Por Maria Virginia Mesquita Nasser -
No último dia 15 de setembro, o ministro Luis Fux determinou a prorrogação da Recomendação CNJ nº 62 (criando a Recomendação CNJ nº 78), que sugere, entre outras providências, medidas de desencarceramento para sentenciados e pessoas que estão sob prisão preventiva. Ao estender o prazo da recomendação, restringiu seu alcance, excluindo, entre outras categorias, pessoas condenadas por crimes de corrupção. A justificativa do ministro para tanto foi que não se pode retroceder no combate à corrupção. Neste mesmo dia, o presidente do Superior Tribunal de Justiça, por meio de decisão liminar, reverteu em uma canetada nada menos que 18 decisões favoráveis à concessionária Linha Amarela S.A. na disputa entre aquela empresa e a Prefeitura do Rio de Janeiro, permitindo que a empresa fosse expropriada da concessão que hoje opera sem qualquer indenização prévia. Algumas semanas antes destes eventos, passou a circular no Brasil a nota de R$ 200, com o lobo-guará nela estampado.
Se olharmos esses acontecimentos em conjunto, poderemos perceber como, ao contrário de tanta propaganda que se faz por aí, avançamos ainda bem pouco nos esforços anticorrupção no Brasil. Podemos até ter avançado — não sem seletividades — no combate à corrupção, mas estamos longe de ter adotado medidas sérias para preveni-la. O cárcere, ao final e ao cabo, continua sendo nossa aposta majoritária. Explico.
Desde o início da operação "lava jato", em meio a uma grande espetacularização de diversas fases da operação (diversas, não todas — houve, sim, casos de processos, sobretudo delações, conduzidas com discrição e rigor, mas esses não são os alardeados na mídia e nas redes sociais, nem super projetam as autoridades que os conduziram), o país vem assistindo a um movimento sem precedentes de persecução de delitos associados à corrupção ou genericamente enquadrados como tal. A esse movimento vem sendo creditada uma mudança para melhor do Brasil.
Esquecem os entusiastas desta empreitada, alguns deles citando sem compreender teóricos da análise econômica do Direito, que a impunidade não é o único fator que explica a corrupção. Outros fatores estruturais a explicam, tais como a possibilidade de colusão com agentes que concordem com o "jogo" da corrupção em ambiente de baixa competição, a necessidade ou vantagem em aderir a práticas corruptas para gerenciar riscos na relação com agentes públicos, a impossibilidade de acesso a ou permanência em certos mercados sem a adesão a práticas corruptas, a maior ou menor facilidade para se inserir novamente na economia os valores obtidos com práticas ilícitas e por aí vai.
E há mais: uma transação corrupta se negocia e se perfaz em poucos dias. Um sistema que enfrenta grandes níveis de corrupção se cria a partir de falhas de governança que levam anos para se sedimentar e vão funcionando de modo a frear movimentos de modernização. Favor notar, portanto, que se trata mais de uma questão de percurso histórico e institucional que de caráter do povo .
Em linha com este diagnóstico, em 2018, quando já havia sido digerido o produto de dezenas de fases da "lava jato", um grupo de pesquisadores capitaneado pela Fundação Getúlio Vargas e pela Transparência Internacional Brasil lançou um estudo amplo intitulado "Novas medidas contra a corrupção". O trabalho propunha um equilíbrio entre responsabilização de agentes e medidas estruturais de enfrentamento à corrupção. Diversas medidas foram recomendadas e muitas delas iam além da esfera da responsabilização criminal e administrativa. Abarcavam desde o aprimoramento de mecanismos de transparência pública, passando por reformas na legislação eleitoral e mudança nos critérios e regras de seleção de ministros e conselheiros dos tribunais de contas e tribunais superiores e chegando a medidas para restringir a circulação de dinheiro em espécie.
Paralelamente a este estudo, não são poucos os operadores do Direito que vêm apontando os poderes exacerbados da Administração Pública nos contratos administrativos — poderes estes que garantem a entes da Administração o "direito ao calote" e, a depender da interpretação da lei, a prerrogativa de impedir um agente privado de contratar com qualquer outro ente da Administração Pública — também como focos de corrupção.
Ora, não é preciso muita pesquisa para se descobrir que as medidas alternativas ao arsenal punitivo que poderiam nos ajudar a enfrentar a corrupção têm sido implementadas com velocidade e entusiasmo bem menores que o turbilhão da "lava jato" de outrora.
Nessa esteira, a inauguração da nota do lobo-guará, facilitando a circulação de dinheiro em espécie, o mais primário dos canais de lavagem de dinheiro, nos faz dar um passo atrás.
Mais grave, porém, é a decisão do STJ que autoriza a encampação da Linha Amarela sem prévia indenização. Anos atrás, havia grande incentivo para que empresas atuando no mercado de infraestrutura buscassem evitar este tipo de investida lesiva a seus interesses via financiamento da campanha eleitoral, fosse de forma regular ou irregular. Um sistema de justiça capaz de coibir este tipo de abuso — que no caso da encampação em questão é inconstitucional — ajudaria a eliminar o incentivo para se "comprar" a proteção do concessionário contra este tipo de medida. Uma decisão que chancela este abuso, por óbvio, vai justamente na contramão do enfrentamento à corrupção. Pior: desloca este conflito de interesses para o Poder Judiciário.
Restringir a aplicação da Recomendação 62 do CNJ a condenados por corrupção não é o que nos faria retroceder no combate ao tão esconjurado problema da corrupção. Mais valeria deixar o lobo-guará de fora do sistema monetário e criar uma jurisprudência nos tribunais superiores que evitasse, ao invés de fomentar, medidas populistas dos lobos em pele de cordeiro que alardeiam estar devolvendo a Linha Amarela ao carioca, quando na verdade estão privando os fluminenses de receberem investimentos de empresas privadas sérias no setor de infraestrutura pelo próximos anos. No fim da história, populismo penal e populismo tarifário costumam se satisfazer nas mesmas rapinas.