Por Bruno Gimenes Di Lascio -
A ascensão do chamado Direito Penal Econômico tem obrigado os operadores forenses a revisitar certos temas jurídicos supostamente pacificados pela doutrina e pela jurisprudência, seja para aperfeiçoar a prestação jurisdicional nos casos concretos, seja para tutelar a própria legalidade.
Exemplo disso é a Súmula Vinculante nº 24. Redigida para assegurar indícios veementes de materialidade penal nos crimes tributários, o verbete por vezes acaba prejudicando o acusado ao invés de beneficiá-lo com a almejada segurança jurídica. Nesse específico, o enunciado sumular ("não se tipifica crime material contra a ordem tributária, previsto no artigo 1º, incisos I a IV, da Lei 8.137/1990, antes do lançamento definitivo do tributo") suscita perigosa confusão quando se trata da dosimetria da sentença penal condenatória.
Em geral, nos processos penais por crimes tributários, o magistrado sentenciante analisa o instituto da anterioridade penal (maus antecedentes e reincidência [1]) tendo por marco referencial a data do lançamento definitivo do tributo sonegado narrado na petição da denúncia criminal. A seguir, faz-se a equivalência entre a data do lançamento e a data da prática da conduta, seguindo-se a fórmula prescrita no verbete sumular.
Em uma leitura apressada da Súmula Vinculante nº 24, o intérprete pode afirmar ser a data marcante para análise o tempo da prática criminosa a mesma da do lançamento definitivo do tributo, pois não haveria prática de crime fiscal antes de o ente arrecadatório oficializar a supressão de crédito ocorrida, já que o delito em comento é material — em que pese a parcial divergência que o classifica como crime de resultado cortado [2].
Essa exegese merece urgentes reparos. A materialidade do crime, nesse caso, difere da execução dele. Sua execução — a prática da conduta ativa ou omissiva pelo agente — se efetuou no ano de 2018, ainda que a consagração do resultado tenha sido oficializada em 2021.
Infere-se aí que o busílis da dosimetria penal dos crimes tributários materiais envolve a determinação do tempo do crime, pois ela será utilizada como referência para a admissão, ou não, da existência de maus antecedentes e/ou reincidência.
A questão, nesse caso, revisita profundamente o conceito de "lançamento definitivo" e reverbera na discussão sobre o ato oficial se tratar de condição de punibilidade ou de condição de procedibilidade, que por si se desdobram nas discussões sobre suas próprias existências jurídicas.
A consumação do delito é tema de dogmática penal e não pode confundir-se com a constituição do crédito tributário, assunto afeto à área fiscal. Isso porque nosso Direito Penal adotou a teoria da atividade, conforme prescrito no artigo 4º do Código Penal: "Considera-se praticado o crime no momento da ação ou omissão, ainda que outro seja o momento do resultado".
Adotar, para fins de consideração de antecedência/reincidência penal, a data da consumação do crime como idêntica à data da comprovação da materialidade do resultado consumado (lançamento definitivo do tributo) significa considerar a data da lavratura do laudo pericial como a data da prática do ato lesão corporal. Além de impreciso, gera profunda insegurança jurídica.
Nesse ponto, o réu restaria refém da discricionariedade administrativa, que poderá prorrogar o lançamento definitivo do tributo pelo prazo máximo decadencial da obrigação fiscal (cinco anos), podendo-se procrastinar o lançamento do tributo até o momento em que o histórico judicial do autuado estiver mais prejudicado.
Estaria a criar-se, ainda, inviável diferenciação entre os tipos penais do artigo 1º e 2º da Lei Federal nº 8.137 de 1990, posto que as condutas insculpidas no primeiro dispositivo tratam-se de crimes materiais (e exigem lançamento tributário), e as do segundo tipo penal, de crimes formais (independem de atividade administrativa por se consumarem de imediato).
Como o objetivo da persecução penal trata de penalizar suposta supressão/redução de crédito tributário mediante a sonegação de obrigações acessórias legalmente descritas no tipo penal, a consumação do delito deve se dar com a conduta fraudulenta de minorar o crédito do Fisco — e isso se dá, mormente quando o lançamento é por homologação [3], no momento em que se escoa o prazo legal para pagar voluntariamente o tributo.
