Por Lenio Luiz Streck e Marco Aurélio de Carvalho -
De tédio ninguém morre no Brasil. Mas mais de 250 mil pessoas já morreram na pandemia. E, incrível, no meio desse pandemônio, a Câmara dos Deputados faz mutirão antirregimental para cuidar de suas coisas.
Explicaremos. Em pouquíssimas horas o parlamento brasileiro, em visível retaliação à decisão do Supremo Tribunal Federal que prendeu o deputado Daniel Silveira, não só elaborou uma Proposta de Emenda Constitucional como também, em tempo recorde, passou por cima da Comissão de Constituição e Justiça.
Impressiona o fato de a proposta estar sendo defendida por parlamentares com sólida formação jurídica.
Poderíamos falar, aqui, da inconstitucionalidade desse atropelo explícito e escandaloso do procedimento. Afinal, há bons argumentos para demonstrar a necessidade-indispensabilidade do devido processo legislativo.
Ou seja, a CCJ é condição de possibilidade para o devido processo legal. E que uma PEC precisa de prognose. Nas aulas de direito constitucional, se o professor pergunta algo desse tipo, o bedel da faculdade entra correndo na sala e diz: professor, essa até eu respondo. Isso se o porteiro não chegar antes.
Também poderíamos falar do mérito da PEC, que invade prerrogativa constitucional do Poder Judiciário e torna praticamente impossível a prisão de parlamentar. Ou seja, o parlamentar estará blindado, como cidadão diferente, único, ímpar. Tudo porque Daniel Silveira foi preso e o parlamento resolveu dar o troco em flagrante, isto é, logo em seguida à própria decisão que, por 364 votos, manteve a prisão (devida, anote-se). Observe-se. Pela PEC-EXPRESS, se um deputado pratica racismo, só vai responder na Comissão de Ética. Ora, então brasileiros são mais iguais que outros?
Não retiramos, e nem o faríamos, a importância de alguns avanços contidos na proposta. Mas este não é o debate, pelo menos não deveria ser por ora.
O que tratamos é do escândalo que é, em meio a uma pandemia, o parlamento gastar horas, adentrando a noite, para, pasmem, criar mais prerrogativas para deputados que venham a cometer crimes, além de outras coisas.
Somos os primeiros — e nossos textos e manifestações provam isso —, sempre, a defender a Constituição e as prerrogativas dos Poderes. Incontáveis vezes defendemos o Supremo Tribunal, vítima, justamente, de ataques como os do dep. Daniel. Quando criticamos o ativismo judicial estamos defendendo o Parlamento.
Porém, o parlamento necessita "se ajudar". Não pode a Casa do Povo abrir o flanco desse modo, a ponto de vermos discursos críticos à PEC que unem o Partido Novo, o PSOL e o PT contra esse "golpe antirregimental" e, ao mesmo tempo, vigoroso discurso da liderança do PCdoB a favor, não só da PEC, como do trâmite "via expressa". Espantoso.
Uma PEC é algo tão importante que exige quórum especial. Muda o contrato social, do qual a Constituição é a explicitação item por item. A Câmara não se levou a sério. Ignorou o controle político prévio de uma PEC. Além disso, essa PEC afronta a decisão do STF.
Mais do que isso, o perigo maior de uma PEC-EXPRESS é ser um Cavalo de Troia. Isto é, independentemente do que venha a ser aprovado, o precedente foi aberto. Pode uma PEC, a partir de agora, ser aprovada em dois dias. Por exemplo, dobrar o mandato do Presidente. Permitir reeleição das mesas da Câmara e Senado. Tirar garantias de juízes. E as cláusulas pétreas? Bem, uma PEC (não) pode alterar isso. Ah, não pode? Sem problema. Dentro do Cavalo de Troia dorme o desejo de soltar as sereias e quebrar as correntes que salvaram Ulisses, na Odisséia. A porteira está aberta.
Exagero? Sim e não. Dizemos isso para que vejamos o tamanho do precedente aberto com a possibilidade de emendar a Constituição sem qualquer rito e, pior, sem a condição primordial: o juízo de constitucionalidade na respectiva Comissão.
No Paraguai, fez-se algo parecido para derrubar o presidente Lugo. Emendou-se a Constituição em 48 horas para criar um artigo que permitia derrubar o presidente. Incrível, não? Pronto. Aprovada a Emenda, apeou-se Lugo do poder. Sabem o que disseram muitos membros da comunidade jurídica? Disseram que, afinal, o presidente foi expulso do poder dentro dos ditames constitucionais. Quais ditames? Os que foram produto da PEC de dois dias antes. De forma expressa. Perfeito, não?
Em uma palavra: Comissão de Constituição e Justiça é devido processo legislativo. Uma PEC exige paciência. PEC não é "puxadinho". Uma PEC exige prudência. Discussão com a sociedade. Audiências públicas. Os constituintes levaram dois anos para aprovar a Constituição e a atual Câmara a emenda em algumas horas?
Devido processo legal ou devido processo legislativo não é “filigrana jurídica”. Isso quem diz é gente como Deltan Dallagnol.
E sabemos no que dá considerar o devido processo legal como "filigrana".