Por Diogo Malan -
A relação Advogado-cliente tem enorme potencial para se tornar problemática, cobrando do Advogado elevado custo, em termos de paz de espírito, realização profissional, saúde física e psicológica etc.
Isso é particularmente verdadeiro na advocacia criminal, pois o cliente está sofrendo coação estatal sobre sua liberdade de locomoção, ou está com esse direito fundamental em risco. Assim, não raro o cliente se encontra em estado de grande fragilidade emocional e psicológica, desenvolvendo expectativas irracionais ou irreais em relação ao papel do Advogado.
Infelizmente, a atual matriz curricular das Faculdades de Direito não proporciona diversas habilidades imprescindíveis para a prática exitosa da advocacia. Dentre elas, a nobre arte de captar bons clientes, com os quais se consegue criar e manter relação ética, profissional, respeitosa e produtiva durante toda a persecução penal.
Nessa toada, os Advogados refinam a sobredita arte observando padrões comportamentais de colegas mais experientes, ou via doloroso processo de tentativa e erro, ao longo da sua trajetória profissional.
Nada obstante, minha experiência prática, somada à adaptação de ideias originárias de fontes em língua inglesa , torna possível alinhavar modesta proposta de sistematização de tipologias fáticas e perfis de clientes indiciários de relação Advogado-cliente potencialmente problemática.
Antes da apresentação dessa proposta propriamente dita, cabem duas advertências.
A primeira é que tal proposta não autoriza a conclusão de que, nessas hipóteses, o Advogado sempre deve recusar o patrocínio da causa. Cada relação profissional Advogado-cliente é única, e sua higidez depende de uma série de variáveis (v.g. perfis do Advogado e do cliente; expectativas de cada qual; grau de confiança e empatia entre eles etc.). Portanto, a aceitação do patrocínio da causa sempre implica juízo de valor casuístico e personalíssimo do Advogado, insusceptível de engessamento por normas abstratas.
Todavia, a proposta abaixo pode fornecer alguns critérios que permitam ao Advogado – especialmente o menos experiente – aperfeiçoar o seu processo decisório sobre a aceitação do patrocínio de causas, tornando-o mais criterioso e reflexivo.
A segunda é que tenho o grande privilégio (e a grande responsabilidade) de desenvolver e manter relação profissional extremamente gratificante com todos os meus clientes, muitos dos quais hoje considero amigos.
Embora não tenha dados empíricos a respeito, minha crença pessoal é que a postura ética, profissional e respeitosa naturalmente leva à formação de clientela com perfil semelhante, em benfazejo ciclo de retroalimentação. Talvez o inverso também seja verdadeiro.
Assim, eis a relação de tipologias fáticas e perfis de clientes que podem ser considerados indiciários de relação Advogado-cliente potencialmente problemática:
- Cliente indicado por criminalista: decerto há boas causas indicadas por colegas criminalistas, que não têm condições de assumi-las em razão de conflitos de interesses, falta de especialização ou experiência na matéria, carga excessiva de trabalho etc. Não obstante, é legítimo questionamento sobre o motivo dessa indicação, pois infelizmente há colegas que indicam causas não tão boas assim, em razão da hipossuficiência do cliente, inadimplência de honorários etc. Curiosamente, neste caso a indicação costuma ser tratada pelo seu artífice como uma deferênciaao indicado, quando na verdade se trata de pedido de favor (assunção da causa pro bono). Entendo que o ideal é indicar esse tipo de causa pro bonopara a Defensoria Pública ou outro serviço de assistência jurídica gratuita. Caso se opte pela indicação de colega, o ideal é ser honesto sobre o real motivo da indicação, deixando o indicado absolutamente à vontade para declinar;
- Cliente pregoeiro:há clientes obcecados com economia, que fazem extensas cotações de honorários com diversos escritórios concorrentes, tal qual um pregoeiro em certame licitatório. Esse tipo de cliente não costuma estar interessado no Advogado mais qualificado para defendê-lo, e sim no Advogado mais barato disponível no mercado, independentemente de qualificação. Normalmente, se trata de cliente que sabe o preço de todos os escritórios, mas não tem a menor ideia do valor da defesa técnica de excelência;
III. Cliente rebelde: no meio da construção civil, os engenheiros dizem que a pior coisa no canteiro de obras é o peão com iniciativa, que começa a executar tarefas sem supervisão, fora dos parâmetros do projeto etc. Há clientes que infelizmente agem à revelia do Advogado, contrariando suas orientações expressas (v.g. procurando diretamente corréus, em busca de concerto de versões sobre os fatos naturalísticos investigados etc.). Essa rebeldia não só põe em causa a estratégia processual do Advogado, como pode ensejar responsabilidade penal do cliente pelo delito de obstrução de justiça (artigo 2º, § 1º da Lei nº. 12.850/13) ou infrações penais contra a Administração da Justiça;
- Cliente jurista: a conversa franca com o cliente sobre questões fáticas e jurídicas relevantes da causa é importante para educá-lo sobre a importância de cada escolha estratégica e tática, e seus potenciais benefícios e riscos. Entretanto, há clientes que não confiam nos conhecimentos jurídicos do Advogado, recorrendo a fontes menos qualificadas (v.g. outros presos, carcereiros, parentes, amigos, Advogados de outras áreas, conteúdo retirado da internet etc.) para questionar cada informação dada por ele. Esse comportamento desconfiado prenuncia relação Advogado-cliente conturbada;
