Por Marcos Faleiros da Silva -
Audiência de custódia consiste num instrumento processual de condução do preso ao juiz, mediante a realização de uma audiência sem demora após a prisão flagrante, prisão cautelar ou prisão decorrente de condenação, permitindo o contato imediato do preso com o magistrado, defensor, promotor, equipe psicossocial, etc. e possui as seguintes finalidades:
1) Apresentação: o indivíduo preso ou detido deve ter contato direto e pessoal com o juiz, nos termos do princípio da imediação, razão pela qual a pessoalidade é característica essencial para a sua finalidade, ou seja, o contato direto e imediato do juiz com a pessoa presa. A análise da liberdade ou prisão do flagrado deverá dar-se a partir da oitiva qualificada do preso, pois muitas vezes mil palavras não seriam suficientes para traduzir com perfeição um ato ou uma expressão colhida em audiência.
2) Proteção: a audiência de custódia tem por fim tutelar a integridade física e psíquica do preso, coibindo eventuais excessos, tais como tortura, maus tratos, tratamentos desumano e cruel, bem como outras violações de direitos humanos (uso inadequado de algemas, recolhimento em quartel de presos militares etc.).
3) Constatação: aquilatar, de acordo com as circunstâncias do caso concreto, a necessidade de ser mantida a prisão, analisando os pressupostos, fundamentos e condições de admissibilidade da preventiva, averiguar qual a melhor cautelar diversa da prisão que se adequa ao caso, bem como possível substituição da prisão preventiva pela domiciliar.
4) Adequação do ordenamento jurídico brasileiro aos tratados internacionais.
A realização da audiência de custódia tem origem nas previsões contidas no artigo 9º, item 3, do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos das Nações Unidas, e no artigo 7º, item 5, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, ambos tratados já incorporados ao Direito brasileiro, porém, mesmo com a normatização internacional, esse tipo de audiência não era realizada no Brasil.
Por conseguinte, o Supremo Tribunal Federal, em 9/9/2015, ao deferir a Medida Cautelar na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 347/DF, determinou que, no prazo de até 90 dias, os juízes e tribunais viabilizassem o comparecimento do preso perante a autoridade judiciária no prazo máximo de 24 horas, contado do momento da prisão (relator ministro Marco Aurélio, Tribunal Pleno, DJe 19/02/2016). Diante disso, em 15/12/2015 o Conselho Nacional de Justiça editou a Resolução nº 213, a qual dispõe sobre a apresentação de toda pessoa presa à autoridade judicial no prazo de 24 horas.
No âmbito do Estado de Mato Grosso, as audiências de custódia são regulamentadas pelo Provimento nº 01/2017-CM, com relação à capital, e Provimento nº 12/2017-CM, no que se refere às demais comarcas.
Em 2019, o pacote "anticrime" (Lei nº 13.964/19) incorporou ao Código de Processo Penal as audiências de custódia, com possibilidade do relaxamento da prisão em flagrante (eficácia suspensa pela ADI nº 6.305) e responsabilização penal, administrativa e civil do magistrado quando não realizadas injustificadamente, in verbis:
"Artigo 310 — Após receber o auto de prisão em flagrante, no prazo máximo de até 24 (vinte e quatro) horas após a realização da prisão, o juiz deverá promover audiência de custódia com a presença do acusado, seu advogado constituído ou membro da Defensoria Pública e o membro do Ministério Público, e, nessa audiência, o juiz deverá, fundamentadamente:
I - relaxar a prisão ilegal; ou
II - converter a prisão em flagrante em preventiva, quando presentes os requisitos constantes do artigo 312 deste Código, e se revelarem inadequadas ou insuficientes as medidas cautelares diversas da prisão; ou
III - conceder liberdade provisória, com ou sem fiança.
