Por Ana Cláudia Bastos de Pinho e Guilherme Cruz de Castilho -
No último dia 23, a 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal analisou o mérito do Habeas Corpus 164.493/DF, tendo como paciente o ex-presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva, no qual se discutia a suspeição do ex-juiz federal Sergio Moro, especificamente no curso da Ação Penal nº 5046512-94.2016.4.04.7000/PR (tríplex do Guarujá). Por 3 a 2, a 2ª Turma decidiu pela concessão da ordem, reconhecendo a suspeição do magistrado.
Não vamos analisar todos os aspectos jurídicos sustentados pelos ministros no decorrer das sessões, mas, pontualmente, articular algumas considerações críticas sobre o voto do ministro Kassio Nunes Marques, sobretudo nos pontos em que dialoga com Luigi Ferrajoli e sua teoria do garantismo penal.
Nunes Marques apresentou vários argumentos, tentando fundamentar a denegação da ordem: 1) a via do HC seria imprópria para o questionamento pretendido pelo paciente; 2) a matéria da parcialidade de Moro já fora examinada em exceções de suspeição anteriores e, por isso, restaria preclusa; 3) houve supressão de instâncias; 4) não foi oportunizado o contraditório ao juiz suspeito; 5) as provas utilizadas para declarar a suspeição foram obtidas por meio ilícito; 6) os itens 4 e 5 implicariam uma violação aos pressupostos teóricos do garantismo penal.
Mas, afinal, de que garantismo penal o ministro Nunes Marques está a falar? Se for do delineado criteriosamente pelo professor Luigi Ferrajoli, em seu livro "Diritto e Ragione" (único, em nosso entender, possível), então, temos um problema. E grave!
Não é de hoje que insistimos na necessidade de falar seriamente sobre garantismo [1]. Lidar com um autor denso e analítico do porte de Luigi Ferrajoli impõe-nos um constante aprendizado e uma autoexigência com o rigor metodológico e com a precisão dos conceitos, das leituras e das interpretações que nos são autorizadas a fazer, a partir da extraordinária obra do maestro italiano.
No caso em comento, o ministro Nunes Marques valeu-se, a que tudo indica, do garantismo de Luigi Ferrajoli, pois faz referência nominal (embora não indique a fonte), em citação na qual põe de manifesto a extensão do termo "garantismo" a todos os direitos fundamentais (não apenas aos de índole liberal), mencionando, inclusive, a expressão "a outra face do constitucionalismo", fartamente utilizada pelo autor, sobretudo nos textos posteriores ao "Diritto e Ragione".
Na sequência de seu voto, o ministro resgata o termo "garantismo", dessa feita se referindo claramente a sua perspectiva penal/liberal, já que a argumentação cinge-se à controvérsia contida no HC, para sustentar que a declaração de suspeição do então juiz Sergio Moro seria uma prática antigarantista, já que a ele não se teria deferido o contraditório e, ademais, que tal declaração teria se baseado em provas obtidas por meio ilícito.
O "contraditório" a que se refere o ministro seguramente diz com o rito estabelecido pelo CPP (artigo 96 e ss.) para o processamento das exceções de suspeição. Porém, aqui estamos em sede do remédio heroico do HC, cujo cabimento para questionar essa matéria é fartamente reconhecido pela jurisprudência da corte (a título de exemplo, o HC 95.518/STF [2]). Ademais, admitido também pelo STF o cabimento do HC como substitutivo de revisão criminal [3], fato esse repisado pelo ministro Gilmar Mendes, durante a sessão. Assim, é precisamente, nessa condição (de um Habeas Corpus como sucedâneo de revisão criminal), que se deve analisar o argumento do ministro Nunes Marques.
A questão objeto do HC é de uma gravidade singular. O direito de ser julgado por um juiz imparcial é da natureza fundante do sistema acusatório. Sem isso, nada mais. Não há defesa, não há contraditório, não há qualquer possibilidade de um fair play. Portanto, que fique claro: a magnitude da controvérsia situa-se no campo inafastável da proteção constitucional, não se podendo a ela transferir, por analogia, predicados que são próprios de uma medida processual (como a exceção de suspeição), tampouco se valer de citações do Direito Processual Civil (como fez o ministro Nunes Marques ao mencionar, por exemplo, o magistério de Celso Agrícola Barbi). Esses campos, aqui, não se comunicam. A munição utilizada é insuficiente ao ataque do alvo que o ministro pretendia atingir.
Como nos ensina Jacinto Coutinho, precisamos ir ao fundamento dos fundamentos: qual a razão de ser do garantismo e, em especial, do garantismo penal? Garantismo para que(m)?
No livro "Il paradigma garantista: filosofia e critica del diritto penale", organizado por Dario Ippolito e Simone Spina, o professor Luigi Ferrajoli deixa claro que a escolha por um esquema garantista de Direito e de Processo Penal é política e que seu esteio se encontra no movimento da Ilustração. Trata-se do modelo por ele nomeado de Direito Penal mínimo, que, como paradigma metateórico, busca satisfazer um duplo escopo: evitar a violência vinda do crime, mas, sobretudo, evitar a violência que advém das reações ao crime, isto é, evitar a arbitrariedade das penas e dos processos [4].
Garantismo penal é, pois, sinônimo de contenção da violência, principalmente a produzida pelo próprio Estado. Significa limites e vínculos ao exercício do poder, embora o justifique. Proibir, castigar e julgar são atos legitimados pelo garantismo; porém, se (e somente se) isso se der dentro das regras fundamentais, que são os axiomas formulados, analiticamente, por Ferrajoli [5].