- Cliente trânsfuga: há clientes que trocam de Advogados sucessivas vezes. Essa inconstância pode indicar perfil controlador do cliente, pois dentre as variáveis da persecução penal (v.g. identidade do julgador e acusador; liberdade no curso do processo; sentença absolutória ou condenatória etc.), a única controlada pelo cliente é o seu Advogado constituído. Outras possibilidades são expectativas irracionais ou irreais em relação ao papel do Advogado e problema crônico de falta de confiança. Além disso, suceder colega na causa pode implicar trabalho dobrado, a depender da quantidade e gravidade de erros processuais cometidos anteriormente. Se o cliente faz críticas infundadas ao antigo Advogado, apresentou representação ético-disciplinar contra ele etc., normalmente é só uma questão de tempo até ele começar a fazer o mesmo contra você;
- Cliente estelionatário: na advocacia criminal, a praxe é a cobrança de honorários fixos, no momento da assunção da causa. Se o cliente quer que você trabalhe no risco(ou seja, sem remuneração inicial), inclusive adiantando recursos do caixa do seu escritório para arcar com despesas processuais, com base em promessa de futuros honorários de êxito (success fee), desconfie. Possivelmente se trata de cliente que não pretende remunerá-lo. Se o cliente pedir empréstimo pessoal durante a primeira entrevista, ou logo após, possivelmente se trata de estelionatário querendo obter vantagem econômica indevida às suas expensas;
VII. Cliente com problema pessoal grave: se o cliente é alcoólatra, possui alterações mentais, é dependente químico de substância entorpecente etc., ele pode ter delírio persecutório ou outra condição que torne sua relação interpessoal com o Advogado extremamente conturbada e difícil;
VIII. Cliente em negação, passional ou raivoso: se o cliente não possui maturidade suficiente para aprender e lidar com a realidade, assumindo responsabilidade pessoal pelos seus atos, preferindo dar desculpas e transferir a responsabilidade pela persecução penal e outros revezes para terceiros (inclusive o Advogado), isso é sinal que ele vai culpá-lo por eventual condenação. O mesmo se diga quanto ao cliente que tem envolvimento excessivamente passional com a causa, ou nutre injustificado sentimento de raiva da sua persecução penal – o que é relativamente comum em causas cujo pano de fundo é conflito conjugal ou intrafamiliar;
- Cliente não cooperativo: antítese do cliente rebelde, o cliente não cooperativo tende a tratar o Advogado com descaso: não retorna ligações, não responde a e-mails, não encaminha documentos solicitados, não comparece em audiências etc. Além disso, por vezes ele quer submeter a pauta de audiências do juízo à sua agenda pessoal de compromisso, gerando desgaste desnecessário na relação processual entre defensor técnico e julgador;
- Cliente antiético: há clientes que sugerem estratégias ou táticas que caracterizam infração penal ou ético-disciplinar. Ocorre que o Advogado é órgão indispensável ao sistema de administração da justiça criminal (artigo 133 da Carta Cidadã), motivo pelo qual ele deve adotar meios éticos e legais na defesa vigorosa dos interesses do cliente. Assim, o ideal é recusar o patrocínio de cliente antiético ou, no mínimo, rejeitar estratégia ou tática heterodoxa por ele sugerida. O Advogado deve exercer a advocacia criminal defensiva, mitigando seu risco pessoal de responsabilização ético-profissional e penal. Nesse contexto, mecanismos de aplicação consensual da pena permitem que o cliente venha a incriminar o Advogado, em troca da própria liberdade. Destarte, o defensor deve proteger sua liberdade de locomoção, reputação, carreira profissional etc. seguindo duas regras: (i) o Advogado não deve ser aquele que é preso; (ii) sempre seja honesto e justo com o cliente, o julgador, a parte adversa e você mesmo. Nas interações com o cliente, seus amigos, familiares e fontes de prova testemunhal, o Advogado não deve dizer ou fazer nada que ele teria medo ou vergonha de ler nos jornais um dia (Say nothing or do nothing that you would be afraid or ashamed to read in the newspaper one day). Nessa toada, eventual proposta de conduta antiética ou ilegal deve ser rechaçada pelo Advogado, que tem o dever ético de alertar o cliente sobre as sanções penais decorrentes.
É lícito concluir que o Advogado sempre deve buscar o refinamento do seu processo decisório sobre a aceitação do patrocínio de causas, tornando-o o mais criterioso e reflexivo possível.
Para tanto, ele deve desenvolver a arte de identificar, com a maior brevidade possível, clientes potencialmente problemáticos – o que não raro é um processo mais intuitivo do que racional.
Uma prática útil é sempre fazer a primeira entrevista com o cliente na companhia de um sócio, para viabilizar posterior troca de insights sobre os perfis da causa e do cliente. Ademais, quanto mais detalhista for a entrevista, melhores condições terá o Advogado de tomar decisão informada sobre a aceitação da causa. Também é interessante colher impressões da recepcionista ou secretária, sobre o comportamento do cliente antes e após a entrevista.
Ter a sabedoria necessária para escolher bons clientes pode ser a chave para desenvolver uma carreira gratificante e saudável na advocacia criminal.