§1.º Se o juiz verificar, pelo auto de prisão em flagrante, que o agente praticou o fato em qualquer das condições constantes dos incisos I, II ou III do caput do artigo 23 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), poderá, fundamentadamente, conceder ao acusado liberdade provisória, mediante termo de comparecimento obrigatório a todos os atos processuais, sob pena de revogação.
§2º. Se o juiz verificar que o agente é reincidente ou que integra organização criminosa armada ou milícia, ou que porta arma de fogo de uso restrito, deverá denegar a liberdade provisória, com ou sem medidas cautelares.
§3º. A autoridade que deu causa, sem motivação idônea, à não realização da audiência de custódia no prazo estabelecido no caput deste artigo responderá administrativa, civil e penalmente pela omissão.
§4º. Transcorridas 24 (vinte e quatro) horas após o decurso do prazo estabelecido no caput deste artigo, a não realização de audiência de custódia sem motivação idônea ensejará também a ilegalidade da prisão, a ser relaxada pela autoridade competente, sem prejuízo da possibilidade de imediata decretação de prisão preventiva".
Por demais se questiona quanto ao prazo para realização das audiências de custódias na medida em que a nova redação do artigo 310 do CPP, no §3º, abre a possibilidade de punição do juiz que deu causa, sem motivação idônea, à não realização da audiência de custódia no prazo previsto em lei, o que pode gerar perplexidade e preocupação aos laboriosos juízes mato-grossenses.
Com a entrada em vigor da Lei nº 13.964/19, no dia 20 de janeiro de 2020, passamos a ter um regramento legal no artigo 310 do CPP, as audiências de custódia deverão ser realizadas no prazo máximo de 24 horas, após a realização da prisão.
Não obstante, é perceptível, na prática forense do dia a dia, que apresentar um preso à autoridade judicial no prazo de 24 horas, após a realização da prisão, é quase que impossível, porque o que visualizamos em Mato Grosso é o seguinte:
1) Momento da prisão em flagrante pela Polícia Militar e tempo que se leva para a elaboração do boletim de ocorrência e apresentação do preso ao delegado de Polícia, de três a quatro horas.
2) A autoridade policial, conforme o §1º do artigo 306 do CPP, dispõe de até 24 horas para lavrar o flagrante e encaminhar o auto ao juiz competente.
Somente após essas duas etapas é que o flagrante é encaminhado ao juiz, quando normalmente já se passaram as 24 horas da prisão. Renato Brasileiro pondera:
"Para que se tenha uma ideia das dificuldades da realização da audiência de custódia em até 24 horas (vinte e quatro) horas após a captura, basta atentar para o fato de que, no 2º trimestre de 2012, houve um total de 8.109 prisões em flagrantes apenas na cidade de São Paulo, o que representa uma média diária superior a 90 prisões por dia, segundo pesquisa divulgada pelo Instituto Sou da Paz ("o impacto da lei das cautelares nas prisões em flagrantes na cidade de São Paulo"). Como se percebe, fixado o lapso temporal de 24 (vinte e quatro) horas para a realização da referida audiência, todas essas pessoas teriam que ser transportadas das diversas unidades policiais e carcerárias do município para os Fóruns Criminais em um curtíssimo espaço de tempo. Ante a logística necessária para escolta dos autuados pela polícia às audiências, parece-nos que esse espaço de 24 horas é absolutamente inexequível. Por tais motivos, preferimos concluir que o prazo máximo de 72 horas é mais compatível com a realidade brasileira, até mesmo para não transformar ato de tamanha importância em audiência de custódia drive thru" [1].
Assim, diante da absoluta inexequibilidade do prazo de 24 horas da prisão, fica evidenciado que o novo artigo 310 do CPP, com redação dada pela Lei nº 13.964/19, deve ser interpretado à luz da Resolução nº 213 do CNJ, que estabelece uma contagem de prazo diferente, bem plausível e próxima da realidade, conforme o disposto no artigo 1º:
"Artigo 1º — Determinar que toda pessoa presa em flagrante delito, independentemente da motivação ou natureza do ato, seja obrigatoriamente apresentada, em até 24 horas da comunicação do flagrante, à autoridade judicial competente, e ouvida sobre as circunstâncias em que se realizou sua prisão ou apreensão.
