Por Eduardo Januário Newton -
Em reportagem da ConJur neste sábado (25/7), houve um apocalíptico alerta elaborado por um integrante do Ministério Público do Estado de São Paulo. A questão é saber se o excesso de Habeas Corpus constitui um abuso de defesa ou, então, uma repercussão da incompreensão dos juízes de direito paulistas sobre o modelo constitucional de processo penal.
Quanto a esse ponto de reflexão, uma alta autoridade da república já deu a resposta correta, isto é, o ministro Rogério Schietti afirmou uma inconcebível resistência da magistratura paulista em observar os precedentes do Superior Tribunal de Justiça. Lenio Streck, ao examinar o imbróglio formado pela manifestação de um Desembargador que apontou para a independência e consequencialismo como razões para o afastamento dos precedentes, assinalou:
“Não me surpreendo que um tribunal não siga precedentes. Quem leu a coluna da qual falei acima sabe do que estou falando. Portanto, não insistirei com a crítica com o tal ‘sistema’ que não é sistema.
Apenas direi que em um país em que se julga de forma — confessadamente — consequencialista, parece óbvio que ninguém está preocupado com coerência e integridade (que, aliás, é um preceito legal). Respeitar a coerência e a integridade do direito é decidir por princípio.”
Ora, dessa forma, a crítica não deveria ser voltada para a defesa criminal, tal como realizado pelo integrante do MP-SP, que desejou se mostrar um amigo do orçamento da corte paulista, mas se esqueceu da ordem jurídica.
Há uma questão simbólica na criação de uma imagem negativa da ação constitucional de Habeas Corpus e que, para sua compreensão, se faz necessário volver os olhares para além do direito. O Brasil é governado por um verdadeiro garoto propaganda da cloroquina no tratamento do novo coronavírus. O "pequeno" problema é que essa publicidade não encontra amparo na ciência. Em matéria publicada, em 23 de julho de 2020, no jornal O Globo foi destacado o estudo científico que aponta para a ineficácia da hidroxicloroquina para os casos leves e moderados:
“O uso da hidroxicloroquina, sozinha ou associada à azitromicina, não trouxe nenhum benefício ao tratamento de pacientes com quadros leves e moderados de Covid-19, mostra estudo inédito do grupo Coalizão Covid-19 Brasil. Ao contrário: além de ineficientes na melhoria do estado de saúde dos participantes, os medicamentos provocaram efeitos cardíacos e hepáticos diversos.”
Ainda assim, diante dos negacionistas de plantão no Palácio da Alvorada, o presidente demonstrou seu apreço ao seu papel de anunciador de um remédio que não serve para o tratamento da doença que já matou mais de que um Maracanã lotado. Erguendo a caixa do remédio, como se fosse a taça levantada por um capitão, o Chefe do Executivo obteve aplausos de uma plateia delirante.
Essa cena demonstra cabalmente a substituição do conhecimento científico pelas crenças estabelecidas sem qualquer rigor ou metodologia. O empobrecimento do sujeito é uma marca própria da racionalidade dominante. Ademais, Rubens Casara examina esse quadro atual em que a verdade obtida pelo trabalho do cientista é fragilizada pela postura dos negacionistas:
“A simplicidade [que é fruto do empobrecimento subjetivo] também se afasta da verdade e se mostra compatível com a informação (também simplificada) e com as chamadas ‘fake news’, mentiras que produzem efeito da verdade, normalmente por confirmarem preconceitos dos receptores do falso.”
Não resta dúvida de que subsiste, dessa maneira, uma demonização do habeas corpus, sob o ‘fundamento’ de que uma postura defensiva voltada para o seu manejo poderia representar o colapso do Poder Judiciário. O fato de o caos já imperar no sistema prisional parece não ser objeto de questionamento por parte daqueles que se utilizam de uma falsa premissa. Todavia, o conjunto há ser analisado é outro, sendo composto por dois aspectos e uma gritante falta de coerência.
A incoerência decorre da putativa preocupação com a questão orçamentária, que se encontra materializada na manifestação do fiscal da lei. A manifestação contém 11 laudas e somente 3 parágrafos marginalmente tratam do caso penal. Qual seria a relevância em se debater a Lei de Responsabilidade Fiscal para aquele caso? Uma singela manifestação não poderia ter tornado o julgado mais simples? Diante de um parecer tão genérico não poderia ser utilizado em outros HCs?
É preciso prosseguir e enfrentar os dois aspectos mais relevantes.
O primeiro deles decorre do desconhecimento da história da ação constitucional do Habeas Corpus no Brasil. Graças a criatividade de advogados, no curso da República Velha foi estabelecida a chamada doutrina brasileira do Habeas Corpus, quando ameaças indiretas à liberdade ambulatória chegaram a ser tuteladas por ele. A liminar em HC preventivo foi uma construção do Supremo Tribunal, que concedeu salvo-conduto ao então governador de Goiás Mauro Borges. Caso os exemplos sejam considerados como antigos, não se pode desprezar para o Habeas Corpus Coletivo nº 143.641/SP que teve como pacientes todas as mães e gestantes presas, o que gerou, inclusive, posterior alteração do Código de Processo Penal. E a se a limitação valesse, como seria possível pensar nessas decisões?
O segundo aspecto deriva da reiterada desobediência ao modelo de persecução penal instituído em 05 de outubro de 1988. O estado de inocência, muito embora expressamente declarado na Constituição da República, é rotineiramente esvaziado. Já no âmbito da execução penal, direitos são confundidos com benefícios, dádivas ou mercês e, por isso, a todo instante sofrem as mais difíceis formas de fruição. O que fazer então? Permitir a continuidade dos abusos das prisões processuais e a negação dos direitos dos apenados? De que serviu o reconhecimento, então, do Estado de Coisas Inconstitucional do sistema prisional?
No meio jurídico, é comum denominar o HC como remédio heroico. Quiçá inspirado no morador do Palácio da Alvorada, há quem queira negar a eficácia desta ação constitucional. Não se trata de um veneno capaz de colapsar qualquer tribunal; longe disso, é o instrumento ideal para o respeito integral da ordem constitucional. Toda crise se mostra uma ótima oportunidade de soluções. Tomara que o TJ-SP aproveite esse momento para mudar sua postura decisória. Certamente os Tribunais Superiores, os estudiosos de orçamento público e os apocalípticos vão agradecer. E o mais importante: o império da lei não será vulnerado. A autocrítica é essencial para a tomada do rumo certo.