Desde essa perspectiva, e tomando o garantismo penal como la legge del più debole, somente uma leitura é possível: todas, rigorosamente, todas as garantias do Processo Penal são voltadas à proteção do acusado (imputado), posto que é ele o più debole no momento em que a pretensão acusatória se põe em curso [6].
A esse passo, pergunta-se: como justificar a inobservância do contraditório "do juiz", como um problema ao reconhecimento de sua suspeição, se o juiz, por evidente, não é parte (embora parcial tenha sido), tampouco está sendo acusado de coisa alguma? Pelo menos, a partir de uma base garantista, que parece ter sido a invocada pelo ministro, essa leitura não está autorizada.
O contraditório (axioma A10 do SG — nulla probatio sine defensione) é uma exigência garantista do devido processo legal, que tem por objetivo possibilitar ao réu as armas suficientes para contrapor-se à acusação (modelo falsacionista adotado por Ferrajoli). No caso em comento, não se pode falar que foi negado o "contraditório" ao ex-juiz Sergio Moro. Em verdade, tal garantia foi negada, isso, sim, ao paciente quando enfrentou um processo que, desde seu nascedouro, esteve eivado pela nulidade insanável da contaminação do magistrado, conforme reconhecido, por maioria, pela 2ª Turma do STF. Eis o ponto! Argumentar a partir do garantismo para, de forma enviesada, conceder proteção ao magistrado suspeito, é passar por cima da estrutura ferrajoliana mesma. O foco, o destinatário da proteção consubstanciada no axioma A10 (contraditório) é o réu, não o juiz. O julgador, aqui, não é alvo de acusação alguma. Não se lhe está atribuindo crime nenhum. Tampouco estamos em sede de processamento de exceção de suspeição, que há de seguir a ritualística do CPP. Não! Nada disso! Estamos diante de um Habeas Corpus que trouxe, de forma satisfatoriamente demonstrada, a ocorrência de uma suspeição. É disso que se trata!
Desde a leitura correta da obra de Ferrajoli, não há um garantismo penal "pró-sociedade", "pró-magistrado", ou "pró-Ministério Público"! Definitivamente, isso não existe [7]! Não se quer dizer com isso que os direitos sociais estão desatendidos no garantismo. Todo o contrário. Ferrajoli expandiu sua ideia primeva (garantismo penal/liberal) para as garantias sociais, patrimoniais, civis e internacionais. Porém, essas categorias operam desde lógicas distintas, cuja análise foge ao espaço desse breve artigo.
Depois de sustentar a violação do contraditório (posto que o juiz suspeito não foi ouvido), o ministro Nunes Marques, ainda flertando com o garantismo, sugere que a ordem não poderia ser concedida, porque as provas que demonstrariam a suspeição teriam sido obtidas por meio ilícito. Nessa parte do voto, o ministro se refere aos diálogos provenientes da operação "spoofing", ainda que as referidas conversas não tenham sido as provas principais para fundamentar o pleito da defesa.
Na sessão, o ministro sustentou a inadmissibilidade, no processo, de provas obtidas por meio ilícito em qualquer hipótese. Citou a literalidade do artigo 5º, inciso LVI, da CF, defendendo que o legislador constituinte não estabeleceu exceções a tal regra e que, em virtude disso, a impossibilidade de utilização de tais provas seria absoluta.
A vedação à utilização de provas originariamente ilícitas decorre da garantia do devido processo legal, sendo, portanto, regra constitucional para se evitar possíveis arbítrios do Estado-juiz ao proferir condenações baseadas em provas que não observem os parâmetros constitucionais de produção probatória. Nesse mesmo sentido, Gilmar Mendes assevera que "as regras que regulam e limitam a obtenção, a produção e a valoração das provas são direcionadas ao Estado, no intuito de proteger os direitos fundamentais do indivíduo atingido pela persecução penal" [8]. Dessa maneira, evidencia-se que o fundamento para a vedação das provas ilícitas é a proteção dos direitos e das garantias fundamentais do imputado na persecução penal.
Ocorre que, in casu, não se trata da utilização de uma prova originalmente ilícita para subsidiar uma decisão desfavorável ao imputado, mas, sim, da utilização de uma prova ilícita cujo conteúdo beneficia o réu na persecução penal.
A 1ª Turma do STF decidiu, por unanimidade, que a prova obtida por meio embrionariamente ilícito pode ser legitimada por uma causa de justificação, desde que seja necessária para provar inocência do imputado (HC 74.678, relator ministro Moreira Alves, DJ 15/08/1997).
Mais uma vez, portanto, a inferência feita pelo ministro Nunes Marques não encontra guarida na obra de Ferrajoli. Embora não seja um processualista penal e, obviamente, não escreva sobre dogmática, os fundamentos de toda a sua teoria, ao reconhecer o princípio do favor rei como regra, autorizam concluir que o uso de prova ilícita pro reo é, sem dúvida, permitido.
O que não se admitiria, por exemplo, seria o uso dessa prova para promover acusações contra o juiz e os procuradores da "lava jato". Isso, jamais! Aqui, sim, um limite claramente garantista a acusações penais em desacordo com as regras do jogo. Não se combate o crime praticando crime, bem lembrou o ministro Gilmar Mendes, durante a sua sustentação.
Houve um processo criminal. Houve um réu. Houve, até mesmo, uma defesa. O que não houve foi acusação! O juiz, a quem cabia unicamente julgar, acusou, imiscuiu-se em função própria do MP. Eis o núcleo que define o velho sistema inquisitório, que teima em reinar entre nós e fazer estragos. Felizmente, a 2ª Turma do STF deu conta da gravidade disso e fez história, resgatando seu encontro com a democracia, com os direitos fundamentais, com a Constituição, enfim.