§1º. A comunicação da prisão em flagrante à autoridade judicial, que se dará por meio do encaminhamento do auto de prisão em flagrante, de acordo com as rotinas previstas em cada Estado da Federação, não supre a apresentação pessoal determinada no caput".
O Conselho Nacional de Justiça dispõe, portanto, de um prazo mais plausível, ou seja, a audiência de custódia deve ser realizada em até 24 horas, a partir da comunicação do flagrante, o que, por óbvio, diferencia-se do prazo do artigo 310 do CPP, cujas 24 horas são contadas da prisão, o que não seria viável, repita-se.
Nessa direção, temos o artigo 306 do CPP dizendo que a prisão de qualquer pessoa e o local onde se encontre serão comunicados imediatamente ao juiz competente. Na sequência, no § 1º do artigo 306 está que: em até 24 horas após a realização da prisão, será encaminhado ao juiz competente o auto de prisão em flagrante e, caso o autuado não informe o nome de seu advogado, cópia integral para a Defensoria Pública.
Essa remessa do auto de prisão prevista no §1º do artigo 306 do CPP equivale à efetiva comunicação do flagrante para fins legais e constitucionais, conforme a Constituição, artigo 5º, LXII, portanto, é a partir do recebimento do auto de prisão em flagrante que começa a contar o prazo de 24 horas para o juiz realizar a audiência de custódia, nos estritos termos do artigo 1º da Resolução nº 213 do CNJ.
Importante mencionar que a superveniência de situação de enfermidade, ou havendo circunstância comprovadamente excepcional que a impossibilite de ser apresentado o preso ao juiz, no prazo de 24 horas, deverá ser assegurada a realização da audiência no local em que ele se encontre e, nos casos em que o deslocamento se mostre inviável, deverá ser providenciada a condução para a audiência de custódia imediatamente após restabelecida sua condição de saúde ou de apresentação, conforme §4º do artigo 1º da Resolução nº 213 do CNJ.
Diante do exposto, temos que o prazo para realização da audiência de custódia é de até 24 horas a partir do momento em que o APF, mandado de prisão ou comunicação da prisão sejam recebidos no fórum, conforme artigo 310 do CPP combinado com o artigo 1º da Resolução 213 do CNJ.
Essa posição não destoa dos julgados da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) quando apreciou a matéria referente às audiências de custódia. A Corte IDH somente reconheceu a violação do direito à audiência de custódia pela ofensa à celeridade exigida pela CADH em casos de condução do preso à presença do juiz se deu a partir do quarto dia, senão vejamos:
1) Uma semana após a prisão: Corte IDH. Caso Bayarri vs. Argentina, sentença de 30/10/2008.
2) Cinco dias após a prisão: Corte IDH. Caso Cabrera Garcia e Montiel Flores vs. México, sentença de 26/11/2010.
3) Trinta e seis dias após a prisão: Corte IDH. Caso Castillo Petruzi e outros vs. Perú, sentença de 30/5/1999.
4) Quatro dias após a prisão: Corte IDH. Caso Chaparro Álvarez e Lapo Íniguez vs. Equador, sentença de 21/11/2007.
O que vemos nas decisões internacionais é que o tempo necessário para caracterizar em que consiste sem demora na convenção deve ser definido autonomamente segundo os critérios convencionais e segundo as especificidades locais. Circunstâncias como a excessiva distância, o difícil acesso e a escassez de um sistema de transporte devem ser levados em consideração para ampliação do prazo, mas nunca superior à jurisprudência da Corte IDH.
Ante o exposto, a prática criminal nos impõe a concluir que o prazo para realização da audiência de custódia é de até 24 horas computadas a partir do momento em que o APF ou mandado de prisão sejam recebidos no fórum ou no plantão.