Isto é, se a prestação pecuniária deveria ser paga em determinada data e não o foi em razão de conduta fraudulenta ou omissiva perpetrada pelo contribuinte, que disfarçou o crédito real devido ao Fisco, aquela data deve ser considerada como o tempo do crime — o momento em que a conduta delituosa se aperfeiçoou e constituiu resultado naturalístico [4].
Isso porque a questão que se impõe é de natureza completamente processual, no sentido de arregimentar a denúncia criminal de "justa causa", condição exigida no artigo 395 do Código de Processo Penal, a fim de se evitar acusações infundadas e dispendiosas. Nesse jaez, "não se trata de questão de tipicidade material, mas de comprovação da materialidade delitiva, diante de uma especial peculiaridade do tributo" [5].
Nesse sentido, para fins de determinação de antecedentes criminais na dosimetria penal, toma-se como referência a data da prática da supressão tributária (vencimento da prestação pecuniária voluntária), não a data do lançamento definitivo do tributo, que pode ocorrer muito tempo depois, por depender da ação de terceiro (Fisco).
Para melhor ilustração, tome-se a seguinte narrativa: considerando-se que determinado agente cometeu supressão tributária de Imposto de Renda de pessoa física em 2018; considerando-se que esse mesmo sujeito praticou um outro fato penal comum em 2019; considerando-se que a sentença condenatória desse fato penal comum transitou em julgado já em 2019, e considerando-se que o lançamento definitivo daquele tributo suprimido em 2018 ocorreu em somente 2020, questiona-se: o réu será reincidente ou portador de maus antecedentes? A resposta deve ser negativa.
Isso porque o tempus commissi delicti difere do tempo da oficialização da sua materialidade pela autoridade competente. O lançamento definitivo do tributo apenas "estatiza" a prática do crime.
Fosse o tempo do crime o mesmo tempo do lançamento definitivo do tributo, o réu do caso acima seria reincidente. A pena final seria consequentemente aumentada em segunda fase de dosimetria, além de ter fixado regime inicial de cumprimento de pena recrudescido em razão do histórico criminal admitido em sentença condenatória [6].
Todavia, nessas ocasiões limítrofes entre Direito Processual Penal e Direito Tributário, os tribunais costumam se equivocar — geralmente contrariando o artigo 4º do Código Penal e causando severo prejuízo ao réu.
É comum encontrar decisões que consagram a confusão, a começar pelo próprio Supremo Tribunal Federal. É o que se vê no RHC 122.339, de relatoria do ministro Roberto Barroso, ocasião em que se igualou a oficialização do crédito tributário com a consumação mesma da atividade criminosa [7]. De igual desvalia a decisão de lavra do ex-ministro Joaquim Barbosa, no HC 105.114, que rejeitou a tese de prescrição penal ao pontuar que "não se pode considerar a data dos fatos como o termo inicial da prescrição da pretensão punitiva", pois "o delito pelo qual foi condenado (artigo 1º, II, da Lei 8.137/1990) é crime material que se consuma apenas quando do lançamento definitivo do tributo" [8].
Ao revés, digno de nota é o julgado alvissareiro do Tribunal Regional da 4ª Região, de acórdão lavrado pela eminente desembargadora Salise Monteiro Sanchotene, que contraria a corrente: "Ainda que o momento da consumação do crime contra a ordem tributária seja a constituição definitiva do crédito, para análise dos antecedentes e da reincidência o parâmetro deve ser o momento em que o agente pratica a efetiva omissão de informações ao Fisco" [9].
Resolvendo-se a questão trazida, conclui-se que a Súmula Vinculante nº 24 deve ser lida com esta redação: "Não há indícios robustos de materialidade de crime contra a ordem tributária, previsto no artigo 1º, incisos I a IV, da Lei 8.137/1990, antes do lançamento definitivo do tributo". Do contrário, seu enunciado estará eivado de ilegalidade e merecerá prudente revogação.
Estabelecer o tempo do crime tributário como aquele da prática da ação ou omissão fraudulenta é privilegiar a dogmática penal em detrimento da burocracia fiscal, e sobretudo homenagear a Súmula Vinculante nº 24 como marco da segurança jurídico-penal da nação.