Por Patrick Assunção Santiago -
Feuerbach, no início do século 19, consagrou o princípio que há muito já vinha sendo trabalhado na Europa. Foi ali, através da fórmula nullum crimen, nulla poena sine lege, que surgiu o que hoje se entende por princípio da legalidade.
O princípio da legalidade representa o sinal mais constitutivamente claro de que a modernidade já havia se iniciado, ao menos em termos de política-criminal. Não sem razão, o Von Liszt afirmou que os códigos penais modernos são uma "Magna Charta Libertatum", pela qual se extraia a legalidade estrita exigível ao Direito Penal, de modo que tudo aquilo que os textos legais não proibissem aos seus cidadãos, lhes eram permitido. Permittitur quod non prohibetur.
Em termos de teoria dogmático-penal, o princípio da legalidade é o fundamento da tipicidade, conforme destaca Ernst Beling, segundo o qual:
''Antes de ser antijurídica e imputável a título de culpa, uma ação reconhecível como punível precisa ser típica, isto é, corresponder a um dos esquemas ou delitos-tipos objetivamente descritos pela lei penal".
O princípio da legalidade representa o exaurimento último da discussão sobre a dicotomia existente entre a lei e o Direito. Nas palavras de Nelson Hungria, ao trabalhar o princípio da legalidade diz que: "A única fonte do direito penal é a norma legal. Não há direito penal vagando fora da lei escrita".
Hungria afirma que o Direito Penal funciona com perfeição interna própria e possui um sistema fechado, não podendo ser "preenchido" pelo arbítrio judicial, analogia ou pelo costume. A lei penal não possui lacunas, de modo que afirma ser o Direito Penal uma "espécie de anteparo do indivíduo em face da expansiva autoridade do Estado".
Há de se destacar que, em termos de Direito Penal brasileiro, o princípio da legalidade somente foi consagrado com a promulgação da Constituição Imperial, de 1824, cujo artigo 179, I, já determinava que "ninguém será sentenciado, senão por autoridade competente, por virtude de lei anterior e por ella prescripta".
A tendência legalista se manteve no ordenamento jurídico-penal brasileiro com a constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 1891 (artigo 72, §15), também pela Constituição brasileira de 1934 (artigo 113, item 26), pela Constituição brasileira de 1946 (artigo 141, §27) e, por último, pela Constituição de 1988, no artigo 5°, XXXIX.
No entanto, peço a devida vênia aos leitores para dar um "salto cronológico" na historicidade do princípio da legalidade para destacar aquilo que representa um risco à sua própria estrutura: A lei penal em branco.
Conforme conceitua Cezar Roberto Bitencourt, a lei penal em branco ''é um preceito incompleto, genérico ou indeterminado, que precisa da complementação de outras normas''.
A definição, por si só, já se demonstra em evidente descompasso com as tendências de legalidade exigíveis pelo texto constitucional, afinal, como afirma Claus Roxin:
"Uma ley indeterminada o imprecisa y por ello poco clara no puede proteger al ciudadano de la arbitrariedad, porque no implica una autolimitación del ius puniendi estatal a la que se pueda recurrir; además es contraria al principio de división de poderes, porque le permite al juez hacer cualquier interpretación que quiera e invadir com ello el terreno del legislativo".
Importante lembrar que, embora aceita pela jurisprudência, a norma penal em branco já recebeu duras críticas doutrinárias, vez que o complemento normativo, quando exercido por outra instância de poder que não os representantes eleitos pelo povo, viola o princípio da reserva legal.
Destaca-se, ainda, que o conteúdo da norma penal não pode ser modificado sem que haja uma discussão amadurecida da sociedade a seu respeito, como acontece quando os projetos de lei que são submetidos à apreciação de ambas as casas do Congresso Nacional, além do necessário controle pelo Poder Executivo, que exerceria o sistema de freios e contrapesos nessa dinâmica legislativa.
Fato é que, visando a dar uma resposta satisfatória ao combate à criminalidade de modo prematuro, aplica-se a lei penal em branco. Contudo, essa própria superação do princípio da legalidade subverteria a própria noção de culpabilidade, na qual não poderia existir sem a consciência da violação do dever jurídico previamente estabelecido em lei.
A lei penal em branco se demonstra problemática em muitos níveis diferentes, a começar pelo fato de ser uma tentativa de superação das lacunas do Direito Penal. Ora, não existem lacunas no Direito Penal. Ele é o que é. De modo que, como afirma Hungria:
''Se determinado fato escapou à previsão do legislador, isto é, se não corresponde, precisamente, a parte objetiva e subjetiva, a uma das figuras delituosas anteriormente recortadas in abstrato pela lei, o agente não deve contas à justiça repressiva, pois não ultrapassou a esfera da ilicitude jurídico-penal''.
A lei penal em branco representa uma ameaça gravíssima ao princípio da legalidade. A sua aplicação e permanência no ordenamento criminal se demonstra insustentável com tudo o que se entende por Direito moderno. É inadmissível que, na tentativa de ascender às margens punitivistas do estado, burle-se princípios fundamentais do próprio Estado.
A existência de tal dispositivo no sistema penal ressalta a insegurança jurídica e o descompasso existente entre as iniciativas teratológicas de índole punitivista frente a realidade cidadã e garantista da nossa Constituição Federal de 1988. As normas penais em branco são verdadeiros elefantes brancos em termos de política-criminal.