi riquíssima, o que foi revelado, inclusive, pelo quórum de deliberação, que não se deu à unanimidade.
Ocorre que, apesar da discussão sobre a presunção de inocência ser evidente em grau recursal, não se pode olvidar que, guardadas as devidas proporções, tal garantia constitucional deve ser considerada desde o início das investigações, isto é, quando da formação do rol de investigados. No caso da autoridade concorrencial brasileira, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade_, por exemplo, esta necessidade tem se mostrado cada vez maior. Vejamos.
Em junho de 2020, o Cade julgou processo administrativo envolvendo suposto cartel no mercado de defensas marítimas [1]. A investigação, datada de 2014, foi instaurada em face de duas empresas e cinco pessoas físicas.
Tal processo administrativo decorreu de outro mais antigo, de 2007, que investigava cartel internacional no mercado de mangueiras marítimas. Em verdade, ao final de sete anos de investigação daquele cartel internacional, o Cade concluiu haver indícios de envolvimento das duas empresas e das cinco pessoas físicas noutro cartel voltado ao mercado de defensas marítimas.
Da própria cronologia dos fatos, presume-se que a autoridade concorrencial teve condições de conduzir uma análise preliminar da conduta das pessoas investigadas no segundo procedimento antes da instauração daquela investigação. No entanto, o julgamento do caso revelou que tal análise prévia não aconteceu como deveria.
A verdade é que entre os investigados havia um mero vendedor à época dos fatos e que foi apenas destinatário de um único e-mail trazido ao conhecimento da autoridade concorrencial. Ao final do julgamento, o Cade absolveu o investigado afirmando não haver qualquer prova de que ele teria se envolvido em conduta anticompetitiva, principalmente por não ter qualquer poder de decisão na estrutura corporativa da empresa a que servia.
Em princípio, ao se observar apenas o resultado do processo, poder-se-ia dizer que a justiça foi feita. Mas será? Foi justo submeter uma pessoa a quase seis anos de investigação por cartel, imputando-lhe todos os ônus emocionais, reputacionais e financeiros que esse tipo de investigação traz? Teria, de fato, o Cade, ao formar o polo passivo de tal processo, levado em consideração o princípio da presunção de inocência?
É interessante notar que este caso não é o único. A situação se repetiu, por exemplo, na investigação conhecida como "cartel dos trens" [2], em que, após quase sete anos de investigação, o Cade arquivou o processo em relação a determinadas pessoas físicas por não terem qualquer relevância nas estruturas de governança das empresas.
É comum que as pessoas investigadas pela prática de cartel, sobretudo aquelas do baixo escalão empresarial, tal como vendedores, secretárias ou assistentes administrativos, sejam demitidas no curso das investigações. Os motivos são os mais diversos e vão desde o encerramento das atividades das empresas investigadas até políticas internas de determinados grupos empresariais que não permitem a manutenção de vínculo empregatício com pessoas investigadas por práticas criminosas, tal como a de cartel.
Nesse caso, imagine-se as dificuldades encontradas por tais pessoas para a obtenção de novo emprego. Quem contraria uma pessoa sob investigação por cartel? Quem contrataria uma pessoa que, ao ter seu nome consultado na internet, mostra-se sob investigação pelo Cade?
A verdade é que, nesses casos, a presunção de inocência pode até ter existido formalmente ou apenas no campo jurídico. O mercado, pelo contrário, condenou tais pessoas já no início das investigações. Portanto, questiona-se: a presunção de inocência serve a quem? Seriam, de fato, tais pessoas, justamente as mais vulneráveis, consideradas inocentes até o seu julgamento final pela autoridade concorrencial? A resposta parece ser negativa.
É lastimável, para se dizer o mínimo, constatar que essas pessoas, após gastarem todos os seus recursos financeiros na dispendiosa tarefa de se defenderem perante a autoridade antitruste, abaladas reputacional e emocionalmente, vejam-se numa situação de dificuldade extrema de (re)colocação no mercado de trabalho, independentemente do resultado das investigações.
Assim sendo, surge a imediata necessidade de se rever o momento de aplicação do princípio da presunção de inocência pelo Cade. Esclareça-se que, por óbvio, não se está a negar o inafastável dever da autoridade concorrencial de investigar e punir infrações à ordem econômica. Há, no entanto, que se proceder a uma análise minimamente razoável do envolvimento das pessoas em condutas supostamente anticompetitivas antes da sua inclusão no rol de investigados.
Deve-se mencionar, por fim, que a prática de cartel, além de ilícito administrativo, também constitui crime, cuja pena vai de dois a cinco anos de reclusão e multa, nos termos da Lei 8.137/90. Nesse sentido, não se pode descartar a hipótese de investigações abertas pelo Cade influenciarem, ou até mesmo incentivarem, a instauração de investigações criminais contra pessoas físicas.
O fato é que a realidade mostra que, em se tratando de investigações conduzidas pelo Cade, a mera inclusão de pessoas físicas no polo passivo dos processos significa sua condenação, independentemente do resultado do processo, sobretudo pelo mercado de trabalho. A investigação pesa. Há, portanto, de se ter extrema cautela, cuidado, e porque não mais humanidade e empatia, quando da instauração de uma investigação, pois a "justiça" da decisão final pode já não ser mais efetiva.