Por Diogo Malan -
Ao longo das últimas três décadas, houve mudança paradigmática de percepção, por parte de jornalistas, legisladores, pesquisadores, operadores forenses etc., acerca das mazelas do sistema de administração da Justiça Criminal, das quais podem resultar condenações de inocentes. Essa mudança foi insuflada pelo chamado movimento da inocência (innocence movement), originário dos Estados Unidos da América na década de 1990 .
Até então, a condenação de inocente era considerada fenômeno grave e indesejável, porém de rarefeita ocorrência, sendo objeto de análise meramente casuística e isolada.
Não obstante, o sobredito movimento social não só trouxe esse fenômeno para o centro nervoso do debate acadêmico e político-criminal contemporâneo, como também substituiu sua tradicional análise casuística e isolada por perspectiva mais institucional e sistêmica.
De início, o movimento da inocência foi catalisado pela descoberta, em 1984, das aplicações forenses do exame de identificação genética. O exame de DNA, malgrado não seja infalível, caso baseado em aplicação e interpretação corretas por parte de profissional qualificado, permite a identificação (ou exclusão) da autoria da infração penal com altíssimo grau de probabilidade. Assim, a genética forense tornou possível a produção de prova científica da inocência de condenados.
Nos Estados Unidos da América, dois advogados de interesse público, Barry Scheck e Peter Neufeld, aturaram nas primeiras causas envolvendo exames de identificação genética e participaram dos debates acadêmicos e legislativos sobre admissibilidade probatória e confiabilidade do exame forense de DNA, tornando-se especialistas na matéria.
Em 1992, Scheck e Neufeld decidiram fundar o Innocence Project, inicialmente como programa de extensão vinculado à Cardozo Law School, em Nova Iorque. A inspiração foi buscada na estrutura organizacional e procedimentos administrativos da Centurion Ministries, entidade sem fins lucrativos precursora na exoneração de inocentes condenados desde 1983 .
O Innocence Project tem dois diferenciais: 1) foco em causas criminais envolvendo exames forenses de identificação genética; 2) atuação política com vistas ao fomento de pauta reformista do sistema de administração da Justiça Criminal.
O aumento de exonerações de inocentes condenados (inclusive à pena capital) levou à uma maior percepção midiática e social sobre a patologia das condenações criminais errôneas e suas causas sistêmicas.
Um marco histórico foi a National Conference on Wrongful Convictions and the Death Penalty, realizada em 1998 em Chicago. Com 1,2 mil participantes, essa conferência contou com depoimentos pessoais de 30 exonerados e grande repercussão midiática.
Também avulta a importância da publicação, em 2000, do livro "Actual innocence: Five days to execution and other dispatches from the wrongly convicted". Nessa obra, Scheck, Neufeld e Jim Dwyer analisaram, com base em casos concretos, as principais causas sistêmicas de condenações de inocentes, tendo logrado grande êxito editorial.
Outro marco importante foi a promulgação do Innocence Protection Act em 2004. Trata-se de legislação focada em três aspectos: 1) aumento do acesso de condenados a exames genéticos, estabelecendo protocolos técnicos e procedimentos para tanto; 2) garantia de defesa penal efetiva para acusados de delitos susceptíveis à pena de morte, definindo critérios de seleção e remuneração de defensores; 3) compensação por danos morais decorrentes de condenações criminais equivocadas.
Talvez o desdobramento mais importante do movimento social em apreço tenha sido a criação, em 2005, de rede informal — composta por entidades sem fins lucrativos, clínicas de prática jurídica (vinculadas a instituições de ensino superior), defensorias públicas, escritórios de advocacia etc. — dedicada à assistência jurídica pro bono a condenados que buscam provar sua inocência, e ao debate político-legislativo sobre causas sistêmicas de condenações errôneas .
Atualmente, a chamada Rede da Inocência (Innocence Network) é composta por 69 entidades ao redor do globo, sendo organicamente estruturada com base em declaração de princípios, critérios de admissão, diretrizes éticas e sobre melhores práticas etc .
Segundo Robert Norris, o surgimento do movimento da inocência se deveu à confluência de três fatores: 1) o alicerce organizacional estabelecido pela Centurion Ministries e pelo Innocence Project; 2) as ideias visionárias de Scheck e Neufeld sobre o uso forense do exame de DNA como instrumento para a exoneração de inocentes condenados; 3) a eleição dos erros no sistema de administração da Justiça Criminal como objeto de análise de acadêmicos e jornalistas .
O movimento social em digressão tem importância histórica comparável à revolução do devido processo (due process revolution), feita durante a gestão de Earl Warren à frente da Suprema Corte norte-americana (1953-1969) . Há mesmo quem caracterize o movimento da inocência como sendo o novo movimento das liberdades civis do século 21 .
Segundo o National Registry of Exonerations, desde 1989 já houve 2.706 exonerações de inocentes condenados, que causaram a perda de mais de 24,6 mil anos de vidas em liberdade .